Um cientista pode ser uma pessoa religiosa? Para quatro cientistas
entrevistados pela ComCiência a resposta é sim. Eles
acreditam que este binômio não é conflitante
e que é possível conciliar o racionalismo da ciência
com a fé religiosa. A discussão é antiga, mas
nem sempre as relações entre ambos foram conflituosas,
nem na área acadêmica nem na área religiosa.
A partir do momento que a ciência moderna, que apareceu no
Ocidente no século XVII, se apoiou na observação
do mundo, houve uma aparente ruptura entre aquilo que os livros
sagrados diziam e aquilo que era observado na natureza.
Com a publicação de
A origem das espécies, de Charles Darwin, em 1859, foi estimulada
uma nova visão sobre a criação do mundo: não
mais aquela de que tudo teria sido criado ao longo de um determinado
período, como ensinava a Bíblia. Desde então,
muitos cientistas acataram essa nova visão do mundo e passaram
a ter uma relação antagônica com a fé,
como mostram três pesquisas desenvolvidas ao longo do século
XX.
A primeira, realizada em 1916, pelo
psicológo suíço James Leuba, envolveu a questão
da fé num Deus que responde à prece e promete a imortalidade
- o Deus do criacionismo. Os resultados mostraram que a proporção
entre aqueles que acreditavam e os que não acreditavam era
a mesma (40%). E 17% se disseram agnósticos
- aqueles que aceitam com objetividade verdadeira uma proposição
que tenha evidência lógica.
Oitenta anos depois, os pesquisadores
Larson e Witham repetiram o levantamento de Leuba e publicaram
um estudo estatístico na Nature mostrando que o conhecimento
científico não alterou significativamente a crença
ou a descrença em Deus e na imortalidade. Esse resultado
mostrou que muitos outros fatores influem na crença e na
descrença dos profissionais da ciência, como a educação,
a tradição familiar, cultural e as experiências
de vida. Porém, em uma nova pesquisa, feita em 1999, esses
mesmos pesquisadores afirmaram que os cientistas mais eminentes
estão mais ateus do que em qualquer outra época. Comparando
os resultados das duas pesquisas, em 1916, 53% desses cientistas
diziam não crer em Deus e 25% mostraram não acreditar
na imortalidade. A nova pesquisa mostrou que, no fim da década
de 1990, o número de cientistas que se assumiram descrentes
de Deus foi de 72% e 77% disseram que não acreditam na imortalidade.
O estudo, porém, não mostrou as possíveis razões
que poderiam explicar essa constatação.
Num universo mais estreito, Geraldo
José de Paiva, especialista em psicologia
da religião, fez um estudo sobre a psicologia
do cientista através de uma pesquisa realizada com
docentes-pesquisadores da Universidade de São Paulo. O estudo,
segundo ele, procurou desfazer mal-entendidos e manter-se na neutralidade
metodológica - também conhecida como ateísmo
metodológico - que estuda não o objeto religioso em
si, mas o comportamento humano, individual ou social, relacionado
a este objeto. "Ao contrário do que a mídia faria
esperar, os cientistas, físicos, zoólogos ou historiadores,
não opuseram conhecimento científico à opção
religiosa ou irreligiosa", escreveu no seu artigo publicado
na revista Psicologia: Reflexão e Crítica, em 2002.
"O problema de aceitar ou não a religião não
pode ser resolvido pela competência científica da pessoa."
Católico, Paiva aos 67 anos
acredita que a religião é um conjunto de símbolos,
linguagens, ritos e atos, estabelecidos cultural e socialmente,
e apropriados subjetivamente pela pessoa. "Um cientista pode
ser uma pessoa religiosa porque a ciência é apenas
uma das referências para uma decisão englobante da
vida como a religião e a irreligião", diz Paiva.
Ele analisa a questão desse binômio, afirmando
que teoria científica é teoria científica;
religião é religião. "A ciência
trata dos fenômenos da natureza e de suas leis. A religião
trata da relação com Deus. Tanto faz se o homem foi
criado diretamente por Deus ou se apareceu por obra da evolução",
explica.
Apesar de existir cientistas que
conseguem conciliar a ciência com a fé, alguns procuram
a unicidade nesta relação. É o caso, por exemplo,
das correntes holísticas que procuram restabelecer
nexos que foram desnecessariamente rompidos, embora em níveis
epistemológicos distintos. Entre os representantes mais populares
dessas correntes estão o físico austríaco
Fritjof Capra e o médico indiano Deepak Chopra.
Do ateísmo ao catolicismo
Ateu durante a juventude, o pesquisador
Mário Eugênio Saturno, 42, tecnologista sênior
de sistemas espaciais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE), tornou-se católico após estudar psicologia,
conhecer os livros de Platão e passar por várias religiões.
"Eu costumo brincar que Deus colocou no homem a necessidade
de Deus. A religião trata do sobrenatural, a finalidade do
ser humano, a existência e a eternidade, assuntos que não
têm nada a ver com a ciência ou com o cientista, por
isso não é incompatível
ser um cientista religioso", diz ele.
Para Saturno, que participou do
Programa Espacial Brasileiro, a religião é quem deve
estabelecer limites éticos para o cientista, "do contário
teremos Frankensteins por aí". Ele afirma que a religião
influencia no encaminhamento que dá para sua pesquisa, já
que, devido à ética e moral cristã, o pesquisador
procura desenvolver tecnologias que promovam o ser humano. "Não
me sentiria bem trabalhando em equipamentos militares que poderiam
ser usados contra populações civis, como acontecece
no Iraque", ressalta.
Apesar dessa visão, ele reconhece
que algumas religiões estão provocando grandes problemas
para o desenvolvimento da ciência e diz acreditar que o fato
de apoiar sua vivência em uma religião não prejudica
o desenvolvimento de sua carreira. Para ele, se existe algum tipo
de discriminação por ser religioso, é imperceptível.
"Acredito que existem outros tipos de discriminação
do cientista brasileiro que considero mais graves."
Mas isso não é assim
em todos os lugares. O físico cubano Eugênio Rodriguez
Gonzalez, de 41 anos, que vive há quatro no Brasil, conta
que há no país uma liberdade para manifestar seus
credos, independentemente de sua profissão, que ele não
encontrou em Cuba. Nascido e crescido em um lar cristão dentro
de um sistema comunista, o pesquisador sofreu discriminações
por manifestar sua religião, enfrentando todas as pressões
impostas pelo governo contra aqueles que assumiam um posicionamento
religioso. Para ele, o governo comunista acatou a teoria de Darwin
para justificar uma ideologia, o que ele vê com muita restrição.
"Quando as motivações de qualquer ordem, políticas
ou econômicas, entram na ciência, ela perde o seu o
valor de ciência."
"A Bíblia não
foi escrita como um livro de física quântica. Mesmo
assim, há informações no Livro Sagrado que
podem incomodar qualquer cientista", diz ele, citando um versículo
que fala que mil dias serão um ano e um ano será mil
dias. "Tem a ver com a teoria da relatividade que, até
hoje, alguns cientistas como eu não compreendem."
Ainda estudante, Gonzalez freqüentou
as disciplinas obrigatórias ligadas ao comunismo - que reforçavam
a não religiosidade - e muitas vezes sofreu discriminação
em sala de aula, ao ser constantemente referenciado como cristão
de forma ofensiva. "Quando você tem entre 14 e 18 anos,
não tem ferramentas para se defender. Eu ficava envergonhado."
Apesar das pressões, ele
persistiu na sua crença e não deixou sua carreira
de lado. Estudou na Alemanha, se formou em física, lecionou
na Universidade de Havana e viveu situações de conflitos
ao lecionar o evolucionismo. "Tive que pregar a teoria do Big
Bang, mesmo com os erros que sei sobre ela." Os alunos o questionavam
sobre sua posição pessoal acerca da criação
do mundo. "Era uma situação difícil, porque
manifestar a minha opinião era encarado como fazer apologia".
Gonzalez foi expulso por motivações políticas
e por ser líder de um grupo cristão. Hoje, pesquisador
do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), diz não sentir nenhum arrependimento por suas
escolhas.
"Aqueles que são ateus
não têm mais justificativas que eu para não
acreditar em Deus. Se amanhã se demonstrar que Deus não
pode existir, não vou ficar com remorso, mas acho que essa
possibilidade está bem longe. O acercamento da ciência
ao fato de que Deus existe está acontecendo", diz ele.
Fé sem contestação
"Não existe
outra opção: ou Deus existe ou nada existe",
diz o professor titular do Laboratório Thomson de Espectometria
de Massas do Instituto de Química da Unicamp, Marcos Nogueira
Eberlin. Para ele, a conclusão de que Deus existe
é lógica e natural. Negar que Deus existe, acrescenta,
é assumir o impossível como possível, o improvável
como provável. "É, portanto, um delírio,
uma ilusão."
Quando questionado se um cientista
pode ser uma pessoa religiosa, ele é enfático: "Na
química, vemos a extraordinária lógica e beleza,
complexidade e perfeição dos sistemas químicos,
das moléculas, das leis por Deus estabelecidas que regem
a matéria e suas transformações." Segundo
ele, tudo isso pode ser percebido ainda melhor quando se é
um cientista. "Por que alguém, mesmo ou ainda mais um
cientista, rejeitaria um Deus assim?"
Eberlin, 44 anos, detentor de vários
prêmios científicos, prega que a verdadeira religião
e a verdadeira ciência não são antagônicas,
mas se somam e se completam no mesmo ideal: o bem estar do homem.
Sem contestar o criacionismo, ele diz não precisar associar
a ciência a convivcções ateístas ilógicas.
"Não preciso elaborar mecanismos hilariantes para a
origem espontânea da vida."
O pesquisador acredita que esse
binômio é convergente. "Deus a sua imagem e semelhança
nos fez, portanto, seres que também são capazes de
criar, inovar e adicionar à criação ainda mais
graça e beleza."
Sua fé, de acordo
com ele, é totalmente fundamentada na razão,
no equilíbrio entre a lógica do que se entende e fornece
o firme fundamento das coisas que não se vê. "Não
apoio minha vivência em simples credos religiosos, mas em
uma fé racional e autêntica. Assim, não há
porque sofrer discriminações", acredita Eberlin.
Para ele, se alguma discriminação tem ocorrido ela
não é percebida. Já a sua condição
não tão comum de cientista e cristão convicto
tem, em muitos casos, causado, segundo ele "pela graça
de Deus", admiração e portas abertas.