Inventei uma história
para celebrar a Vida.
Ana, filha de família
muito rica, apaixona-se por um homem sem bens materiais, Antonio.
Casa-se com separação de bens. Ana engravida de um
anencéfalo e o casal decide tê-lo. Ana morre de parto,
o filho sobrevive alguns minutos, herda a fortuna de Ana. Antonio
herda todos os bens do filho que sobreviveu alguns minutos além
do tempo de vida de Ana. Nenhuma palavra será suficiente
para negar a existência jurídica do filho que só
foi por alguns instantes além de Ana.
A história que inventei é válida no contexto
do meu discurso jurídico. Não sou pároco, não
tenho afirmação de espiritualidade a nestas linhas
postular. Aqui anoto apenas o que me cabe como artesão da
compreensão das leis. Palavras bem arranjadas não
bastam para ocultar, em quantos fazem praça do aborto de
anencéfalos, inexorável desprezo pela vida de quem
poderia escapar com resquícios de existência e produzindo
consequências jurídicas marcantes do ventre que o abrigou.
Matar ou deixar morrer o pequeno
ser que foi parido não é diferente da interrupção
da sua gestação.Mata-se durante a gestação,
atualmente, com recursos tecnológicos aprimorados, bisturis
eletrônicos dos quais os fetos procuram desesperadamente escapar
no interior de úteros que os recusam.Mais “digna”
seria a crueldade da sua execução imediatamente após
o parto,mesmo porque deixaria de existir risco para as mães.
Um breve homicídio e tudo acabado.
Vou contudo diretamente ao direito,
nosso direito positivo. No Brasil o nascituro não apenas
é protegido pela ordem jurídica, sua dignidade humana
preexistindo ao fato do nascimento, mas é também titular
de direitos adquiridos. Transcrevo a lei, artigo 2o do Código
Civil:
A personalidade civil da pessoa
começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro.
No intervalo entre a concepção
e o nascimento dizia Pontes de Miranda “os direitos, que se
constituíram, têm sujeito, apenas não se sabe
qual seja”. Não há, pois, espaço para
distinções, como assinalou o ministro aposentado do
STF, José Néri da Silveira, em parecer sobre o tema:
Em nosso ordenamento jurídico,
não se concebe distinção também entre
seres humanos em desenvolvimento na fase intrauterina, ainda que
se comprovem anomalias ou malformações do feto; todos
enquanto se desenvolvem no útero materno são protegidos,
em sua vida e dignidade humana, pela Constituição
e leis.
Trata-se de seres humanos que podem
receber doações [art. 542 do Código Civil],
figurar em disposições testamentárias [art.1.799
do Código Civil] e mesmo ser adotados [art. 1.621 do Código
Civil]. É inconcebível, como afirmou Teixeira de Freitas
ainda no século XIX, um de nossos mais renomados civilistas,
que haja ente com suscetibilidade de adquirir direitos sem que haja
pessoa. E, digo eu mesmo agora, nele inspirado, que se a doação
feita ao nascituro valerá desde que aceita pelo seu representante
legal tal como afirma o artigo 542 do Código Civil –
é forçoso concluir que os nascituros já existem
e são pessoas, pois “o nada não se representa”.
Queiram ou não os que fazem
praça do aborto de anencéfalos, o fato é que
a frustração da sua existência fora do útero
materno, por ato do homem, é inadmissível [mais do
que inadmissível, criminosa] no quadro do direito positivo
brasileiro. É certo que, salvo os casos em que há,
comprovadamente, morte intrauterina, o feto é um ser vivo.
Tanto é assim que nenhum,
entre a hierarquia dos juízes de nossa terra, nenhum deles
em tese negaria aplicação do disposto no artigo 123
do Código Penal, (1) que tipifica o crime de infanticídio,
à mulher que matasse, sob a influência do estado puerperal,
o próprio filho anencéfalo, durante o parto ou logo
após, sujeitando a a pena de detenção, de dois
a seis anos. Note-se bem que ao texto do tipo penal acrescentei
unicamente o vocábulo anencéfalo!
Ora, se o filho anencéfalo
morto pela mãe sob a influência do estado puerperal
é ser vivo, por que não o seria o feto anencéfalo
que repito pode receber doações, figurar em disposições
testamentárias e mesmo ser adotado?
Que lógica é esta
que toma como ser, que considera ser alguém – e não
res – o anencéfalo vítima de infanticídio,
mas atribuiao feto que lhe corresponde o caráter de coisa
ou algo assim?
De mais a mais, a certeza do diagnóstico
médico da anencefalia não é absoluta, de modo
que a prevenção do erro, mesmo culposo, não
será sempre possível. O que dizer, então, do
erro doloso?
A quantas não chegaria, então,
em seu dinamismo – se admitido o aborto – o “moinho
satânico” de que falava Karl Polanyi? (2) A mim
causa espanto a ideia de que se esteja a postular abortos, e com
tanto de ênfase, sem interesse econômico determinado.
O que me permite cogitar da eventualidade de, embora se aludindo
à defesa de apregoados direitos da mulher, estar-se a pretender
a migração, da prática do aborto, do universo
da ilicitude penal, para o campo da exploração da
atividade econômica. Em termos diretos e incisivos, para o
mercado. Escrevi esta pequena nota para gritar, tão alto
quanto possa, o direito de viver.
1 - “Matar,
sob a influência do estado puerperal, o próprio filho,
durante o parto ou logo após: Pena – detenção
de dois a seis anos.”
2 - A grande transformação:
as origens da nossa época. Tradução portuguesa
de Fanny Wrobel. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.