Concedo-me o direito de abstrair-me
do problema de Deus para examinar a questão da criação
do homem. Os cientistas se colocaram precisamente nessa posição
e admitiram a existência de um processo evolutivo no qual
o homem aparece como o resultado de uma filogênese fantástica.
Dos animais inferiores até os superiores, num desenvolvimento
progressivo e complexo, as forças naturais modelaram formas
sucessivas de vida que deram como resultado o aparecimento da espécie
humana na Terra. A superioridade do homem ante as espécies
animais de que ele procederia suscitou dúvidas e debates
que permanecem até hoje. Simone de Beauvoir (1),
discípula e companheira de Sartre no campo da concepção
existencialista sem Deus, admitiu que a palavra espécie não
pode ser aplicada à humanidade, que não é uma
espécie animal, mas um devir (vir a ser), algo em
auto-evolução constante e irrefreável. Alfred
Russell Wallace (2), êmulo de
Darwin no campo evolucionista, opôs-se ao materialismo biológico
daquele, sustentando uma posição espiritualista. De
Spencer a Bergson a concepção evolucionista conseguiu
firmar-se como a mais elevada interpretação da realidade,
apesar da insistência das correntes dogmáticas-religiosas
e das correntes irracionalistas em combatê-la, considerando-a
simples teoria metafísica sem bases científicas.
Após a segunda guerra mundial e em conseqüência
das atrocidades a que grandes nações civilizadas foram
conduzidas, o pessimismo levou o homem a novas formas de dúvida.
Passou-se a falar em mudanças não em progresso ou
evolução. Produto do susto e da decepção,
esse recuo está sendo superado pelo próprio avanço
científico, em que os processos da evolução
se confirmam continuamente. Kardec já advertia, no século
passado, que o mal das interpretações humanas está
na falta de uma visão mais ampla e profunda da realidade.
Os homens vêem apenas um ângulo do quadro geral da Natureza
e se apegam a essa percepção restrita para a elaboração
de seus pensamentos. Exemplo típico dessa restrição
mental é a tentativa, hoje renovada, de separar a evolução
biológica, considerada inegável, dos demais aspectos
do processo evolutivo universal. Uma restrição arbitrária,
característica da orientação analítica
da pesquisa científica e oposta à visão de
conjunto dos métodos conclusivos da reflexão filosófica.
Na Ciência, como em tudo, temos de reconhecer a oposição
dos contrários. O método analítico é
uma faca de dois gumes. Por um lado nos faculta a precisão
objetiva no conhecimento de uma realidade específica, por
outro lado nos impede a visão de conjunto. Foi exatamente
por isso que se tornou necessário, após o aparente
desprestígio da Filosofia, ante as conquistas inegáveis
da pesquisa científica, recorrer-se à Filosofia das
Ciências para evitar-se a fragmentação total
do Conhecimento. Só no plano filosófico se tornou
possível reajustar as conquistas científicas num quadro
geral de interpretação da realidade. Mas existe outro
fator determinante da desconfiança científica em relação
dos princípios espíritas, que é o instinto
de conservação, agente preservador da integridade
do homem e das suas realizações. Esse instinto, bem
manifesto no sócio-centrismo das instituições
científicas ou de qualquer outra natureza, reage contra tudo
o que possa modificar o saber já considerado como adquirido.
Recentemente, o Prof. Remy Chauvin, do instituto de Altos Estudos
de Paris, denunciou a existência no campo científico
de uma alergia ao futuro, responsável pela rejeição
liminar, sem exame, de toda novidade, mesmo que sustentada por cientistas
categorizados. Essa neofobia tem produzido muitos mártires
no campo científico e cultural em geral.
Pouco a pouco, porém, e hoje mais rapidamente do que no passado,
essa posição acomodatícia vai sendo vencida
pelas próprias exigências do progresso, da 'evolução
científica. Em nossos dias, a descoberta da antimatéria,
as pesquisas cósmicas, o reconhecimento dos fenômenos
paranormais através da Parapsicologia, a recente descoberta
do corpo-bioplásmico do homem e de todos os seres, o êxito,
ainda incipiente mas já significativo das pesquisas sobre
a reencarnação, a constatação da existência
de outras dimensões da realidade, a evolução
do conceito de universos-paralelos para o de universos-interpenetrados,
a aceitação da pluralidade dos mundos habitados e
da escala evolutiva dos mundos - proposta há mais de um século
pelo Espiritismo - estão arrancando as corporações
científicas de suas cômodas poltronas acadêmicas
e lançando-as decisivamente em órbita, nas rotas giratórias
do progresso. Lembro-me de um poema de Rainer Maria Rilke, em que
ele se compara a um falcão que gira em circulo crescentes
em torno a uma torre secular, símbolo de Deus. E uma imagem
feliz da evolução, que se processa em espiral. O retorno
à barbárie na segunda guerra mundial não representa
retrocesso da evolução humana, mas apenas uma curva
decrescente da espiral que tocou os resíduos bárbaros
do homem - a região subterrânea dos instintos animais
- para uma espécie de catarse coletiva. Mas tudo serve para
a exploração dos que se entregam ao comodismo e dos
que ainda não conseguiram desprender o seu pensamento dos
objetos materiais. A História da Matemática nos mostra
que o pensamento dos primitivos era de tal maneira apegado ao concreto
que, nas tribos selvagens, a contagem das coisas não excedia
ao número de dedos das mãos, indo quando muito até
à soma dos dedos dos pés. A posição
dos anti-evolucionistas atuais assemelha-se, guardadas as distâncias
culturais, à dos selvagens presos aos seus próprios
dedos. Temos a prova da evolução em nós mesmos
e em tudo o que nos rodeia, mas os espíritos sistemáticos
e opiniáticos querem as favas contadas onde não há
favas.
O Espiritismo ensina que tudo se encadeia no Universo,
numa seqüência constante de relações. No
item 540 de "O Livro dos Espíritos",
obra fundamental da doutrina, encontramos esta proposição:
Tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo
até o Arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo.
Assim, do átomo nasce o minério, deste o vegetal,
deste o animal, deste o homem e deste o Anjo, o Arcanjo e quantas
criaturas espirituais quisermos enumerar. Por isso, o sobrenatural
desaparece quando admitimos o processo continuo da evolução.
A Natureza nos mostra as duas faces da concepção de
Espinosa, com sua teoria da Natureza naturata e da Natureza
Naturans, equivalente ao conceito de mundo sensível
e mundo inteligível, do pensamento de Platão, interligados
e interatuantes. O que poderia existir fora da Natureza? Deus? Mas
já vimos que a fonte originária, pelo fato mesmo de
ser a origem de tudo está ligada ao Todo e nele se insere.
Podemos, como os druidas (os sacerdotes celtas das Gálias)
imaginar o Universo formado por três círculos: o de
Gwinfid, em que Deus permanece; o de Abred, em
que vivemos as nossas vidas carnais; o de Anunf, correspondente
às regiões inferiores do plano evolutivo. Mas na concepção
materialista o círculo de Gwinfid não pode existir,
uma vez que Deus foi excluído (3).
Como podemos considerar a criação do homem sem a ação
de Deus? E o que tentaremos expor agora.
A união de dois princípios fundamentais, força
e matéria, existentes no caos primitivo, determina o aparecimento
das estruturas atômicas. Os átomos se aglutinam em
formações diversas e produzem os elementos minerais.
Mas estes elementos não estão mortos, não são
estáticos. No seio da sua aparente placidez os átomos
continuam em permanente agitação e produzem, quando
as condições se tornam favoráveis, as primeiras
formas vegetais. Nestas formas temos o nascimento da sensibilidade
rudimentar, que vai desenvolver-se até a produção
das primeiras formas animais. A atividade atómica transmite-se
a essas formas produzindo a motilidade, a capacidade de movimentação
própria, que arranca os animais do solo e os submete às
experiências vitais. A sensibilidade se aguça e se
aprimora através de milénios. Os cérebros rudimentares
se desenvolvem e se enriquecem, o sistema nervoso (desenvolvimento
do sistema fibroso vegetal) estrutura-se numa rede sensível,
permitindo a organização de um aparelho cerebral que
capta e reelabora os estímulos exteriores. Os animais evoluem
até o aparecimento dos primatas, que assinalam o salto qualitativo
do cérebro animal para o cérebro humano.
Eis, em linhas gerais, nesse esquema superficial, o processo de
criação do homem. Quanto mais simples
esse esquema, mais fácil para compreendermos
a lenta elaboração da criatura humana a partir da
noite dos primórdios. E de supor-se que essa criatura grosseira,
elaborada a partir do mineral, não tenha qualquer outra experiência
além das que enfrentou no processo de sua formação.
Mas acontece que o homem se mostra dotado de uma inteligência
criadora, capaz de desenvolvimento sem limites da sua imaginação
e - o que mais assombra - dotada de um anseio crescente de elevar-se
além da sua condição humana e atingir uma posição
superior de que ele jamais podia ter tido algum vislumbre. Quanto
mais se desenvolve, mais se acentua nele o contraste entre a sua
condição primitiva - de bicho da Terra tão
pequeno, como escreveu Camões - e os seus anseios insopitáveis
de elevação e comunicação com planos
e seres superiores, que ele nunca podia ter visto. De onde vem tudo
isso? Supõem os materialistas que se trata de produtos da
imaginação excitada pelo medo, num desejo natural
de alcançar a segurança através de criações
imaginárias. Mas como explicar a coerência dessas criações
arbitrárias com os fenômenos paranormais, cuja existência
está hoje cientificamente provada? Que dizer de uma idéia
primitiva, coma a de uma duplicata do corpo material que pode projetar-se
à distância, que Spencer atribuiu simplesmente ao sonho,
quando esse corpo hoje se confirma através da pesquisa cientifica
no campo da Física e da Biologia, par pesquisadores materialistas?
Esse é o momento em que temos de voltar à idéia
de Deus inata na criatura humana - o Ser perfeito de Descartes encontrado
no fundo da sua própria imperfeição - à
lei de adoração assinalada por Kardec e que exerceu
papel decisivo na orientação do homem para a sua humanização.
O acaso da concepção materialista transforma-se necessariamente
numa inteligência cósmica a desafiar, por sua grandeza
e sua inegável sabedoria na construção universal,
a miserável inteligência humana, capaz de tudo atribuir
a um jogo de forças cegas no seio de uma nebulosa. Não
precisamos nem mesmo pensar nas formações complexas
do homem ou do anjo. Podemos ficar nos primórdios, examinando
apenas a estrutura do átomo, a construção infinitesimal
desse universo microscópico, ou melhor, infra-microscópico.
Mas se olharmos para cima e pensarmos nos sistemas solares, na galáxia
e nas super-galáxias, o absurdo da concepção
materialista se tornará simplesmente monstruoso. Sentiremos
as orelhas de Midas substituirem, peludas e agudas, as nossas delicadas
orelhas humanas.
E o que dizer da experiência de Deus procurada através
de artifícios religiosos, depois dessa imensa extensão
percorrida pela humanidade através dos milênios, numa
experiência natural e vital em que as forças da vida
vão brotando do chão do planeta e projetando-se às
profundidades cósmicas? E como se milionários ensandecidos
resolvessem juntar-se num quarto escuro, de portas e janelas fechadas,
para contar os níqueis do bolso do colete a fim de avaliar
quanto possuem, para terem a experiência do dinheiro. Basta
isso para mostrar-nos a razão da crise religiosa do presente.
Os homens começaram a descobrir que possuem muito mais do
que as igrejas lhes podem dar.
Criado do limo da terra, segundo a alegoria bíblica, arrancado
das entranhas do reino mineral, segundo a teoria evolucionista espírita,
o homem está ainda em formação, em desenvolvimento,
amadurecendo nas experiências que enfrenta na existência
corporal. O corpo é o seu instrumento de evolução.
Um instrumento vivo e ativo que ele precisa controlar pela força
do espírito. Na proporção em que avança,
o espírito se impõe ao corpo e o domina. A dialética
da evolução torna-se nele um processo consciente.
E o responsável único pelo sucesso ou fracasso do
seu destino. Deus está nele como um poder mantenedor e orientador,
mas não punitivo (4). Ele mesmo
se castiga ante o tribunal da sua consciência.
Quando se dispõe a progredir, o prêmio que recebe é
a graça que o fortalece para que possa vencer o mal. Ninguém
pode perdoar os seus erros, apagar as suas faltas. Dispõe
da jurisdição de si mesmo e supera o seu condicionamento
determinista pelas decisões do seu livre-arbítrio.
Juiz e réu ao mesmo tempo, pode julgar-se com pleno conhecimento
de causa.
---------
NOTAS DO A ERA DO ESPÍRITO:
(1) http://www.simonebeauvoir.kit.net/
(2) http://www.geocities.com/gilson_medufpr/wallace.html
(3) Ver Revista Espírita (Jornal de Estudos Psicológicos
(Allan Kardec)), ABRIL 1858, O Espiritismo entre os Druidas
(4) Ver pesquisa CASTIGOS, SIM. PENAS ETERNAS, NÃO.
in http://aeradoespirito.sites.uol.com.br/A_ERA_DO_ESPIRITO_-_Portal/ARTIGOS/Indice/INDICE_Estudos.html
Fonte: no livro AGONIA DAS RELIGIÕES,
cap. VI.