Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as noções
centrais para se compreender o ethos do ubuntu?
Charles Haws –
Ubuntu significa principalmente a interconexidade dos seres humanos,
que é uma determinação da compreensão
dos seres humanos como seres fundamentalmente livres – livres,
por exemplo, de qualquer limitação fora da pessoa individual.
Como o traduz a proverbial expressão xhosa, ubuntu ungamntu
ngabanye abantu, “a humanidade de cada indivíduo está
idealmente expressa na relação com outros” ou,
se me é permitido parafrasear Tutu, o ubuntu é “liberdade
indivisível”. É justamente essa tensão
que me intriga em relação ao ubuntu e que chama a minha
atenção, algo que também Robert Orsi comunica
no último Harvard Divinity Bulletin. Para me envolver com o
outro como sujeito, como um indivíduo livre como eu mesmo,
como outros seres humanos, eu “também tenho de me tornar
sujeito” através do “reconhecimento de nossa sujeição
comum à história, à contingência e ao destino”
. Eu tenho de reconhecer minha própria liberdade indivisível,
de que eu sou quem eu sou em relação com outros. Envolvemo-nos
com o mundo, continua Orsi, através das circunstâncias
dentro das quais nos encontramos junto com eles – é assim
que eu compreendo o ubuntu.
Também é importante reconhecer que o ubuntu é
um termo sul-africano que representa um ethos africano polissêmico
humanista e religioso. Variações do conceito proliferam
nas línguas banto, que se multiplicam na África central,
oriental e meridional. Elas geralmente expressam comunitariedade,
respeito, dignidade e generosidade.
IHU On-Line – Qual a contribuição
da teologia do reverendo Tutu para a compreensão do ubuntu?
Charles Haws – Uma compreensão
popular do ubuntu em evidência hoje deriva do uso do conceito
como nome de um sistema operacional de código-fonte aberto
desenvolvido pela Linux . O sistema é movido por uma filosofia
de software livre. De fato, como visa a difundir e a levar os benefícios
do software para todas as partes do mundo, a filosofia ubuntu expressa
pela Linux enfoca a liberdade, a liberdade de “baixar, rodar,
copiar, distribuir, estudar, compartilhar, mudar e melhorar seu software
para qualquer propósito, sem pagar taxas de licenciamento”;
de “usar seu software na língua de sua escolha”;
e de “usar softwares mesmo que trabalhem sob uma deficiência”
.
A compreensão popular apresentada pelo software
da Linux dificilmente constitui a concepção robusta
que Tutu tem do ubuntu. Sua teologia se concentra não na liberdade
de indivíduos, mas na interconexidade desses indivíduos
ou, como eu disse acima, na “liberdade indivisível”.
É isso que me atrai tanto no conceito, no seu potencial: o
fato de compreender a liberdade em relação a certo tipo
de unidade, um tipo de unidade cuja possibilidade não reside
na mesmidade, mas na justiça. É isso que Tutu diz em
Hope and Suffering (p. 23): “Para que haja unidade, ela deve
se basear, em última análise, no valor da justiça”.
Agora, o ubuntu avança rumo à justiça, não
à vingança; ele se dirige rumo à restauração,
não à retaliação. A teologia de Tutu entrelaça
o ubuntu no tecido da história cristã, afirmando que
Deus criou a humanidade indissoluvelmente interconectada. A declaração
do ubuntu é a declaração de uma esperança
transformadora, uma esperança por reconciliação
e sua concretização em meio à vida humana, que
está fragmentada e repleta de injustiça.
IHU On-Line – Para o senhor, “a teologia
do ubuntu de Tutu é desafiadora para a compreensão dominante
da teologia ocidental”. Por quê?
Charles Haws – O ubuntu se
distingue tanto do individualismo cartesiano quanto do coletivismo
homogêneo da submissão à “vontade geral”
de Rousseau . Em A democracia na América, De Tocqueville
compara o pai da filosofia moderna, Descartes , com o pai do protestantismo,
Lutero, satirizando: “Quem não percebe que Lutero, Descartes
e Voltaire empregaram o mesmo método?”. Seu método
comum de dependência de si mesmo, expresso em uma desconsideração
geral pela comunidade e tradição, passou a ser uma parte
central não só da ideologia americana, na qual De Tocqueville
se concentrou, mas também da teologia ocidental. A esse individualismo
do Ocidente, contrapõe-se a ideia da “vontade geral”
de Rousseau: o indivíduo se submete à república
aderindo ao contrato social, e o contrato social representa a conformação
ou homogeneização dos interesses individuais em interesses
coletivos. O indivíduo transfere seus direitos à comunidade
para suprimir a anarquia e alcançar segurança da vida
e da propriedade; seu propósito é formar uma sociedade
a que ele se submeteria completamente.
De acordo com o ubuntu, nenhuma dessas opções combina
satisfatoriamente a liberdade e a autonomia do indivíduo com
sua responsabilidade pelos outros; nenhuma das opções
o chama a assumir o fato de ser livre somente na medida em que está
interconectado, e que sua liberdade é inseparável de
sua busca por justiça. De fato, a compreensão teológica
do ubuntu por parte de Tutu afirma que Deus criou a humanidade indissoluvelmente
interconectada. Mas o individualismo prolifera em muitas teologias
ocidentais, tanto acadêmicas quanto eclesiais: elas tendem a
centralizar o indivíduo em termos de experiência religiosa
– o indivíduo tem uma revelação pessoal,
muitas vezes inexplicável – ou em termos de autoridade
religiosa – o crente individual é responsável
diante de Deus por sua aceitação ou rejeição
do evangelho. O ubuntu enfoca não só a divisão
de indivíduos, mas também a divisão de grupos,
a confrontação de grupo contra grupo.
Tutu acreditava que esse era o caso da Igreja sul-africana branca
na questão do apartheid, cuja cumplicidade se refletiu fortemente
nas convicções teológicas da Igreja. Se a Igreja
sul-africana branca não se considerava responsável por
intervir, por condenar a sistemática segregação
do apartheid, então ela não tinha qualquer percepção
de sua conexidade com os negros.
IHU On-Line – A partir da ética
do mundo, como é possível compreender a importância
e o sentido da reconciliação e da justiça?
Charles Haws –
Citando Derrida, poderíamos dizer que a afirmação
da conexidade em meio ao apartheid por parte de Tutu – que os
africânderes não estavam livres dos povos xhosa ou zulu
(ou vice-versa) – era efetivamente desobediência civil,
“não desafio da lei, mas desobediência com relação
a alguma disposição legislativa em nome de uma lei melhor
ou superior” . A lei superior do ubuntu é a justiça
em um sentido total e restaurador, não parcial ou retributivo.
A “ética” ubuntu pressupõe a reconciliação
na medida em que define justiça em termos de socialidade, de
relação com o Outro; para alcançar a justiça,
especialmente em contextos repletos de divisões, é necessário
restaurar as relações entre o meu próprio “eu”
e o meu próprio Outro. A justiça definida dessa maneira
equivale à lei superior que o ubuntu quer continuamente nos
trazer à lembrança.
Assim, em uma era de terrorismo globalizado, da exploração
de sociedades abertas e da tentativa de afirmar (embora de maneiras
calculadas) as regras da lei democrática e dos direitos humanos,
o que o ubuntu busca? Como professor visitante do programa “Semester
at Sea”, durante a primavera de 2007, Tutu discutiu o clima
de medo existente nos EUA depois do 11 de setembro – uma terrível
atmosfera de insegurança. Mas Tutu tinha a esperança
de que os norte-americanos veriam sua segurança vinculada com
a segurança de todos os demais. Lembro de assistir aos acontecimentos
do dia 11 de setembro na televisão da sala de aula, estupefato
e atônito, junto com todos os meus colegas, praticamente sem
entender o que estava acontecendo. Qualquer que tenha sido a justificativa
para começar a Guerra no Iraque, a presença norte-americana
no Oriente Médio se concentra agora no “terrorismo”,
em desmantelar suas raízes para que seus ramos não alcancem
as praias norte-americanas de novo.
Não faço parte da geração de norte-americanos
que seguiu Bush para o Iraque. Mas faço parte da geração
de norte-americanos que precisam lidar com suas consequências,
a herança do 11 de setembro e de um clima internacional de
radicalização e antecipação. Se o ubuntu
realmente é um conceito robusto, devo perguntar qual é
seu papel nesse contexto. Como os “interesses nacionais”
do “meu” país se relacionam com o ubuntu? Com que
Outro os EUA estão relacionados e por quem são responsáveis?
O que significaria se, olhando pela ótica do ubuntu, os EUA
“não se sentissem ameaçados pelo fato de outros
serem capazes e bons” e “se situassem em um todo maior
e fossem diminuídos quando outros são humilhados ou
diminuídos, quando outros são torturados ou oprimidos”?
A autonomia luterano-cartesiana mencionada anteriormente impregna
o sujeito humanista, pois, como “o ser humano é a medida
de todas as coisas”, ele é o autor de todos os sentidos
e tem o domínio sobre si mesmo e seu mundo. Heidegger questiona
essa tradição no Ocidente: “Pelo fato de estarmos
falando contra o ‘humanismo’, as pessoas temem uma defesa
do desumano e uma glorificação da brutalidade bárbara.
Pois, o que é mais ‘lógico’ do que isto:
quem nega o humanismo, não lhe resta senão afirmar a
desumanidade? (...) Deveria estar mais claro agora que a oposição
ao ‘humanismo’ de forma alguma implica na defesa do desumano,
mas, ao contrário, abre outras perspectivas”.
De fato, o apartheid seria a brutalidade desumana e bárbara
a ser denunciada, e o ubuntu ofereceria um “humanismo”
alternativo ao sabor do apartheid, de gosto amargo. O ubuntu criticaria
o sujeito humanista como dominador e autônomo – no caso
do apartheid sul-africano, o africânder como superior –
definindo o “sujeito”, pelo contrário, como relacional...
Junto com a obra de Lévinas , Derrida, Nancy e outros, o que
eu encontro no ubuntu é um tipo de movimento duplo que “não
converte a relação anárquica e assimétrica
com o Outro na visão sinótica da totalidade social,
nem institui um novo princípio de justiça baseado no
ideal comunitário dos valores morais compartilhados”.
Voltando a Heidegger, uma das percepções mais importantes
e temáticas centrais de Jean-Luc Nancy é que os indivíduos
de forma alguma estão fundamentalmente separados um do outro,
o que é muitíssimo semelhante à concepção
de Heidegger a respeito de Mitsein [“ser-com”] em Ser
e tempo (1929). Apesar da radical dissolução da comunidade
na era pós-moderna, Nancy amplia sua perspicácia filosófica
para nos lembrar de nossa existência singular-plural –
que sempre-já existimos em relação uns com os
outros. Não existe um eu singular que preexista a nossas relações
com os outros; sempre existimos tanto no singular quanto no plural;
seres singulares existem apenas em uma “socialidade” original.
Essa é a ideia do conceito de compearance – que considero
muito semelhante ao ubuntu em sua acepção mais básica
– que aparece em The Inoperative Community (1991) de Nancy,
no ensaio em Political Theory intitulado La Comparution/The Compearance
(1992) e em Being Singular Plural. Ou, nas palavras de Derrida, já
estamos envolvidos na “relação com o Outro antes
de qualquer socius organizado” . E, no entanto, embora existamos
em uma “socialidade” original, não devemos conceber
“o ‘comum’ [commun]” como “o como-um
[comme-un]” , pois a própria “respiração
de toda ‘comunidade’”, explica Derrida, é
“um certo desenredamento interruptor (...) do ‘vínculo
social’”.
IHU On-Line – Como o ubuntu pode nos
ajudar a entender a noção de “comunidade cristã”?
Podemos dizer que Jesus também viveu o ethos do ubuntu?
Charles Haws – Como escreve
o biógrafo Anthony Sampson , Mandela foi educado com a noção
africana da fraternidade humana, ou ubuntu, que descrevia uma qualidade
de responsabilidade e compaixão mútuas. Mandela contava
histórias sobre uma pessoa que viajava por um país e
parava em um vilarejo para pedir água e comida. O que levava
os habitantes da aldeia a dar aquilo de que o estrangeiro necessitava
era o ubuntu, diz ele. Esse certamente parece ser o ethos cultivado
pelas histórias de Jesus em que ele anda pelo mundo greco-romano
somente com uma túnica e sandálias. Certamente concordo
que certos aspectos das histórias que os cristãos contam
sobre Jesus ilustram o ubuntu, mas considero, em última análise,
que o ubuntu transcende, inclusive ultrapassa, as fronteiras do cristianismo.
De fato, o ubuntu é tanto humanista quanto religioso (talvez
sem afirmar uma dicotomia entre ambos os aspectos). Eu diria que ele
cultiva uma religião humanista ou um humanismo religioso que
milita contra sua própria colonização. Considerando
que as comunidades tendem a neutralizar as diferenças, tratando
todos os membros da mesma forma (por exemplo, o outro pertence à
minha comunidade somente na medida em que é igual a mim), e
a definir a si mesmas segundo uma lógica de oposição
(por exemplo, excluindo o outro que não é como eu) –
que são fatores muito atuantes no cristianismo –, o ubuntu
nos devolve à interconexidade dos seres humanos sem a presunção
de semelhança.
Além disso, eu identificaria, com Nancy, “a essência
do cristianismo como abertura: uma abertura do ‘eu’ e
do ‘eu’ como abertura” . Assim, eu diria que o ubuntu
nos ajuda a compreender a noção de “comunidade
cristã” lembrando-nos de um tipo de kenosis na busca
da justiça que não espera para perguntar a quem você
reza (ou não reza).
IHU On-Line – O senhor afirma que, à
luz do ubuntu, “o perdão (…) deve se mostrar mais
profundamente quando toda a esperança está perdida”.
Em sociedades com forte violência e pobreza, como as africanas
e as latino-americanas, qual a contribuição do ubuntu
para a construção de uma sociedade mais justa?
Charles Haws –
Escrevi em um artigo anterior que, para Tutu, “Deus, em Jesus
Cristo, reconcilia a humanidade com o divino, afirmando a particularidade
humana na particularidade de Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que também
conecta a humanidade à bondade universal de Deus”. Essa
ideia de reconciliação e de perdão é essencial
ao cristianismo. O perdão da humanidade por Deus em Cristo
e a formação da comunidade sobre esse fundamento caracteriza
o cristianismo por excelência. Ter fé na possibilidade
da reconciliação e do perdão segue e dá
esperança quando toda a esperança está perdida.
Tutu compreende que o perdão não é decorrência
de mérito, que a reconciliação procede da convicção
ubuntu – a percepção da interconexidade.
O perdão, mesmo em sociedades marcadas por violência
e pobreza, efetiva-se, de acordo com o ubuntu, ao buscar a reconciliação,
ao recusar perpetuar ciclos de sujeição à retaliação
ou de responsabilização do tipo “toma lá,
dá cá”. O ubuntu nos coloca estas perguntas: cremos
que pertencemos a um todo maior e somos diminuídos quando outros
são humilhados ou diminuídos, e, parafraseando Mandela,
vamos perdoar, procurar a reconciliação – viver
de acordo com o ubuntu – a fim de possibilitar que as comunidades
ao nosso redor sejam capazes de melhorar?
IHU On-Line – A partir do ethos do ubuntu,
qual a compreensão da nossa relação com a natureza
e da proteção das vidas de seres não humanos?
Charles Haws – Se compreendemos
corretamente que “a humanidade de cada indivíduo se expressa
em termos ideais na relação com outros” ou que
“eu sou eu mesmo somente em relação com outros”,
temos de perguntar até que ponto este “eu” –
assim como esse “outro” – está limitado ao
gênero homo. De fato, as questões sobre o que constitui
a “humanidade” e qual será o legado do “humanismo”
se renovam, pois a própria ideia de uma “humanidade”
compartilhada – algo que o ubuntu defenderia – sofre sob
o peso da história e capenga em crise. Para que o ubuntu não
se associe ao mito da predominância da humanidade sobre a natureza
ou l’animot (como escreve Derrida), ele não pode se limitar
a dizer que o humano só pode se sentir plenamente humano em
relação com a humanidade apenas. Repetindo: o que é
o “humano” e de que forma ele se difere do “animal”?
Na busca do ubuntu por cultivar comunidade, responsabilidade
e justiça nos seres humanos, ele certamente se opõe
à exploração, presumivelmente também à
exploração da natureza. Mesmo assim, a concepção
científica ocidental da natureza, que provém do humanismo
renascentista e glorifica a capacidade humana de explorar e controlar
a natureza, vendo a natureza agora como uma distribuição
probabilística de energia com uma tendência à
entropia, não facilita um senso de justiça mais do que
humano. Talvez os recentes desastres ambientais e suas devastações
façam essa questão voltar à mesa de discussão.