Silas Guerriero é professor
do Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Religião e do Departamento de Teologia e Ciências
da Religião da PUC-SP.
Os estudos das religiões,
ou ainda, o estudo das razões do ser humano crer e elaborar
religiões, sempre foi um grande desafio. Afinal, trata-se
daquilo em que muitos depositam os fundamentos de uma verdade última
ou, como dizia Feuerbach, a esperança da “satisfação
imediata, absoluta e ilimitada de todos os nossos desejos subjetivos”.
Como compreender algo que não pode ser proferido, mas apenas
sentido nas mais profundas experiências do ser? Já
ouvimos alhures que “religião não se discute!”.
Ora, fosse assim perderíamos a oportunidade de compreender
mais amplamente a nós mesmos. A capacidade de produzir símbolos
e construir mundos que só existem em nossa imaginação,
transcendentes da experiência sensorial e empírica,
é algo que só os humanos possuem e que nos diferencia
das demais espécies. Religião se discute, sim. E a
ciência tem muito a dizer sobre ela.
Não é de hoje que as ciências se debruçam
sobre o fenômeno religioso. A filosofia e todas as outras
humanidades, desde o alvorecer de cada uma delas, buscaram sempre
colocar luz sobre o mistério. Porém, muitas vezes
essa tentativa veio no sentido de desmerecimento daquelas verdades
faladas pela religião, tratando o crente como alguém
que insistia em permanecer ligado aos mundos encantados das “fantasias”
religiosas. Desde a filosofia clássica, que procurou desbancar
a mitologia, até a ciência moderna, com o discurso
de que a racionalidade científica suplantaria as ilusões
da fé, essas investidas foram marcadas pelo desmerecimento
do fenômeno religioso, acabando por não percebê-lo
em sua complexidade. Por outro lado, os estudos valorativos restringiram-se,
muitas vezes, a olhares de dentro, buscando a compreensão
racional dos mistérios da fé a partir do universo
religioso do próprio pensador, terminando, muitas vezes,
por colocar compreensões particulares como verdades absolutas
e inquestionáveis.
Uma postura muito comum de nosso tempo é acreditar que as
crenças só existem porque não temos explicação
para muitas coisas que acontecem na natureza. O mistério
fica reduzido, dessa forma, a uma limitação temporária
de nossos instrumentos de medição. Quanto mais a ciência
avançar sobre o desconhecido, mais afastará qualquer
explicação sobrenatural. A religião estaria,
dessa maneira, reduzida a uma incapacidade cognitiva. A resposta
da religião acaba sendo, muitas vezes, uma defesa intransigente
de seus pontos de vista, recusando-se a enxergar aquilo que a ciência
descobre. Clonagem e pesquisa com células-tronco embrionárias
de seres humanos são apenas algumas faces visíveis
do debate atual, sem falar na grande polêmica que envolve
o ensino do criacionismo. Ao colocarmos religião e ciência
no mesmo patamar, incorremos no erro de não perceber suas
especificidades e de ficar discutindo interminavelmente quem tem
mais razão. Como disse Jay Gould, religião e ciência
não podem ser confundidas, pois são dois pilares distintos
do conhecimento humano, cada um cobrindo uma faceta da existência
humana.
Dessa maneira, como podemos defender o ponto de vista de que a ciência
pode estudar as religiões? Sem dúvida que a ciência
tem muito a dizer sobre o fenômeno religioso, mesmo que seja
uma fala externa. É claro que quando falamos em religião
estamos entendendo uma infinidade de coisas e que a própria
expressão não faz sentido para muitas culturas diferentes
da ocidental. Esse já é um primeiro desafio. Para
as ciências da religião, tudo aquilo que está
no campo das crenças, sejam mitos, doutrinas, verdades religiosas
ou mesmo a magia, diz respeito ao universo simbólico religioso
e é passível de compreensão. Para a religião,
nem tudo pode ser colocado no mesmo balaio, pois parte sempre de
uma verdade absoluta e a crença do outro acaba sendo vista
como pura crendice, adoração de ídolos ou simples
ato mágico. Estamos muito acostumados a enxergar a religião
identificada com uma igreja, pois essa é a tradição
histórica da nossa sociedade. Mas, restritos dessa maneira,
deixaríamos de lado uma infinidade de sistemas de crenças
diversos que cumprem a mesma velha função de atribuir
sentido à nossa existência. Todos eles procuram organizar
e estruturar a vida social e individual, alimentam nossas esperanças
de viver num mundo mais justo e tornam suportáveis a dor
e o sofrimento.
As ciências da religião procuram compreender a dimensão
religiosa em suas múltiplas dimensões, tanto na questão
da percepção individual e subjetiva de que existe
um mundo transcendente, quanto nas inúmeras manifestações,
sejam de ordem ritualística, doutrinária, ética,
social, econômica e política que formam os rostos visíveis
das religiões. Não devem questionar, sob o risco de
perder sua validade científica, a validade e veracidade de
um ou outro discurso religioso. Esse é, sem dúvida,
um desafio enorme. O olhar científico impõe uma postura
externa, mas ao mesmo tempo esse distanciamento do objeto nunca
é alcançado em sua totalidade e isso não significa,
também, que o cientista deve ser um descrente. Diz apenas
que o cientista deve seguir um ateísmo metodológico,
caso contrário acabaria estabelecendo juízos de valor
que poderiam enaltecer sua fé em detrimento das demais.
O cientista deve empreender uma compreensão histórica
do desenvolvimento daquela religião em particular que pretende
estudar. Isso implica na compreensão de que cada religião
possui suas peculiaridades em termos de doutrinas, conjunto mitológico,
práticas, rituais etc. Não pode, sob hipótese
alguma, deixar de perceber as relações dessa religião
com as demais esferas da vida social.
Pelo fato da religião ser multidimensional, apenas um olhar
não dá conta de uma compreensão satisfatória.
O cientista deve lançar mão, portando, de um conjunto
de disciplinas auxiliares como a história, a sociologia,
a antropologia, a psicologia etc. Ganha corpo, nos dias atuais,
uma compreensão da religião que leve em consideração
aspectos das ciências cognitivas e da própria biologia.
Nesse sentido, ao estudar as particularidades de cada religião,
o cientista pode contribuir para uma compreensão dos elementos
que caracterizam a religião em geral, acima das especificidades
particulares e cada vez mais enraizada na própria natureza
da espécie humana.
No campo acadêmico, os estudos das religiões devem
vencer uma barreira ainda muito presente. O início desses
estudos esteve muito ligado às faculdades confessionais e
à teologia. Tratava-se, portanto, de um olhar interior. Assim,
os cursos de ciências da religião nasceram marcados
por essa característica umbilical, embora procurassem uma
independência. Quando as universidades laicas despontaram,
trataram logo de expelir tais estudos, pois o que se almejava era
uma racionalidade isenta de qualquer crença. Além
do mais, não era necessário gastar tempo estudando
algo que tinha seus dias contados. É sintomático o
fato de que há apenas um programa de pós-graduação
em ciências da religião radicado em uma universidade
pública, a Universidade Federal de Juiz de Fora. A universidade
brasileira trata a religião como se fosse, ainda, uma preocupação
menor que deveria ficar restrita às instituições
religiosas. Do outro lado, todos os demais programas de ciências
da religião estão sediados em universidades confessionais,
nas quais, salvo algumas exceções, a luta para deixar
de ser uma teologia disfarçada ainda se faz muito presente.
Podemos dizer que começamos hoje a formar uma nova geração
de estudiosos das religiões que estarão mais livres
desses condicionantes e aptos a empreender pesquisas mais amplas.
Um novo horizonte começa a despontar no meio. Só com
estudos de cunho científico é que poderemos avançar
não apenas na compreensão da religião em si,
mas acerca de todas as suas conseqüências na vida social
contemporânea.
A permanência do velho duelo ciência versus religião
propicia empecilhos ao próprio avanço da ciência,
visto que a religião se vê portadora de um direito
de interferência no campo alheio. Tal é o caso das
pressões exercidas sobre os deputados nas votações
de projetos de lei sobre questões polêmicas que envolvem
as experiências com a vida. Por outro lado, se guardadas as
devidas distâncias, um diálogo entre as partes pode
ser bastante benéfico. Recentes pesquisas, realizadas por
cientistas da área de medicina contratados por testemunhas
de Jeová, propiciaram novos conhecimentos no campo da hematologia
e cirurgias sem necessidade de transfusão de sangue. As novas
religiões, por sua vez, também acabam contribuindo
para os estudos de programas de ação sustentável,
principalmente nas áreas de ecologia, quando se pautam numa
visão holística da natureza como um bem sagrado.
Ainda que permaneçam distantes, as religiões podem
contribuir através dos seus questionamentos sobre os rumos
que a própria ciência empreende, tanto no que se relaciona
à responsabilidade ética dos cientistas, quanto na
questão de um controle social sobre as novas tecnologias.
A religião e todas as suas derivadas, como as mitologias
em geral, auxiliam no resgate da dimensão humana que muitas
vezes a ciência perdeu.