Interessa o diálogo ciência
e religião?
Para muitos a questão é simples e nem requer
muita reflexão: ciência lida com o mundo objetivo,
utiliza a razão e a experimentação; religião
lida com o mundo espiritual, utiliza a fé e a ritualística.
Ponto final. Distintas formas de ação do ser humano
com características próprias e independentes. As fronteiras
são claras, não há em verdade a necessidade
de disputas pois os domínios da ciência e da religião
não se encontram nem se desencontram: simplesmente não
se comunicam.
Sem dúvida a imagem do parágrafo anterior
pode ser considerada o paradigma de nosso tempo.
Depois de séculos de disputas, encontros e desencontros,
quando presenciamos a violência (até física)
de variadas formas de inquisições religiosas (cristãs,
judaicas, islâmicas) opondo-se à livre especulação
e observação da natureza da ciência, seguida
do contra-ataque iluminista que marcando o despontar da modernidade,
quis eliminar toda a metafísica, para consolidar o domínio
da ciência; nasce afinal um pacto de convivência pacífica
entre as duas mais poderosas formas de expressão que a humanidade
já experimentou. A ciência e a religião deixam
de confrontar-se pois não há mais o diálogo.
Cada qual cuida de sua área de influência. Em linhas
gerais, este pode ser indicado como o quadro da questão nos
dias de hoje.
No entanto, os estudos que desde a segunda metade
do século passado vem sendo desenvolvidos na área
da história da ciência demonstram
que apesar das tensões já mencionadas, a origem da
modernidade foi marcada simultaneamente por um intenso diálogo
e intercâmbio entre ciência e religião. Um caso
exemplar é o pensamento de Isaac Newton que investigado em
profundidade a partir da leitura de centenas de manuscritos e de
correspondências, mostrou-se uma interessante síntese
da nova ciência nascente, e correntes herméticas como
a alquimia e a cabala, além de diversas influências
do pensamento teológico. Através de muitos outros
estudos enfocando centenas de outros precursores da modernidade,
a história da ciência indicou que as origens da ciência
moderna dependem muito menos de um rompimento entre ciência
e religião, como o paradigma da modernidade quis ensinar,
do que um intenso e profícuo diálogo que moldou os
caminhos da modernidade.
Dentro dos marcos das descobertas da história
da ciência é possível pensar novas formas
de diálogo entre o pensamento religioso e o pensamento científico
na atualidade, especificamente na questão da idade do universo,
que é sem dúvida um dos desdobramentos do debate criacionismo
x evolucionismo, tema desta edição da ComCiência.
Veremos que se abrindo o diálogo, surpreendentes possibilidades
aparecem.
Qual a idade de nosso universo?
Nos últimos anos as revistas de divulgação
científica apresentam resultados indicando que a cifra inicialmente
anunciada, 15 bilhões de anos, talvez seja demasiada alta,
e que o universo, desde o big-bang até nossos dias, não
teria mais que 12 bilhões de anos. De qualquer maneira, não
há dúvida de que os números da ciência
apontam para uma cifra bastante grande, muito difícil de
se imaginar. Nossa mente está habituada com dezenas de anos,
séculos e no máximo milênios. Bilhões
de anos é algo muito estranho para nosso raciocínio
mais imediato. Mas isto não é um aspecto isolado no
conhecimento científico: muita coisa na ciência foge
à nossa compreensão mais imediata das coisas. Para
tomar uma ilustração diametralmente oposta pensamos
na ciência dos átomos e seus núcleos que descrevem
processos hiper-rápidos, como isótopos de certos elementos
químicos que têm uma vida média de 10 a menos
nove segundos, é dizer, 0,000000001 segundos. Dá para
imaginar um tempo tão pequeno? Pois os físicos e químicos
não só imaginam esses tempos superpequenos como estudam
em detalhes esses elementos e seus processos nucleares.
Em verdade, o conhecimento científico
é bem menos óbvio do que queremos crer. A
ciência, como conhecimento humano da natureza e do universo,
faz uso de esquemas mentais e arranjos experimentais bastante complexos,
que exigem um envolvimento e treinamento muito profundo e demorado
por parte do cientista para que um bom nível de compreensão
e prática seja atingido. Quando pensamos na idade do universo
em termos científicos somos levados a essas surpreendentes
cifras. E se confrontamos essas cifras com os conhecimentos extraídos
da Bíblia somos inicialmente levados a perceber um tremendo
desencontro. Pelo relato bíblico, poderíamos afirmar
que o universo não possui nem 6000 anos de existência.
A ciência e a religião estariam, nesta questão
específica, em completo desacordo.
Muitos acreditam nas conclusões acima esboçadas
e desconsideraram o conhecimento científico, validando a
religião, ou pelo contrário, re-afirmando o conhecimento
bíblico, relativizam ou mesmo desprezam o conhecimento científico.
Inspirados nas reflexões iniciais deste ensaio talvez a própria
questão possa ser desprezada, afinal como se quer fazer crer,
ciência e religião não se comunicam!
Neste ensaio vamos tomar uma direção
bastante diferente. Vamos mostrar que os ensinamentos bíblicos
também são eles bastante complexos e que
a partir de interpretações de alguns pensadores do
passado podemos solucionar os problemas acima apontados concluindo
que os conhecimentos científicos podem ser usados para validar
afirmações de pensadores que viveram há mais
de 700 anos, estudando a Bíblia.
Em nossa argumentação vamos utilizar
as idéias de Aryeh Kaplan (autor de muitas
obras já lançadas no Brasil) em seu artigo "A
idade do universo". Como sábio tradicional
do judaísmo, Kaplan busca na literatura rabínica clássica
afirmações relevantes sobre o tema, a idade do universo,
um tema que ele considera aberto à discussão. Significativamente,
ele encontra um conceito muito importante, embora não muito
conhecido discutido no Sefer ha-Temunah, um antigo trabalho cabalístico
atribuído ao Rabino Nehunya ben ha-Kanah, do primeiro século
da era comum. Esse trabalho discute a forma das letras hebraicas
e é uma fonte freqüentemente utilizada em assuntos da
literatura da halakha (área tradicional da cultura judaica
que estuda os costumes a aplicação das leis da Bíblia).
Assim, Kaplan nos mostra que o Sefer ha-Temunahnão é
um trabalho obscuro e sem importância, mas, pelo contrário
ele é um ponto de apoio da maioria das autoridades em questões
de halakha ao longo dos séculos. O Sefer ha-Temunah menciona
os Ciclos Sabáticos (shemitot). Esta noção
está baseada no ensinamento segundo o qual "o mundo
existirá por 6000 anos, e no ano 7000, ele será destruído".
Sefer ha-Temunah afirma que esse ciclo de 7000 anos é apenas
um ciclo sabático. Entretanto, como existem sete ciclos sabáticos
no jubileu, o mundo está destinado a existir por 49000 anos.
Kaplan afirma também que existem muitos cabalistas que mantiveram
o conceito de ciclo sabático. Seguindo então sua argumentação,
Kaplan expõe muitas citações da literatura
rabínica concluindo que o universo tinha 42000 quando Adão
foi criado. Kaplan introduz, nesse ponto de sua argumentação,
a interpretação sobre a idade do universo elaborada
pelo Rabino Isaac de Akko (1250-1350) no manuscrito Ozar ha-Hayyim
cujos argumentos - que se referem basicamente à diferença
entre anos terrestres e anos celestes - nos permitem concluir que
o universo teria 42000x365250 anos. Fazendo a multiplicação
obtemos 15.340.500.000 anos, uma cifra muito significante. Estamos
falando, segundo Isaac de Akko, de 15 bilhões de anos, uma
cifra bastante semelhante àquela oferecida pela ciência
e a teoria do big-bang. Aqui nós temos a mesma cifra
aparecendo numa fonte de estudos da Bíblia escrita
há mais de 700 anos atrás, na Idade Média!
O próximo passo de Kaplan é explicar
como um resultado tão surpreendente pode ser explicado no
contexto da criação bíblica, incluindo os sete
dias da criação. Mas essas discussões fogem
ao escopo desta comunicação. Queremos apenas indicar
que, ao contrário do que comumente se acredita, ciência
e religião tiveram no passado uma interação
muito produtiva e que é possível ainda desenvolver
essa relação como no caso específico da idade
do universo. Aqui os resultados da ciência re-afirmam os argumentos
de Isaac de Akko. Se muitos meios religiosos receberam as descobertas
científicas relativas à evolução e à
idade do universo como um confronto à Bíblia, os argumentos
aqui apresentados permitem uma atitude bastante diferente. Assim,
desde o século XIX encontramos estudiosos da tradição
judaica que afirmam que as descobertas científicas não
eram contra a Bíblia mas que, em verdade, confirmavam os
pensamentos tradicionais. Tais pensadores citaram, então,
descobertas como mamutes encontradas perto de Baltimore nos Estados
Unidos, assim como dinossauros. Como essas criaturas não
mais existem, elas representam evidências de seres que viveram
em prévios ciclos sabáticos; posteriormente à
teoria do Big Bang seria, segundo esses pensadores, em perfeito
acordo com os cálculos medievais.
O estudo da história da ciência abre-nos
novas perspectivas para entendermos as relações entre
a ciência e a religião no passado, além de indicar-nos
caminhos inusitados para tratarmos os dilemas do presente.