Espiritualidade e Sociedade



Claudia Gelernter

>  Vegetarianismo e Espiritismo: um diálogo possível e necessário

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Claudia Gelernter
>  Vegetarianismo e Espiritismo: um diálogo possível e necessário

 


“E disse Deus:
Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão sementes e se acham na
superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há frutos que dá semente;
isso vos será por alimento”. Gênesis 1:29

 

Em se tratando de saberes e ações humanas, não existe assunto que não possa (e não deva) ser analisado sob o enfoque espírita, uma vez que se trata de doutrina fundamentalmente filosófica, reflexiva, profunda, evolutiva e universal.

Como comenta o Dr. André Luiz Peixinho (FEEB), se compararmos o mundo com um colar de contas, considerando que cada uma de suas peças representa os saberes humanos (Medicina, Psicologia, História, Filosofia, Arte, etc.), entenderemos que o Espiritismo não se enquadra na posição de mais uma destas contas, mas sim como o cordão que as transpassa, devendo ser considerado, portanto, ferramenta essencial para a análise de todos os fenômenos por nós produzidos, sejam eles de ordem individual, social ou ambiental.

Sendo como é [e a partir dos pressupostos que nele se encerram], o Espiritismo nos convoca a um pensamento racional, voltado à busca de respostas congruentes, de acordo com o tempo histórico em que vivemos e em comunhão com as ciências e padrões ético-morais genuinamente cristãos.

Diante deste ponto fundamental, sentimo-nos impulsionados a discutir, embora que de forma ainda superficial, a questão do vegetarianismo como opção alimentar, e – mais que isso – como uma filosofia de vida.


O vegetarianismo discutido em O Livro dos Espíritos

O Espiritismo nasce para o mundo em abril de 1857, através de um livro formatado em perguntas e respostas, intitulado O Livro dos Espíritos. Nele, encontramos diversas questões, referentes aos mais variados assuntos. Trata-se de um livro – hoje sabemos – que Kardec escreveu a partir de inúmeras comunicações por diversos médiuns, mas que tem igualmente a marca de seu critério e reflexão.

Considerando a alimentação um tema relevante, Kardec propõe a seguinte pergunta:

723. A alimentação animal é, com relação ao homem, contrária à lei da Natureza?

E os Espíritos respondem:

Dada a vossa constituição física, a carne alimenta a carne, do contrário o homem perece. A lei de conservação lhe prescreve, como um dever, que mantenha suas forças e sua saúde, para cumprir a lei do trabalho. Ele, pois, tem que se alimentar conforme o reclame a sua organização.”

Se analisarmos esta questão em separado de outras que se seguem e que serão destacadas mais adiante, entenderemos que é lícito – necessário, até – que o homem se alimente da carne animal a fim de conseguir as energias necessárias para a execução de seu trabalho no mundo.

Entretanto, como toda a obra espírita genuína, não devemos e nem podemos prescindir do caráter evolutivo dela mesma. Disse Kardec que o Espiritismo deveria ser revisto e ajustado aos conhecimentos trazidos pela ciência humana, devendo caminhar de mãos dadas com ela, desde que seus axiomas [do Espiritismo] não fossem feridos.

E, quais são estes axiomas?

São, basicamente: o amor como caminho; a evolução como meta; a razão como bússola e a reencarnação como instrumento pedagógico.

Pois bem, em se tratando de questões alimentares, sabemos que a ciência da nutrição é bastante recente na história humana. Só em 1902 surgiu o Curso de nível Universitário na formação de dietistas – os precursores da nutrição – e é somente em 1946 que a Organização Mundial da Saúde (OMS), com sede em Genebra, inicia a divulgação e execução de programas específicos ligados à produção e estudos sobre alimentos, marcando o aperfeiçoamento profissional da nutrição.

Portanto, não se trata de ciência existente na época de Kardec. Sendo assim, seria impossível aos homens encarnados naquele tempo o acesso aos conhecimentos nutricionais necessários a fim de desvendarem as propriedades dos alimentos, disponíveis na natureza.

Só muito recentemente esta ciência demonstrou que encontramos no reino vegetal todos os nutrientes necessários para a promoção e manutenção de nossa saúde, sendo desnecessário a uso de produtos de origem animal em nossa dieta cotidiana.

Portanto, entendemos que seria leviano da parte dos Espíritos e de Kardec afirmarem que o Espiritismo condena o consumo de carne, pois as informações sobre as alternativas nutricionais eram quase inexistentes naquele tempo.

Entretanto, isso não se aplica nos dias de hoje.

Além deste fator, devemos levar em conta o nascimento de outras ciências que, assim como a nutrição, surgiram posteriormente à formação do Espiritismo e que dizem respeito ao meio ambiente.

Cabe-nos, então, seguir adiante no próprio Livro dos Espíritos, agora na questão 724 proposta por Kardec:

724. Será meritório abster-se o homem da alimentação animal, ou de outra qualquer, por expiação?

Sim, se praticar essa privação em benefício dos outros. Aos olhos de Deus, porém, só há mortificação, havendo privação séria e útil. Por isso é que qualificamos de hipócritas os que apenas aparentemente se privam de alguma coisa.”

Diversos estudos sobre questões ambientais têm apresentado evidencias robustas de que o consumo de carne animal acaba por gerar problemas de ordem ambiental, além de complicações físicas para o consumidor.

Em pesquisa realizada pela nutricionista Aline Martins de Carvalho, da FSP (Faculdade de Saúde Pública da USP), descobriu-se que “o consumo excessivo de carne foi verificado em grande parte da população pesquisada, com aumento significativo ao longo dos anos, relacionado com pior qualidade da dieta em homens e considerável impacto ambiental”. Concluiu ainda, que “as carnes vermelhas e processadas têm sido relacionadas com aumento do risco de câncer de cólon e reto, doenças cardiovasculares, diabetes e ganho de peso” (p. 01, 2012). Tal dissertação resultou no artigo científico “Excessive meat consumption in Brazil: diet quality and environmental impacts”, publicado na revista científica inglesa Public Health Nutrition.


O impacto ambiental do consumo de carne

Apontados como grandes vilões do aquecimento global, a pecuária e o consumo de carne estão sendo cada vez mais debatidos por biólogos, ambientalistas, vegetarianos, além de diversos movimentos sociais.

Em entrevista cedida ao Instituto Humanitas, o biólogo Sérgio Greiff explica que “A carne é responsável por grande impacto ambiental. Áreas naturais (florestas, matas, cerrados, campinas etc.) precisam ser devastadas para a abertura de pastos. Muitas pessoas associam a devastação nas florestas tropicais ao corte de madeira. Na verdade, a contribuição das madeireiras para essa devastação nem se compara à devastação causada pela pecuária, pois as madeireiras selecionam apenas as árvores que interessam para o corte. Já o pecuarista precisa se livrar das árvores indiscriminadamente”.

Diante destas evidências, a resposta oferecida pelos Espíritos na questão 724 de O Livro dos Espíritos coloca-nos em cheque, uma vez que deixa claro que a privação da carne em prol do coletivo é relevante, meritória.

Levando-se em conta que nos tempos de Kardec os conhecimentos sobre nutrição eram totalmente restritos, privar-se de carne consistia, portanto, em ação grandiosa, altamente altruísta. Porém, nos dias de hoje, com todos os recursos de que dispomos, entendemos que tal ação sai do âmbito da ampla generosidade, para tornar-se um dever.

Além disso, realizando pequeno exercício filosófico, devemos alinhar nossos saberes com a questão de amarmos Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. [ensinamento fundamental proposto pelo Cristo como sendo o resumo da Lei e dos Profetas].

Como amar a Deus se confinamos, privamos e matamos suas criaturas pelo prazer efêmero de nosso paladar, ocasionando tantos transtornos à nossa volta?


Vegetarianismo e Espiritismo – um diálogo necessário.

Outra munição frequentemente utilizada pelos Espíritas ainda defensores do carnivorismo apoia-se no fato de que o médium brasileiro Francisco Cândido Xavier consumia carne, enquanto encarnado.

Construindo suas ideias em premissas infundadas, afirmam: “Chico Xavier era carnívoro e Hitler era vegetariano, então…”

Com relação a esta situação, temos alguns pontos a considerar.

Primeiramente, necessário compreender que Hitler não se tornou vegetariano por questões morais, mas sim por conta de um problema de saúde, na área gástrica, segundo seus biógrafos. Conta-se, ainda que ele “roubava” carne da cozinha, costumeiramente, o que denota seu conflito nesta questão.

Quanto ao médium, faz-se necessário separar a obra ditada pelos Espíritos de suas ações, pois temos, ao longo de seus escritos mediúnicos, inúmeros apontamentos em defesa do vegetarianismo.

Vejamos:

O Espírito Irmão X, em seu texto intitulado “Preparação para a Morte”, buscando cooperar com os irmãos que logo mais atravessarão os portões do além túmulo, inicia dizendo sobre a necessidade primordial de nos abstermos do consumo de produtos de origem animal a fim de facilitarmos nosso ingresso no Plano Espiritual. Recomendou-nos ele:

Comece a renovação de seus costumes pelo prato de cada dia. Diminua gradativamente a volúpia de comer a carne dos animais. O cemitério na barriga é um tormento, depois da grande transição. O lombo de porco ou o bife de vitela, temperados com sal e pimenta, não nos situam muito longe dos nossos antepassados, os tamoios e os caiapós, que se devoravam uns aos outros.”

No livro Missionários da Luz, capítulo 4, o Espírito André Luiz, descreve o ambiente de um matadouro aos leitores, dizendo estar junto de Alexandre, um benevolente instrutor, que o faz compreender a questão do vampirismo espiritual, naquele caso resultante das ações criminosas dos homens junto aos animais. Comenta o instrutor de André que no futuro da humanidade o estábulo será tão sagrado quanto um lar terrestre.

Entretanto, comenta que na atualidade, infelizmente “Os seres inferiores e necessitados do Planeta não nos encaram como superiores generosos e inteligentes, mas como verdugos cruéis”.

Oras, nem poderia ser de outra forma, dada a maneira como tratamos estes seres.

Alexandre continua seus ensinamentos, afirmando que nossos irmãos animais “aceitam o cutelo no matadouro, quase sempre com lágrimas de aflição, incapazes de discernir com o raciocínio embrionário onde começa a nossa perversidade e onde termina a nossa compreensão”.

E, colocando-nos de frente com a questão paradoxal que nos envolve a existência, comenta:

Se não protegemos nem educamos aqueles que o Pai nos confiou, como germens frágeis de racionalidade nos pesados vasos do instinto; se abusarmos largamente de sua incapacidade de defesa e conservação, como exigir o amparo de superiores benevolentes e sábios, cujas instruções mais simples são para nós difíceis de suportar, pela nossa lastimável condição de infratores da lei de auxílios mútuos?”

Neste ponto nevrálgico, relembramos a Oração Pela Paz, atribuída ao querido Francisco de Assis, que nos convoca a sermos instrumentos de paz, de amor.

Parece-nos impossível conseguirmos apoio do mais alto se nos posicionamos nas esferas mais baixas da vida.

E, colocando-nos a par sobre nosso papel diante desta urgente questão, ainda o instrutor de André Luiz afirmou que “(…) na qualidade de filhos endividados para com Deus e a Natureza, devemos prosseguir no trabalho educativo, acordando os companheiros encarnados, mais experientes e esclarecidos, para a nova era em que os homens cultivarão o solo da Terra por amor e utilizar-se-ão dos animais, com espírito de respeito, educação e entendimento”.

Neste trecho, fica explícita a convocação ao trabalho de educação dos seres, levando as informações de que dispomos, a fim de alterarmos o cenário no mundo.

Prosseguindo com nossos estudos, citaremos agora o Espírito Emmanuel, no livro “O Consolador”, com suas explicações que, por serem longas, porém necessárias, serão copiadas abaixo, na íntegra:

“A ingestão das vísceras dos animais é um erro de enormes consequências, do qual derivaram numerosos vícios da nutrição humana.

É de lastimar semelhante situação, mesmo porque, se o estado de materialidade da criatura exige a cooperação de determinadas vitaminas, esses valores nutritivos podem ser encontrados nos produtos de origem vegetal, sem a necessidade absoluta dos matadouros e frigoríficos.

Consolemo-nos com a visão do porvir, sendo justo trabalharmos, dedicadamente, pelo advento dos tempos novos em que os homens terrestres poderão dispensar da alimentação os despojos sangrentos de seus irmãos inferiores.”

Poderíamos destacar ainda outros trechos de textos assinados por Espíritos que ditaram suas ideias através de Francisco Candido Xavier, porém consideramos desnecessário, uma vez que praticamente todos buscaram nos impulsionar para a mesma direção – a do vegetarianismo consciente.

Entendemos, ainda, que o fato de ter consumido carne durante sua última existência, em nada diminuiu a grandeza do trabalho realizado por Francisco Cândido Xavier, que deixou certamente vasto legado de informações e exemplos superiores.

Cabe-nos, entretanto, como nos ensinava o mestre comum Allan Kardec, seguir adiante, de mãos dadas com os novos saberes que nos são apresentados, reforçados e confirmados por diversas áreas do conhecimento humano.

Ademais, como destacado anteriormente, o Espiritismo, em seu aspecto moral de justiça, amor e caridade, sempre condenou os excessos. Uma vez comprovada a não necessidade da morte do animal para nosso sustento, devemos trilhar outros caminhos, mais sensatos, corretos, éticos.

Por fim, compreendemos que a evolução do planeta passa, invariavelmente, pela questão alimentar.

Este salto, importante e fundamental, ocorrerá a partir da mudança de cada um, reconhecendo nos animais o próprio Criador em sua expressão de amor e benevolência.

E então, congruentes com a Lei Maior, certamente trilharemos por caminhos mais tranquilos, repletos de cooperação e crescimento.

Trabalhemos por isso!

Claudia Gelernter

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARVALHO, A. M.; Tendência temporal do consumo de carne no município de São Paulo: estudo de base populacional – ISA Capital 2003/2008; dissertação de mestrado; FSP – USP; 2012. Disponível em http://www5.usp.br/17464/estudo-da-fsp-relaciona-consumo-excessivo-de-carne-com-impacto-ambiental/acessadoem 21 de agosto de 2013.

HUMANITAS; O impacto ambiental do consumo de carne. Entrevista especial com Sérgio Greif e depoimento de Sonia Montaño, disponível emhttp://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/10451-o-impacto-ambiental-do-consumo-de-carne-entrevista-especial-com-sergio-greif-e-depoimento-de-sonia-montano, acessado em 19 de agosto de 2013.

KARDEC, A. O Livro dos Espíritos, FEB, Rio de Janeiro, 1994 – Questões 723 3 724.

XAVIER, F. C.; O Consolador, por Emmanuel, Ed FEB, Rio de Janeiro, 21ª edição, 1998.

_____________ Missionários da Luz, Espírito Andre Luiz, Ed. FEB, Rio de Janeiro, 2005.

_____________ Treino para a Morte, Espírito Irmão X, Ed. FEB, Rio de Janeiro, 2002.

 

 

Fonte: https://blogabpe.org/2016/08/06/vegetarianismo-e-espiritismo-um-dialogo-possivel-e-necessario/

 



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