Entre os búzios e a farda
A vida dupla de um policial militar e sacerdote do candomblé
Depoimento
Estudioso da cultura negra, ex-cabelereiro
afro e cantor de rap, Daniel Gonzaga conversou com a piauí
numa tarde de sábado. Alto, de olhos grandes e arregalados,
ele vestia uma camisa pólo azul, calças escuras
e um tênis branco. Estava à paisana – duas
vezes à paisana, numa aparência bem distinta para
quem o conhece de suas atividades profissionais. Gonzaga é
babalorixá do candomblé e cabo da Polícia
Militar, instituição na qual ingressou em 1999.
Na PM fez quase tudo: foi barbeiro, atuou em radiopatrulha, esteve
em tiroteios e batidas. Em paralelo a isso, cresceu como líder
religioso afro. Perdeu a conta dos convites que recebeu para entrar
para o crime. “Diziam que seria fácil. Eu era forte
e rápido. Se usasse pó teria coragem de assaltar
e poderia comprar uma sapatilha de boxe da Nike. Cansei de receber
propostas assim quando morava na favela”, conta. Gonzaga
abriu um terreiro em 2008 e passou a atender centenas de pessoas,
inclusive policiais em crise espiritual. Passou a questionar muitos
colegas e a própria função da polícia
em relação às periferias — de onde,
ressalta, vem a maioria dos policiais. “O pior não
é ser oprimido”, diz, sereno, entre pausas longas.
“O pior é quem ama os seus grilhões. É
a ideologia dando certo. O racismo deu certo. Quem definiu que
há um mal no nosso meio foi a elite. Ela que criou essa
ideologia de que precisamos ter cuidado porque há gente
ruim em nosso meio. Detalhe: gente ruim que ela mesmo produziu.”
(Em depoimento a Guilherme Pavarin)

Daniel Gonzaga
É sempre difícil essa parte. O começo.
O que veio antes.
Meu nome é Daniel Gonzaga, tenho 51 anos. Sou
um babalorixá — um pai de santo, como diziam décadas
atrás. Um sacerdote de religião de matriz africana,
o candomblé.
Sou formado em letras e professor. Dou aula de literatura, língua
portuguesa e defesa pessoal. Sou mestre de capoeira e lutador de boxe.
E sou policial militar. Sou cabo da Polícia Militar de São
Paulo.
Pois é.
Essa é a cara que todo mundo faz para mim quando digo que sou
policial.
Eu
nasci em São Paulo, capital, no Parque Bristol. Morava na favela.
O pessoal gosta de chamar de comunidade ou, pior, de comunidade carente.
Gosto de ser bem original: eu morava na favela mesmo. Onde nasce a
planta chamada favela. Filho de Edelsuíta Gonzaga Costa, uma
mãe que não se casou. Não conheci meu pai.
Eu conheci a espiritualidade por causa da minha mãe. Desde
1989 ela é evangélica. Antes, era espírita e
frequentava terreiros. Eu ia junto. Era muito interessante porque
as entidades amavam que eu tocasse berimbau para elas. Na época
eu já era da capoeira. A capoeira foi a origem de tudo na minha
vida. Aí eu quis tocar o tambor, o atabaque.
As entidades vinham para me ver. A
Preta Velha, um Boiadeiro. “Cadê o nosso mestre do berimbau?”,
falavam e colocavam uma tenda para eu entrar. Me abraçavam,
davam bala, cocada. A minha mãe ficava orgulhosa. Ali pelos
16 anos conheci, por intermédio de um tio, uma variação
da espiritualidade africana: o candomblé. Entrei de cabeça
em 1991 e estou até hoje.
No candomblé, aqueles que possuem
liderança inata são preparados para o sacerdócio.
Isso aconteceu comigo. Trabalhei muito, aprendi muito e fiz muitas
imersões até chegar ao meu entronamento em 2008. Hoje
tenho um espaço próprio, uma chácara, onde atendo
centenas de pessoas. Atendo pessoas de todo tipo, inclusive policiais.
Muitos gostaram e ficaram por ali.
Mas confesso que hoje fico triste
ao atender alguns policiais.
Vejo o policial como uma figura muito
imediatista. Querem o negócio para ontem, só que a vida
deles está desorganizada ontem, hoje e amanhã. A gente
não trabalha com milagres. O cara está todo ferrado,
e acha que eu sou o Harry Potter para resolver tudo sobre dinheiro,
amor e emoções? Pô, o cara trabalha 16 horas por
dia, não consegue dormir, estoura na rua e acha que a religião
vai salvar a consciência dele?
Essa cultura do vencedor deixa o policial
adoecido. Boa parte está presa à ideologia do burguês.
É fácil notar isso. O banco dá alguns privilégios
para o policial, e é muito comum ver um cair na ambição
de comprar um carrão… Querem um carrão e não
têm dinheiro para gasolina. Querem um atalho para ter uma vida
de rei. Mesmo que todos ou quase todos venham da periferia, olham
o periférico com desprezo depois de um tempo de instituição.
Sentem fascínio pelo “doutor”. Só que a
gente não é herdeiro, cara.
Eu
não digo de primeira que sou sacerdote afro. Hoje em dia tem
um grupo muito grande de evangélicos na polícia. Isso
é algo que amedronta: a união polícia, arma e
evangélicos. A religião, com essa distorção
mental, para não chamar de doença, é um caldo
perigoso. Dentro da instituição polícia existiu
um tempo em que as pessoas ficavam assim, me olhando com alguma desconfiança.
Quem era evangélico achava que eu era evangélico. Quem
era kardecista achava que eu era kardecista. Porque sempre tive uma
fala de espiritualidade.
Tentavam se aproximar de mim e sondavam
se eu gostaria de ser pastor. Trago coisas espirituais que agradam
a eles. Só que eles não sabem a minha religião.
Até que eles ficam decepcionados. Faço a revelação
e muitos fecham a cara. Eu, por ser do candomblé, represento
o mal na ideologia maniqueísta deles. Você tem que ver
a cara que eles fazem. Só faltam espernear. Eles se abalam
na fé. São perdidos, no fundo.
Você sabia que o polvo, quando
perde o tentáculo, consegue fazê-lo crescer de novo?
Quando vejo um evangélico na PM, reconheço o monstro-polvo
refazendo o tentáculo. Olho para nossa sociedade e vejo o tentáculo
do racismo, o tentáculo da manutenção da elite,
o tentáculo da violência, do “deixa que eles se
matem”. É algo arquitetado para ter muitas faces.
Não posso me perder. Na ideologia
em curso muitos PMs acham que são elitizados, que pertencem
àquilo. Eu sei das armadilhas nas quais o policial entra. Eles
acham que têm um exército ao seu lado. Só que
não têm. Se não tomar cuidado, viram cavalos.
E podem virar sabão.
Eu
tinha muitos amigos na rua, mas era uma vida difícil. Uma vida
muito agressiva. A gente vem de amores secos. Aprendi esse conceito
quando li Graciliano Ramos. Passei a me ver nessa situação.
Mãe nunca deixava faltar nada, mas não tinha aquela
relação de carinho. Não falava eu te amo. Mãe
já chegava cansada, exausta. Uma rotina muito pesada, muito
dura. Ela trabalhava como empregada doméstica, assim como minha
avó.
Fui levado para a casa da patroa muitas
vezes. Minha mãe queria que eu aprendesse a comer de garfo
e faca. Ela viu a patroa ensinando os filhos e queria que eu aprendesse.
Aquilo não era realidade nossa. A gente comia com colher, com
a mão. Eu adorava comer com a mão o tutu de feijão
da minha avó. Mas minha mãe queria me ensinar coisas
pertencentes à elite. Ela me ensinava a descascar laranja,
a comer de garfo e faca. Eu achava isso legal, eu era criança.
Quando fui para escola, aos 7 anos,
minha mãe falou que não queria me deixar com mais ninguém
porque me maltratavam. “Você tem que aprender a esquentar
sua comida aqui dentro de casa”, ela disse. Ela ficou uma semana
em casa me treinando a pegar comida do fogão depois de chegar
da escola. Ela chorava com medo de que algo me acontecesse. E fui
aprendendo. A gente não tinha geladeira. O arroz e o feijão
ficavam no chão para manter a temperatura. Depois eu jogava
tudo na panela e acendia o fogão com um acendedor. Ela não
deixava usar fósforo. O acendedor era como uma arminha. Até
que aquilo ficou mecânico.
Minha
mãe sabia que também era importante eu aprender a me
defender. Juntou dinheiro e me levou no kung fu. No lugar que tinha
as lutas havia o kung fu e, do lado, uma dança, uma outra coisa.
O barulho balançava o chão. Tinha um cara tocando pandeiro
e outro, berimbau. Tinha uns pretinhos, uns branquinhos e um japonês,
todos saltando muito alto. Falei: “Mãe, quero fazer isso.”
Minha mãe tinha um preconceito muito grande. Naquela época
diziam que quem praticava capoeira era trombadinha. Falavam que a
capoeira treinava isso: para trombar nas pessoas e roubar a carteira
delas. Minha mãe tentou impedir, mas ela falou que fiquei até
com febre. Por fim, ela cedeu. E aí começa minha vida.
Coloquei na minha cabeça que
queria ser mestre de capoeira. Tinha que ter integridade, falar a
verdade, tudo que era o oposto da rua. Então eu era chamado
de careta na rua. Caretão. Mas tinham medo porque eu lutava.
Na favela você precisa conquistar o medo do outro. É
a lei do mais valente. Você chega e marca o território.
Se você não for bom de briga, você é um
covarde, o bunda-mole. Sempre vai estar subalternizado ao mais forte,
o mais valente. A capoeira trabalhou muito na minha personalidade.
O que os mestres falavam, eu fazia.
Um dia, por eu ser um bom discípulo,
o mestre quis me dar um prêmio. Eu escolhi cortar o cabelo que
nem o dele. Fomos em um salão de black power em São
Bernardo do Campo, num sábado em que os negros e as negras
estavam se arrumando porque haveria um desfile da Beleza Negra. Tinha
chegado no Brasil o movimento “Negro É Lindo”.
O movimento se inicia nos EUA, nos anos 1960, logo após Malcolm
X, Luther King e James Baldwin lutarem pelos direitos civis. Nos anos
1970 há essa reconstrução, esse reexistir do
afro-americano. Época de canções de amor, do
preto olhar para a preta. De se envolver e largar aquele desamor que
existia na comunidade. Aqui no Brasil isso fica mais forte nos anos
1980 porque a nossa elite sempre atrasou os movimentos com essa falácia
da democracia racial. No salão, o rapaz lavou meu cabelo. Desfiou.
Quando cheguei em casa, minha mãe chorou. Como você tá
bonito, filho. Vou te dar um dinheiro para você cortar lá
todo mês.
Só de lembrar isso me dá
vontade de chorar.
Foi por causa do cabelo que fui parar
na Polícia Militar.
Ao frequentar os bailes black, decidi
que queria cortar o cabelo do pessoal. Minha avó fazia cachorro
quente e suco para convencer meus amigos a cortarem o cabelo comigo.
Eu errava muito cabelo, minha nossa. Como meu mestre ensinou: quanto
mais você pratica, melhor fica. Em um ano já tava cortando
cabelo. Daí quis aprender mais e fui cortar cabelo na famosa
Galeria do Rock, um lugar do movimento black no Centro de São
Paulo. Em 1986, por aí. Eu era menor, mas como eu era grande,
achavam que não. Lá havia muita batida policial. O canil
entrava muito ali porque tinha muita droga e trocas com os cabeleireiros.
“Olha: eu tenho uma correntinha de ouro aqui. Posso trocar por
um corte?” Vi muito isso. Falei isso pra minha mãe, ela
ficou morrendo de medo. Ela falou: você não pode ser
preso, você vai cortar aqui em casa. Seu tio guarda o carro
na garagem. A gente faz um salãozinho.
O salão chamava Jackson’s
Hair e ganhou fama local. Eu tinha até propaganda na rádio,
nos horários de música black. Por causa disso, vinha
gente de todo tipo ao salão. Vinha traficante, marginal e policial.
Uns clientes que eram da polícia perguntavam para mim: por
que você, um cara tão disciplinado, não presta
um concurso para virar policial? Falavam que tinha o quadro de barbeiro
e os caras lá trabalham dia sim, dia não. Você
poderia virar funcionário público, ganhar seu dinheiro,
trabalhar um dia lá e outro aqui no seu salão. “Cê
tá louco, sou cantor de rap”, eu respondia. “Sou
contra a polícia.”
Só que começou a ter
muita concorrência no ramo dos cabelos afro. Do meio para o
fim de 1990, a grana não era tão forte. E sempre fui
um gastador. Um moleque de favela que nunca comeu mel? Quando come,
se lambuza. Comprei carros, moto, gastei comprando coisas para meus
amigos… Eu também era muito mulherengo e nasceu minha
segunda filha. Em pouco tempo eu estava quebrado. Morria de medo de
não conseguir pagar pensão e ser preso.
Eu já estava mais preocupado
que engajado. Estudei, paguei pelo supletivo, prestei para a polícia.
Me propus a aprender. E aí passei de primeira. Nunca deixei
de estudar. Depois eu fiz faculdade de letras e agora estou na de
direito.
Na PM eu era enaltecido. Faziam filas
para cortar o cabelo. A polícia se resolve nela mesma. O cara
é barbeiro? Vai pra barbearia. Ah, você era marceneiro?
Vem cá. Mas não dava para ficar só na barbearia.
A instituição pede que o PM seja polivalente. E aí
comecei a fazer de tudo. Comecei a fazer patrulhamento nas mansões,
a dirigir viaturas, fui a campo. Dei aulas de defesa pessoal. Fiz
rádio-patrulha. Sempre fui um policial mais ligado à
educação, ao comunitário. Sempre busquei isso
daí. Foi com isso que mais me identifiquei ou me identificaram.
Hoje estou dentro da Polícia Judiciária Militar e Disciplina,
a PJMD. Sou auxiliar de Justiça e Disciplina. A minha situação
é receber queixas. Como sou auxiliar administrativo, somos
a extensão dos olhos da corregedoria da PM. Com isso vejo onde
foi, relato toda a sua situação, faço a investigação
preliminar.
Nunca disparei uma bala. Sempre me
achei cauteloso. Nas ocorrências, procurava me abrigar atrás
de postes e da viatura. Mas teve uma vez que fiquei perto da morte.
Numa ocorrência em que tinha dez invasores numa mansão.
Conforme saí da viatura e me posicionei em um poste, não
reparei que havia outro portão por onde saíram outros
quatro, de carro. Era uma garagem escondida. Ele apontou a arma para
mim e começou a atirar. Só deu tempo de eu me jogar
no chão. Tem gente que dá risada quando um policial
rola no chão ao ouvir um barulho. É pura estratégia:
é muito difícil acertar um tiro em alguém com
a silhueta diminuída no chão.
A
verdade é que o policial tem medo, muito medo.
É um herói fragmentado. Ele sente medo. Por isso atira
antes.
O policial militar tem muitos problemas
espirituais. A pergunta que sempre faço: quem é esse
ser antes de querer ser herói? Quais os seus fragmentos, cara?
Quais suas doenças sociais, psíquicas, somáticas?
Sempre há esse questionamento e não há resposta.
O mesmo acontece quando questiono quem estabeleceu o certo e o errado.
Falo para eles pensarem a elite, pensarem a oligarquia. Qual é
a história da polícia? Como ela nasceu?
Muitas pessoas me perguntam como é
isso, essa dualidade, essa ambiguidade, como é viver nesses
extremos de polícia e sacerdócio no candomblé.
Sempre respondo: irmão, eu entrei na Polícia Militar
já afrocentrado. O fato de eu conhecer as mazelas, estudar
e pesquisar sobre essas mazelas, me deu essa consciência.
Para você ver: em 2009 eu estava
trabalhando nas rondas escolares. Fizeram contato com minha viatura
dizendo que o vizinho estava brigando com o pessoal de uma escola
infantil. Quando cheguei lá, um senhor começou a reclamar
do barulho da escola. E quando o segurança da escola foi argumentar
com ele, esse senhor falou que não conversava com gente daquela
cor e fez aquele gesto de passar a mão no braço. Vi
que tinha testemunhas e dei voz de prisão na hora. Foi muito
difícil. Em 2009 isso não era nada comum. Eu sabia da
lei, que era possível. E insisti. O caso ganhou proporção.
Saiu na mídia até fora do Brasil.
O racismo faz parte de uma guerra
ideológica. Está em jogo uma elite que não quer
perder seu privilégio. Essa elite é capitalista, oligárquica
e escravagista, tanto física quanto psiquicamente. É
um processo de escravização da mente. Essa ideologia
nasce desses oligarcas. O alarme do banco quando soa são só
as viaturas que vão para lá. Para proteger o quê?
O seu dinheiro? Você tem ouro no banco?
Nossa situação não
é boa, mas já foi muito pior. Nos anos 1970 e 80 era
uma mortandade tanto da polícia quanto nossa, dos negros. Nós
matando os nossos. Você já ouviu a expressão “presunto”?
Era em todo lugar. Hoje está filmado. A tecnologia tem suas
benesses. Imagina quando não tinha isso. Você não
tá entendendo, irmão. Tinha cadáver de gente
negra em todo canto. Campo, ponte, passarela, mato.
Se a polícia é realmente
necessária? Olha, eu acredito em uma polícia comunitária
e aliada à comunidade e às noções de cidadania.
Com essa divisão que existe
hoje só o capitalismo ganha. O extremismo que ganha. A gente
não conversa. A periferia não conversa com a polícia,
e vice-versa. Temos que acabar com essa história de gente que
vem da mazela e se torna amante do seu algoz. Chega do reprimido de
ontem se tornar o repressor. Acredito que até quando me aposentar
vou ter essa ideia. Não desisto.
É isso: tem um policial dentro
da cabeça de cada um de nós. Nosso papel é se
livrar dele.
Depoimento
Entre
os búzios e a farda
A
vida dupla de um policial militar e sacerdote do candomblé