1. O que é Filosofia?
É comum ouvir-se de pessoas
que não aceitam o Espiritismo a afirmação de
que a Filosofia Espírita não existe. Conhecido professor
brasileiro de Filosofia chegou a declarar numa entrevista à
imprensa brasileira que "O Livro dos Espíritos"
nada tem de filosófico. A mesma coisa acontece com o Marxismo.
Papini esforçou-se, em toda a sua vida, para provar que Marx
era um economista, e portanto, não devia ser confundido com
um filósofo. Como se um economista não pudesse e até
mesmo não precisasse de filosofar. Sartre, pelo contrário,
considera o Marxismo como a única Filosofia do nosso tempo.
As opiniões são contraditórias, mas isso não
nos deve impressionar, pois opiniões não passam de palpites,
de pontos de vista individuais, sujeitos às idiossincrasias
de cada um. E Pitágoras, o criador do termo Filosofia, já
afirmava que a Terra é a morada da opinião. Mais tarde,
Descartes advertiu que o preconceito e a precipitação,
dois vícios comuns da espécie humana, prejudicam o juízo
e impedem a descoberta da verdade.
Um filósofo, um professor de filosofia, um pensador honesto
e até mesmo uma simples criatura de bom-senso não podem
negar a existência da Filosofia Espírita, a menos que
não saibam o que essa palavra significa. Muito menos negar
a natureza filosófica de "O Livro dos Espíritos",
que é um verdadeiro tratado de Filosofia. Veja-se, por exemplo,
como Yvonne Castellan, que não é espírita, encara
esse livro em seu estudo sobre o Espiritismo. Consulte-se o "Dicionário
Técnico e Científico de Filosofia",
de Lalande. E leia-se o admirável ensaio de Gonzales Soriano,
desafiadoramente intitulado "El Espiritismo es la
Filosofia".
São muitas as definições de Filosofia, mas a
que subsiste como essencial é ainda a de Pitágoras:
"Amor da Sabedoria". Dai a exatidão
daquele axioma: "A Filosofia é o pensamento debruçado
sobre si mesmo." Eis a descrição perfeita
de um ato de amor: a mãe se debruça sobre o filho porque
o ama e deseja conhecê-lo. A sabedoria é filha do pensamento,
que a embala em seus braços, alimentando-a e fazendo-a crescer.
Assim, o objeto da Filosofia é ela mesma, não está
fora, no exterior, mas dentro dela. Podemos defini-lo como a relação
entre o pensamento e a realidade. Essa a razão de Gonzales
Soriano afirmar que o Espiritismo é a Filosofia. Razão,
aliás, que ele demonstra filosoficamente em seu livro. O Espiritismo
é, segundo sua definição, "a síntese
essencial dos conhecimentos humanos aplicada à investigação
da verdade." É o pensamento debruçado sobre
si mesmo para reajustar-se à realidade.
2. O que é Espiritismo?
Respondida a pergunta sobre
Filosofia devemos tratar ligeiramente da natureza do Espiritismo.
E nada mais necessário do que isso, porque nada mais desconhecido
em nosso mundo do que ele. Fala-se muito em Espiritismo, mas quase
nada se sabe a seu respeito. Kardec afirma, na introdução
de "O Livro dos Espíritos,"
que a força do Espiritismo não está nos fenômenos,
como geralmente se pensa, mas na sua "filosofia", o que
vale dizer na sua mundividência, na sua concepção
da realidade. Mas de onde vem essa concepção? Como foi
elaborada?
Os adversários do Espiritismo desconhecem tudo a respeito e
fazem tremenda confusão. Os próprios espíritas,
por sua vez, na sua esmagadora maioria estão na mesma situação.
Por quê? E fácil explicar. Os adversários partem
do preconceito e agem por precipitação. Os espíritas
em geral fazem o mesmo: formularam uma idéia pessoal da Doutrina,
um estereótipo mental a que se apegaram. A maioria, dos dois
lados, se esquece desta coisa importante: o Espiritismo é
uma doutrina que existe nos livros e precisa ser estudada.
Trata-se, pois, não de fazer sessões, provocar fenômenos,
procurar médiuns, mas de debruçar o pensamento
sobre si mesmo, examinar a concepção espírita
do mundo e reajustar a ela a conduta através da moral espírita.
Assim, temos alguns dados: o Espiritismo é uma doutrina
sobre o mundo, dá-nos a sua interpretação e nos
mostra como nos devemos conduzir nele. Mas como nasceu essa
doutrina, em que cabeça apareceu pela primeira vez? Dizem que
foi na de Allan Kardec, mas não é verdade. O próprio
Kardec nos diz o contrário. Os dados históricos nos
revelam o seguinte: o Espiritismo se formou lentamente através
da observação e da pesquisa científica dos fenômenos
espíritas, hoje parapsicologicamente chamados de fenômenos
paranormais. Os estudos científicos começaram seis anos
antes de Kardec, nos Estados Unidos, com o famoso caso das irmãs
Fox em Hydesville. Quando Kardec iniciou as suas pesquisas na França,
em 1845, já havia uma grande bibliografia espírita,
com a denominação de neo-espiritualista, nos Estados
Unidos e na Europa. Mas foi Kardec quem aprofundou e ordenou
essas pesquisas, levando-as às necessárias
conseqüências filosóficas, morais e religiosas.
O "O Livro dos Espíritos"
nos oferece a súmula do trabalho gigantesco de Kardec. Mas
se quisermos conhecer esse trabalho em profundidade temos
de ler toda a bibliografia kardeciana: os cinco volumes da
codificação doutrinária, os volumes subsidiários
e mais os doze volumes da Revista Espírita,
que nos oferecem o registro minucioso das pesquisas realizadas na
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. E precisamos nos
interessar também pelos trabalhos posteriores de Camille Flammarion,
de Gabriel Dellane, de Ernesto Bozzano, de Léon Denis (que
foi o continuador e o consolidador do trabalho de Kardec).
Veremos, assim, que Kardec partiu da pesquisa científica,
originando-se desta a Ciência Espírita; desenvolveu
a seguir a interpretação dos resultados da pesquisa,
que resultou na Filosofia Espírita; tirou, depois, as conclusões
morais da concepção filosófica, que levaram naturalmente
à Religião Espírita. É por isso que o
Espiritismo se apresenta como doutrina de tríplice aspecto.
A Ciência Espírita é o fundamento da Doutrina.
Sobre ela se ergue a Filosofia Espírita. E desta resulta naturalmente
a Religião Espírita. Muitas pessoas se atrapalham com
isso e perguntam: "Como uma doutrina pode ser, ao mesmo tempo,
Ciência, Filosofia e Religião?" Mas essa pergunta
revela a ignorância do processo gnoseológico. Porque,
na verdade, o conhecimento se desenvolveu nessa mesma seqüência
e em todas as formas atuais de conhecimento repete-se o processo filogenético.
No Espiritismo, porém, esse processo aparece bem preciso, bem
marcado por suas fases sucessivas, entrosadas numa seqüência
lógica. Podem alguns críticos alegar que Kardec não
partiu da pesquisa, mas da crença. Alguns chegam a afirmar
que foi assim, que ele já acreditava nas comunicações
espíritas antes de iniciar o seu trabalho de investigação.
Mas essa afirmação é falsa, a suposição
é gratuita. Basta uma consulta às anotações
íntimas de "Obras Póstumas"
e às biografias do mestre para se ver o contrário. Quando
lhe falaram pela primeira vez em mesinhas falantes, Kardec respondeu
como o fazem os céticos de hoje: "Isso é conversa
para fazer dormir em pé". Só deixou
essa atitude cética depois de constatar a realidade dos fenômenos.
Então pesquisou, aprofundou a questão e levou-a às
últimas conseqüências, como era, aliás, de
seu hábito, do seu feitio de investigador. Charles Richet lhe
faz justiça (embora discordando dele) em seu Tratado
de Metapsíquica.
Encarando a obra de Kardec pelo seu aspecto científico, sem
os preconceitos que têm impedido a sua justa avaliação,
ela nos parece inatacável. Alega-se que o seu método
de pesquisa não era científico, mas foi ele o primeiro
a explicar que não se podiam usar na pesquisa psíquica
os métodos das ciências fisicas. O desenvolvimento
da Psicologia provaria mais tarde que Kardec estava com a Razão.
Hoje, as pesquisas parapsicológicas o confirmam. No tocante
ao aspecto filosófico, o desenvolvimento atual das investigações
mostram a posição acertada do Espiritismo como doutrina
assistemática, "livre dos prejuízos
de espírito de sistema", como declara "O
Livro dos Espíritos", utilizando a conjugação
dos métodos indutivo e dedutivo para o esclarecimento da realidade
em seu duplo sentido: o objetivo e o subjetivo. A Filosofia
Espírita se apresenta como antecipação das conquistas
atuais do campo filosófico e abertura de perspectivas para
o futuro.
3. A Tradição Filosófica
A Filosofia Espírita se apresenta
naturalmente integrada na tradição filosófica.
Foi por isso que Kardec colocou, sobre o título de "O
Livro dos Espíritos", a indicação:
"Filosofia Espiritualista". Em "O
Evangelho Segundo o Espiritismo" ele indica Sócrates
e Platão como precursores do Cristianismo e do Espiritismo,
sendo este o desenvolvimento histórico daquele. Mas podemos
ir mais longe, demonstrando as múltiplas relações
da Filosofia Espírita com as mais significativas escolas filosóficas
do passado. Na verdade, a Filosofia Espírita se apresenta,
para o investigador imparcial, como o delta natural em que desemboca
no presente toda a tradição filosófica.
Essa convergência, porém, não se faz de súbito,
não é um "arranjo", como pretendem os adversários
gratuitos do Espiritismo. Podemos ver "com os olhos" o processo
de convergência delinear-se na própria História
da Filosofia. Dos pitagóricos (com sua simbiose espiritual
traduzida na doutrina da metempsicose) aos jônicos (com sua
busca da origem única, da substância originária),
aos eleatas (com a procura do Ser em seu sentido absoluto), até
Plotino (o neoplatonismo investigando a "alma-viajora"),
passando pela contribuição da doutrina de forma e matéria,
de Aristóteles (antecipação da teoria espírita
do perispírito), chegamos ao Renascimento. E é nesta
fase que a confluência se define: primeiro com a rebelião
de Abelardo, preparando o advento de Descartes; depois, com este,
o pai do pensamento moderno, que escreveu o "Discurso
do Método" sob inspiração
do Espírito da Verdade; a seguir com Espinosa, que fez da "Ética"
um livro precursor (em estrutura, substância e ligações
históricas) de "O Livro dos Espíritos".
A tradição filosófica é o terreno vasto
e profundo em que podemos descobrir as raízes da Filosofia
Espírita. Mas, como vimos, essa tradição se prolonga
até o mundo moderno que começou no Renascimento e veio
findar na guerra de 1914-18. E depois, no mundo contemporâneo,
reencontramos as conotações filosóficas do passado.
No mundo moderno podemos lembrar as figuras centrais de Hegel e Kant,
o primeiro com sua dialética da idéia (evolução
do princípio espiritual através da matéria) e
o segundo com sua teoria do número e do fenômeno e sua
crítica da razão (correspondentes à teoria espírita
da alma e matéria e a crítica da fé em Kardec).
Na atualidade as principais escolas filosóficas apresentam
relações evidentes com a Filosofia Espírita.
Estudaremos essas relações no prosseguimento deste trabalho.
Mas convém destacar desde logo o paralelismo da corrente filosófica
característica do pensamento atual com o Espiritismo. Paralelismo
tanto mais evidente quanto se apresenta no tempo e no espaço
(contemporaneidade), no método de abordagem dos problemas filosóficos
(o enfoque ontológico existencial), e na procura da compreensão
racional (humana e não teológica) da problemática
da existência. E a corrente das Filosofias da Existência,
que surgiu na mesma época do Espiritismo; na Europa, na mesma
posição assistemática (Kierkegaard e sua aversão
aos sistemas), com o mesmo processo de abordagem do problema do Ser
(através do ser humano na existência) e a mesma busca
de transcendência na interpretação da natureza
humana ou essência do ser.
Mas acontece com o Existencialismo o que Kardec assinalou no tocante
às ciências materiais: o paralelismo com o Espiritismo
vai até o limite da conceituação da "existência".
Depois desse limite o Espiritismo prossegue sozinho, investigando
e aprofundando o problema das relações interexistenciais,
que abre as possibilidades de comprovação das antigas
intuições sobre as existências múltiplas
do ser. No Espiritismo essas intuições, que desde a
antiga metempsicose egípcia, adotada pelos pitagóricos,
até a ressurreição judaica e a teoria católica
de ressurreição da carne se mantiveram no plano sobrenatural,
transformam-se em conceitos racionais comprovados pela experiência
e a investigação científica.
Chegamos assim a um ponto de contato da Filosofia Espírita
com o panteísmo de Espinosa, que é o da negação
do sobrenatural. A Filosofia Espírita não é panteísta,
o que está explícito em "O Livro dos
Espíritos". Mas isso não impede que
haja entre Espinosa e Kardec a concordância no tocante ao sobrenatural.
Para a Filosofia Espírita o sobrenatural, segundo a concepção
vigente até nossos dias, é apenas "o natural
ainda não conhecido", pois tudo quanto existe pertence
à Natureza e tudo quanto estiver além da Natureza não
é acessível ao nosso conhecimento (posição
paralela à do criticismo kantiano). Esse conceito de Natureza
no Espiritismo é um dos pontos mais significativos da Filosofia
Espírita e a coloca numa posição de vanguarda
perante o pensamento contemporâneo. Quando as ciências
atuais se viram obrigadas a adotar a expressão "paranormal",
como substitutiva da expressão "sobrenatural", nas
investigações sobre a natureza humana, nada mais fizeram
do que seguir a orientação firmada pelo pensamento espírita
há mais de um século.
Como se vê, desta simples exposição inicial, é
inegável a natureza de síntese da Filosofia Espírita.
Ela representa um daqueles momentos de confluência de todas
as conquistas culturais do homem para um delta comum, a que se refere
Arnold Toynbee no seus estudos sobre o desenvolvimento das civilizações.
Ernst Cassirer, filósofo alemão contemporâneo,
em seu ensaio "A Tragédia da Cultura";
analisa o processo de evolução cultural do homem através
das civilizações sucessivas, demonstrando que as conquistas
essenciais de cada época são transmitidas à outra
por meio de concretizações, de formas sintéticas
de expressão. O Espiritismo, como afirmaram Kardec, Léon
Denis, Sir Oliver Lodge, Gustave Geley, e Gonzales Soriano, entre
outros, é a síntese cultural do nosso tempo. A
Filosofia Espírita sintetiza em sua ampla e dinâmica
conceituação todas as conquistas reais da tradição
filosófica, ao mesmo tempo que inicia o novo ciclo dialético
da nova civilização em perspectiva.