Espiritualidade e Sociedade





Daniel Guanaes


>   Apesar de ser ridicularizada, a fé não é uma fuga e ajuda a atravessar tragédias

Artigos, teses e publicações

Luciana Macedo Ferreira Silva; Fabio Scorsolini-Comin
>   Apesar de ser ridicularizada, a fé não é uma fuga e ajuda a atravessar tragédias

 

 

 

Em quase vinte anos de atividade pastoral, perdi a conta das vezes em que participei de sepultamentos. Mesmo assim, não me acostumo com a morte. E sigo me surpreendendo com a força da fé para ajudar famílias a atravessar tragédias.

Odeio a morte na mesma medida em que a reverencio. Apesar de querer evitá-la a todo custo, levo a sério o conselho de um provérbio bíblico: "É melhor ir a uma casa onde há luto do que a uma casa em festa, pois a morte é o destino de todos; os vivos devem levar isso a sério" (Ec 7.2). Procuro aprender com cada dor que acompanho, ao lado de famílias dilaceradas pela perda de alguém querido.

No fim de semana, conduzi o funeral de uma amiga da igreja. Ela tinha 52 anos e morreu por um problema cardíaco, deixando o marido e dois filhos — um adolescente e outro jovem. Mais uma vez, uma família teve seus sonhos interrompidos. Dois meninos crescerão sem o colo da mãe — algo de que todos precisamos, mesmo na vida adulta.

Cheguei à casa deles poucas horas após a notícia. Ao abraçar o viúvo, entre lágrimas, ouvi dele: "Deus mandou dois anjos aqui, pastor." Referia-se a um casal que, por providência, havia chegado instantes antes — e cuja presença fez com que a notícia fosse recebida em meio a abraços. Suas palavras me marcaram: sua fé lhe permitiu enxergar cuidado onde, para muitos, só haveria desolação.

Essa mesma fé sustenta tantos corações partidos diante da morte. Um de seus pilares é a crença na ressurreição. Mais do que um dogma, é uma esperança que ressignifica a despedida. Para quem crê, a morte não tem a palavra final — e isso transforma o "adeus" em "até logo". Sei como essa certeza suaviza o peso do caixão e traz paz em meio às lágrimas. Não porque apaga a dor, mas porque aponta para além dela.

Mas não é só a teologia que sustenta quem sofre. A fé também floresce em gestos concretos. Há coisas simples e práticas que ela nos move a fazer em solidariedade a quem atravessa a dor. E é justamente nesses momentos que a comunidade aprende, de forma viva, o valor do cuidado mútuo.

Durante os dez dias em que minha amiga esteve internada, membros da igreja organizaram uma escala de visitas para amparar a família. Adolescentes e jovens acompanharam os dois filhos, que viviam o medo silencioso de perder a mãe. Todos os dias, refeições chegavam àquela casa, em atos de cuidado que impediram que a dor se transformasse em desespero.

Essas experiências fortalecem vínculos como poucas outras. Os elos que nascem em tempos de dor carregam um tipo raro de verdade. São relações marcadas não pela conveniência, mas forjadas na solidariedade que não exige explicações.

Já vi homens que nunca choraram desabar no meio do culto e serem acolhidos sem pressa, sem perguntas. Já vi senhoras enlutadas comparecerem à reunião semanal para orar por outras. Já vi crianças desenhando anjos para consolar adultos. Tudo isso pela compreensão de que a fé, quando encarnada na comunidade, torna o luto menos solitário.

Escrevo isso porque, num mundo em que a religião tantas vezes é ridicularizada ou banalizada, é preciso lembrar: a fé não é fuga da realidade. É um modo de habitá-la com mais coragem. E ela merece respeito, especialmente nas horas mais duras da vida.

Se você perdeu alguém recentemente, talvez as palavras não deem conta da sua dor. Mas saiba: você não precisa atravessar isso sozinho. Há consolo na memória, esperança na promessa — e amor ao redor. Essa, talvez, seja a maior lição que a fé me ensina diante das tragédias: há sempre mais presença do que ausência, mesmo quando tudo parece ter se perdido.

 


Daniel Guanaes

PhD em teologia pela Universidade de Aberdeen, é pastor presbiteriano, psicólogo e líder do movimento Pastores pela Vida (Visão Mundial)

 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/06/apesar-de-ser-ridicularizada-a-fe-nao-e-uma-fuga-e-ajuda-a-atravessar-tragedias.shtml

 

 

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