O amor é o clarim que convoca
o ser para a existência. É o toque de caixa que o arranca
do mistério do não-ser. Um casal se encontra e se
funde no ato do amor, dois corpos vibram no mesmo diapasão,
o poder criador convulsiona as entranhas conjugadas na busca da
plenitude impossível, desencadeiam-se as forças genéticas
e a fecundação se processa no ritmo das células
germinais. O fruto do amor se define na caverna platônica
como o número primeiro dos pitagóricos, solitário
no inefável. O estremecimento erótico gera a década
de um novo cosmos. Deus nasce na gruta escura da contradição
dialética de espírito e matéria. Quem perturbar
ou interromper esse processo divino de uma nova gênese será
um deicida. A cólera dos elementos se desencadeará
sobre ele, porque um novo ser se projetou na existência e
ninguém em parte alguma e em nenhuma circunstância,
tem o direito de profanar a intimidade secreta em que a vida brota
do ser, em busca do amor.
A solidão do não-ser se rompe quando o Ser
Supremo e Absoluto pronuncia o fiat do relativo. Nasce
então, primeiro a relatividade, em que o Absoluto se parte
em pedaços e migalhas, como o pão; depois a temporalidade,
em que a experiência desenvolve os trigais do futuro; e, por
fim, a existencialidade, em que o ser relativo se projeta na conquista
da reascendência, que é o amor em essência, na
atualização das potencialidades possíveis.
Nessa fusão do ser, do tempo e do amor a se projetar na existência,
como um bólide que romperá a barreira da morte para
lançar-se no infinito atemporal.
Essa não é uma parábola mística, nem
uma cogitação filosófica ou o resultado de
uma análise científica, mas a intuição
total da realidade ôntica em suas perspectivas ontológicas
e existenciais. O não-ser não é uma
negação, mas uma cripto-hipótese do
Inefável pitagórico que se realiza na mônada,
essa semente do real-irreal, que, no existencial gera as almas-viajoras
do Plotino, povoando as hipóstases da estrutura cósmica
imóvel com a inquietação, as angústias
e o sentimento da fragilidade existencial. A metamorfose é
a lei suprema que rege o império de todo o esquema da infinitude
inefável. A única chave de que o ser dispõe
(como homem, anjo e deus) para mergulhar no mistério genésico
é o Amor, que ele perde na existência, arrebatado no
delírio das paixões, e só pode recuperar na
transcendência. O ser que se imanência no real-irreal
cai no onjeto, que só a angústia, o desespero e a
dor podem quebrar para libertá-lo de si mesmo.
Aceitar a imanência e apegar-se a ela é uma tendência
natural do ser na existência. Ele cai na rotina e se faz estagnação.
Marginaliza-se como água parada ao lado do fluxo existencial.
Acomoda-se ao ritmo das coisas, dos objetos e das convenções,
que são objetos sócio-culturais. Embora a cultura
seja necessariamente um fluxo, sua relação genética
com a sociedade tende sempre a diminuir a sua flexibilidade. Essa
diminuição pode resultar em estagnação
total, como se vê na história das grandes culturas
orientais e particularmente no exemplo da China Antiga. Todo ser
– tudo o que é – tende a conservar-se como é.
Esse instinto de conservação tanto existe nos objetos
concretos como nos abstratos. A dualidade universal nos mostra que
o existente (o homem) apega-se mais ao sensível
do que ao inteligível. É mais dominado pela afetividade
às sensações do que pelo raciocínio.
As sensações o retêm imantado ao plano genético,
impedindo a sua entrega ao fluxo da evolução cultural
e do desenvolvimento mental. As energias vitais preponderam nele
sobre as energias intelectuais. Ele pensa, aspira e sonha, mas,
principalmente, se acomoda à rotina, da qual somente se afasta
quando forçado. Essa disposição acomodatícia
cresce e engorda nas relações familiais, sociais e
nos compromissos profissionais. Daí a necessidade de períodos
duros, de situações problemáticas, de sofrimento
e dor para arrancá-lo da rotina. O ser projetado na existência
encontra a festa do mundo e a ela se entrega, mas a própria
existência dispõe de recursos para fazê-lo sentir
que é um ser dotado de consciência, deveres e responsabilidade.
O apego ilusório às coisas e à rotina fazem
parte de um processo disciplinar. A festa do mundo exige pagamento
de entrada e permanência, exerce vigilância sobre ele
e seu comportamento.
Logo na infância a sua afetividade se desenvolve em direções
várias e ele sente a ameaça da solidão e a
necessidade de buscar alguém. O instinto de imitação
desperta-lhe o desejo de encontrar o parceiro ou a parceira da vida,
como vê no modelo geral dos casais. Sua inocência aparente
o impele a sonhos de convivência misteriosa com alguém
que o espera numa esquina do mundo. Por baixo da inexperiência
infantil fermentam os resíduos de um passado desconhecido,
agitam-se os vetores de energias maduras e tensas, de mecanismos
psicobiológicos prontos a aflorar no processo de maturação.
Na fase infantil dos tateios, da curiosidade, das perguntas e dos
espantos, a inteireza do ser aguarda o momento de impor a sua realidade
à realidade do mundo.
Repete-se em cada nascimento, em cada penetração de
um ser na existência, o episódio do Cavalo de Tróia.
Ante a muralha do existencial os seres inexistentes vigiam como
os guerreiros gregos, protegidos por seus deuses. Um não-ser
ingênuo e puro, impotente e abandonado, é deixado ante
a porta-fortaleza. Os troianos, os que vivem e existem na realidade
plena, por trás da muralha, encantam-se com a doçura
e a fragilidade daquela criança exposta aos perigos, abrem
a porta e a recolhem, embalando-a em seus braços poderosos,
sem dar ouvidos às profecias de Cassandra. Mas no interior
da criança estão ocultos os conquistadores experientes.
A existência, essa Tróia cercada de muralhas no planalto
da vida, vai ser conquistada ferozmente pelos instintos de conquista
e domínio que explodirão no anoitecer. Cada não-ser
busca a sua Helena raptada, a sua contrafação que
o completará no plano existencial. Não há guerra
gratuita, batalha sem objetivo. Cada ser lançado na existência
é, ao mesmo tempo, um vetor energético e uma busca
emocional de realização humana. Muito antes de o primeiro
eclodir da virilidade na puberdade a marca do amor definia o não-ser
como o conquistador da existência.
Para os que estão por trás da muralha, na realidade
troiana, a imobilidade e a beleza escultural do Cavalo de Tróia
representam apenas a ingenuidade infantil dos sonhadores gregos.
Mas cada um deles, ao romper a muralha existencial, está
armado com os poderes de Eros. Basta se acomodarem na existência
para se firmarem nela, para logo se atirarem na batalha do amor,
não para destruir, mas para conquistar. A destruição
que causarem decorrerá da resistência que lhes opuserem,
mas cada destruição exterior corresponderá
a uma conquista interior. A existência é o mundo do
existente e ao mesmo tempo a rota da sua projeção
ao alvo que ele terá fatalmente de atingir: o Amor. Por isso
ele se empenhará na luta da conquista existencial em treinamento
constante, não para combater os outros seres e conquistar
as suas posses, mas para conquistar a si mesmo e descobrir em si,
no seu próprio interior, as jazidas auríferas das
quais extrairá o tesouro de suas potencialidades convertidas
na atualização de si mesmo. Por isso dizem os filósofos
existenciais que a existência é subjetividade pura.
O mundo existencial não é o mundo material em que
o ser realiza a sua façanha grega. Esse mundo é apenas
o palco eventual da sua batalha íntima, aquele point
d ’optiqu e romântico da expressão de Victor
Hugo, ali, por trás das máscaras e em meio das cortinas
em que ele representa o seu papel, centralizando em aparatos convencionais
toda a riqueza e diversidade das dores e inquietações
dos homens. A conquista da vida não pertence a ele, mas àquele
poder que, segundo Hegel, se desdobra na História e para
Bergson é o elâ vital que se infiltra na matéria
e a domina, gerando as espécies vivas e plasmando as suas
formas, os seus instrumentos de ação exterior. O homem
é o ser de si mesmo, a alma, a personalidade, o eu oculto
que só se revela no processo de relação. Mas
arrasta consigo o ser do corpo, de que trata Kardec, esse
estranho Sancho, escudeiro, escudeiro do Quixote nas lutas contra
os moinhos de vento. Mas Sancho não é o não-ser
ou a sombra do ser, como querem alguns pensadores, pois tem o seu
próprio ser e exerce a função de vigilante
e crítico do cavaleiro audaz. Ambos avançam, como
Davi, ao encontro dos gigantes de um só olho, não
pelos gigantes mas por Dulcinéia. Abater os gigantes, que
são deformações da realidade, é função
do Cavaleiro que o pajem não consegue compreender. Rocinante
obedece ao Quixote como o ser do corpo obedece ao ser
espiritual, mas Sancho é o crítico da razão
comum, do bom senso burguês que não pode entender as
ações heróicas do cavaleiro por sua Dama. A
visão esquizofrênica do Quixote abrange a supra-realidade
dos símbolos dos mitos, mas a visão normal de Sancho,
condicionada pelo nível prático da vida no burgo,
não alcança além das aparências materiais.
Por isso, o ser verdadeiro, aquele que é em si por si, limita-se
a utilizar Sancho como utiliza Rocinante em suas investidas contra
as deformações do homem, a começar de si mesmo,
para que o mundo de Dulcinéia se torne adequado à
sua beleza e à finura do seu espírito. A natureza
dramática do homem, que Unamuno acentuou, decorre dessas
contradições internas da sua posição
existencial. Descartes já havia observado a necessidade de
prevenir-nos contra a confusão habitual da alma com o corpo.
Dessa confusão resulta o abastardamento do amor, reduzido
a simples exigência biológica e em conseqüência
e logo mais atirado entre os subprodutos sensoriais. O amor assim
amesquinhado e aviltado vinga-se do homem nivelando-o com os animais
e rebaixando-o a eles, que têm pelo menos a desculpa da inconsciência.
Richet, o fisiologista, depois de suas numerosas e bem sucedidas
pesquisas metapsíquicas, chegou à conclusão
de que a finalidade da vida humana se reduz à reprodução
e, portanto, à manutenção da espécie.
Uma conclusão tipicamente fisiológica, apegada à
visão exclusiva das funções animais. Mas, já
no fim de sua existência, reformulou o seu injusto veredicto,
admitindo, como escreveu a Bozzano na Itália e a Cairbar
Schutel no Brasil, que os fenômenos metapsíquicos provam
a natureza espiritual do homem e que mors janua vitae,
ou seja: a morte é a porta da vida. A famosa proposição
posterior de Hideggard, de que o homem se completa
na morte, referendou a afirmação de Richet. O
homem é o existente, o ser enquanto projetado na
existência. Seu trajeto existencial vai da concepção
do ventre materno até o momento final da morte. Admitir a
inocuidade desse trajeto, como simples círculo vicioso de
gerações incessantemente destinadas ao aniquilamento
é reduzir o ser à nadificação sartreana,
mas o nada, como Kant demonstrou, não passa de um conceito
vazio, uma palavra que podemos considerar como simples emissão
de sons sem sentido. Sua única justificativa está
na sua natureza relativa rés, da Coisa em si e do Todo, do
conjunto da realidade universal que é plenitude. A natureza
estrutural do Universo, hoje definitivamente provada pelas Ciências,
dá mais razão a Talles de Mileto, para quem o
mundo é pleno de deuses, do que a todos os pregoeiros
do nada. Todos os sofismas levantados contra a visão teológica
da realidade caíram no absurdo ante as conquistas científicas
deste meio século. O Universo é uma estrutura de forças
que se sustenta e desenvolve no jogo incessante dos seus poderes
em equilíbrio perpétuo. As concepções
escatológicas esbarram na impossibilidade total, absoluta,
de sua comprovação. Os deuses de Talles podem ser
substituídos pelas leis naturais, pois a mitologia do seu
tempo nada mais era que a visão antropomórfica da
realidade. Mesmo assim, os pensadores mais penetrantes e coerentes
não podem dispensar a presença de uma inteligência
atuante na ordenação e manutenção da
realidade. Para os homens da era mitológica, essa inteligência
era múltipla e gerou o politeísmo. Para os homens
da era da razão a fonte inteligente dessa unidade absoluta,
da natureza monística da realidade universal, só pode
ser uma, concentrando seus poderes múltiplos na figura de
uma consciência cósmica, que é o Tao dos antigos
chineses, o Zeus grego cercado de auxiliares anteomórficos
mas soberano em suas decisões, o Marduc persa que dividia
e organizava o caos na estruturação de suas leis ou
o Deus Único do Judaísmo e do Cristianismo. O Ateísmo
é hoje uma posição falsa do pensamento que
só se justifica pela rebelião necessária e
justa do passado contra a concepção antropomórfica
de Deus pelas religiões da violência. Mas essa justificativa
se aplica ao passado e não às condições
culturais da atualidade.
Se há complexa organização cósmica,
como negar-lhe a condição afetiva que gera o Amor
com uma finalidade superior e o condiciona aos instrumentos da reprodução
genésica para que os seres não se percam nos delírios
da sensualidade, mas valorizem a si mesmos como necessários
e significativos na ordem estrutural do Universo?
Se o pensamento filosófico atual, a partir das pesquisas
teológicas de Kierkegaard, desenvolvendo-se na cogitação
ontológica de Hideggard e tropeçando nas contradições
de Sartre, para depois se firmar no transcendentalismo de Jaspers,
confirma-se no avanço das Ciências e coloca-se numa
posição irremovível ante a realidade do ser,
é evidente que o problema do amor se desloca do romantismo
para o campo do racionalismo. É através da razão
que podemos captar a natureza real do sentimento e descobrir a sua
significação profunda, o seu verdadeiro sentido nas
relações existenciais.
Simone de Beauvoir confessa que ao ler Sartre teve de arrastar-se
por longos subterrâneos escuros e asfixiantes até encontrar
a alvorada de uma conclusão libertadora. É difícil
pensarmos numa alvorada ante uma conclusão nadificadora.
Mas o nada sartreano se desfaz ante a sua posição
humanista, o seu amor pela Humanidade. O filósofo do Nada
nega-se a si mesmo e tripudia sobre a sua doutrina negativa ao encontrar
pelo menos uma suposição de vitória do homem
sobre a sociedade, da liberdade sobre a tirania. Este é um
exemplo da história do pensamento atual que demonstra a importância
do amor nos descaminhos da existência. Amor e liberdade constituem
a bandeira de Sartre e são a única senha que lhe dá
passagem à posteridade. Seu mergulho na essência do
ser levou-o à angústia da frustração
total e absoluta. Mas o seu amor pelos homens o salva, levando-o
à conclusão que ele não buscou, mas que a própria
existência lhe ofereceu num gesto generoso – a de que
toda frustração do pensamento se converte em compensação
quando mantemos acesa no coração a lâmpada do
amor.
Fala-se muito no amor em termos convencionais. A expressão
italiana fazer amor propagou-se no mundo e contaminou as
novas gerações. É uma expressão de baixeza
repugnante, porque reduz o sentido do amor ao ato sexual e ao comércio
aviltante do ser como no mercado das sensações carnais.
Em recente pesquisa no Rio a maioria dos jovens universitários
declarou não ver nenhuma distinção entre amor
e sexo. Chegamos ao máximo no aviltamento da criatura humana
e essa situação vexatória só pode ser
combatida com recursos culturais que afugentem as trevas da ignorância
dos nossos meios universitários. Trata-se de um problema
puramente cultural.
* * *
Fonte: no livro
"Pesquisa sobre o Amor" - capítulo 1
http://www.editorapaideia.com.br/default.asp?id=9&acao=1&id_trecho=12