Um dos motivos que nos levou a escrita
desse artigo se relaciona com e-mail que recebemos de certo confrade
nos oferecendo escapulários espíritas. Não acreditando
de pronto na informação recebida, buscamos averiguar
e deparamo-nos com a oferta dos tais amuletos no site comercial do
Mercado Livre.
Escapulários com imagens de Bezerra de Menezes e Chico Xavier
encontram-se à disposição de quaisquer interessados
a preços módicos. Esse fato me recordou do inegável
apelo catolicizante que sofremos em nossos grupos desde sempre, já
alertado por Herculano Pires na década de 70, indicando a tendência
igrejeira do movimento espírita no Brasil. E ao mencionar tal
fato, não colocamos em cheque a importância do aspecto
“religare” da doutrina dos espíritos imbuída
da moral crística, mas da influência do fisiologismo
religioso-dogmático em nosso meio e os desdobramentos do misticismo
no modus operandi do Espiritismo no Brasil.
Situações como esta nos relembram a importância
da re-inserção das obras de Kardec naquilo que chamamos
de “Movimento Espírita Brasileiro”, visto que inúmeras
têm sido as sinalizações do quão distante
nos encontramos dos preceitos basilares estabelecidos pelo professor
Rivail. Ao falar sobre o tema, remetemos a um termo cunhado no seio
do próprio movimento, a “pureza doutrinária”.
Nesse sentido, qual seria de fato a origem desse termo? a necessidade
de pureza sinalizaria contaminação?
– Em termos pragmáticos,
parece-nos que o jargão problematiza a existência de
um impasse metodológico:
1) de um lado, os que defendem que os pilares do Espiritismo devem
permanecer no legado kardequiano;
2) os que defendem que os pilares do Espiritismo devem se estabelecer
na nova literatura espírita;
3) os que defendem um equilíbrio entre os pontos 1 e 2;
4) os que defendem uma tendência ecumênica com outras
práticas espiritualistas.
Esse impasse não é recente na história da doutrina.
Aliás, a senhora Berthe Fropo, em 1884, na
obra Beaucoup de Lumière (Mais
Luz) já sinalizava o cenário de desconfiguração
da Sociedade Espírita de Paris e da Revista Espírita
após o desencarne de Kardec, fato que iria contribuir para
o descrédito do Espiritismo na França e Europa. Segundo
Fropo, a incidência de opiniões das mais diversas, sofismas
filosóficos, teorias confusas, proliferação de
novidades literárias espiritualistas e a aceitação
cega dos ditados mediúnicos implodiam paulatinamente as sólidas
bases do Espiritismo. Em sua obra, ainda desconhecida por muitos de
nós brasileiros, Berthe Fropo conduz o leitor a uma reflexão
profícua, alertando que em toda situação de dúvida
ou escuridão sobre as questões doutrinárias,
Kardec sempre lançará “mais luz”, provando
que as respostas estarão sempre inseridas no corpo de ideias
da antologia kardequiana.
Por sua vez, de acordo com o professor de História, John
Warne Monroe, da Universidade do Estado de Iowa (EUA), na
sua obra Laboratories of Faith (Laboratórios
da Fé), a partir de uma análise detalhada dos
movimentos espiritualistas da França do século XIX,
o ponto crucial do Espiritismo, diante das outras doutrinas da época,
encontra-se no “método rigoroso” e “na bússola
orientadora das obras codificadas”. Sem tais aspectos, o Espiritismo
seria “enfraquecido” ou “mais uma doutrina espiritualista
na Europa, a semelhança do Mesmerismo e Ocultismo”. Ainda
segundo Monroe, os espiritas franceses, a partir dos direcionamentos
da obra de Kardec, estudavam “o Espiritismo como se estudava
Matemática”, o que afastava a doutrina de qualquer especulação
teológica e imprimia um cariz empírico-cientificista
que revolucionou a maneira de se pensar a religião naquele
período.
Recentemente,
o estudioso Adriano Calsone publicou a obra Em
nome de Kardec, adensando a reflexão sobre os direcionamentos
do Espiritismo no Brasil a partir de sua desagregação
na França e os conflitos entre “puristas” e “não-puristas”
naquela época, assim como as lutas de Amélie Boudet,
Gabriel Delanne e Berthe Fropo contra as deturpações
conceituais trazidas com a Teosofia e a tendência ecumênica-religiosa
de Pierre Leymarie, então responsável pela Revista Espírita.
Destarte, Calsone problematiza o desconhecimento da obra e do método
kardequiano na sua totalidade nos grupos e reuniões no Brasil
contemporâneo, sinalizando a ausência/carência do
estudo aprofundado dos axiomas da ciência espírita. É
como ter chegado no Ensino Médio sem ter passado pelo Ensino
Fundamental. Por fim, a obra em tela estabelece em cada uma de suas
páginas a pergunta que ecoa em nossas consciências: para
onde caminha o movimento espírita brasileiro?
Essa pergunta é perturbadora, quando em uma onda crescente,
ouvimos em nosso meio, que Kardec está ultrapassado, que o
Espiritismo pertence aos espíritos e que é falta de
caridade questionar quem quer que seja. É preocupante o movimento
cada vez maior de neófitos que se embrenham por uma literatura
espírita rasa, alimentando o imaginário místico
próprio da nossa formação cultural. É
estarrecedor que o movimento aceite sem questionar qualquer tipo de
comunicação mediúnica, inclusive de animais.
É lamentável que tenhamos tirado os santos do altar
e colocado os médiuns. É inaceitável que empresas
e editoras mercadejem a boa fé das pessoas através de
obras questionáveis e eventos pirotécnicos. É
doloroso constatar que o Espiritismo no Brasil está virando
a igreja do senhor morto. Até lá, aguardemos que Kardec
se levante das estantes e mesas das casas espíritas e desperte
a consciência de nós que dormimos. Enquanto isso, a pergunta
continua: para onde caminha o Espiritismo no Brasil?