“E disse Deus:
Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão sementes e se
acham na
superfície de toda a terra, e todas as árvores em que
há frutos que dá semente;
isso vos será por alimento”. Gênesis 1:29
Em se tratando de saberes e ações
humanas, não existe assunto que não possa (e não
deva) ser analisado sob o enfoque espírita, uma vez que se trata
de doutrina fundamentalmente filosófica, reflexiva, profunda,
evolutiva e universal.
Como comenta o Dr. André Luiz
Peixinho (FEEB), se compararmos o mundo com um colar de contas, considerando
que cada uma de suas peças representa os saberes humanos (Medicina,
Psicologia, História, Filosofia, Arte, etc.), entenderemos que
o Espiritismo não se enquadra na posição de mais
uma destas contas, mas sim como o cordão que as transpassa, devendo
ser considerado, portanto, ferramenta essencial para a análise
de todos os fenômenos por nós produzidos, sejam eles de
ordem individual, social ou ambiental.
Sendo como é [e a partir dos
pressupostos que nele se encerram], o Espiritismo nos convoca a um pensamento
racional, voltado à busca de respostas congruentes, de acordo
com o tempo histórico em que vivemos e em comunhão com
as ciências e padrões ético-morais genuinamente
cristãos.
Diante deste ponto fundamental, sentimo-nos
impulsionados a discutir, embora que de forma ainda superficial, a questão
do vegetarianismo como opção alimentar, e – mais
que isso – como uma filosofia de vida.
O vegetarianismo discutido em O Livro
dos Espíritos
O Espiritismo nasce para o mundo em
abril de 1857, através de um livro formatado em perguntas e respostas,
intitulado O Livro dos Espíritos. Nele, encontramos
diversas questões, referentes aos mais variados assuntos. Trata-se
de um livro – hoje sabemos – que Kardec escreveu a partir
de inúmeras comunicações por diversos médiuns,
mas que tem igualmente a marca de seu critério e reflexão.
Considerando a alimentação um tema relevante,
Kardec propõe a seguinte pergunta:
723. A alimentação animal é,
com relação ao homem, contrária à lei
da Natureza?
E os Espíritos respondem:
“Dada a vossa constituição
física, a carne alimenta a carne, do contrário o homem
perece. A lei de conservação lhe prescreve, como um
dever, que mantenha suas forças e sua saúde, para cumprir
a lei do trabalho. Ele, pois, tem que se alimentar conforme o reclame
a sua organização.”
Se analisarmos esta questão em separado de outras
que se seguem e que serão destacadas mais adiante, entenderemos
que é lícito – necessário, até –
que o homem se alimente da carne animal a fim de conseguir as energias
necessárias para a execução de seu trabalho no
mundo.
Entretanto, como toda a obra espírita genuína,
não devemos e nem podemos prescindir do caráter evolutivo
dela mesma. Disse Kardec que o Espiritismo deveria ser revisto e ajustado
aos conhecimentos trazidos pela ciência humana, devendo caminhar
de mãos dadas com ela, desde que seus axiomas [do Espiritismo]
não fossem feridos.
E, quais são estes axiomas?
São, basicamente: o amor como caminho; a evolução
como meta; a razão como bússola e a reencarnação
como instrumento pedagógico.
Pois bem, em se tratando de questões alimentares,
sabemos que a ciência da nutrição é bastante
recente na história humana. Só em 1902 surgiu o Curso
de nível Universitário na formação de dietistas
– os precursores da nutrição – e é
somente em 1946 que a Organização Mundial da Saúde
(OMS), com sede em Genebra, inicia a divulgação e execução
de programas específicos ligados à produção
e estudos sobre alimentos, marcando o aperfeiçoamento profissional
da nutrição.
Portanto, não se trata de ciência existente
na época de Kardec. Sendo assim, seria impossível aos
homens encarnados naquele tempo o acesso aos conhecimentos nutricionais
necessários a fim de desvendarem as propriedades dos alimentos,
disponíveis na natureza.
Só muito recentemente esta ciência demonstrou que encontramos
no reino vegetal todos os nutrientes necessários para a promoção
e manutenção de nossa saúde, sendo desnecessário
a uso de produtos de origem animal em nossa dieta cotidiana.
Portanto, entendemos que seria leviano da parte dos
Espíritos e de Kardec afirmarem que o Espiritismo condena o consumo
de carne, pois as informações sobre as alternativas nutricionais
eram quase inexistentes naquele tempo.
Entretanto, isso não se aplica nos dias de hoje.
Além deste fator, devemos levar em conta o nascimento
de outras ciências que, assim como a nutrição, surgiram
posteriormente à formação do Espiritismo e que
dizem respeito ao meio ambiente.
Cabe-nos, então, seguir adiante no próprio
Livro dos Espíritos, agora na questão 724 proposta por
Kardec:
724. Será meritório abster-se o homem
da alimentação animal, ou de outra qualquer, por expiação?
“Sim, se praticar essa privação em benefício
dos outros. Aos olhos de Deus, porém, só há mortificação,
havendo privação séria e útil. Por isso
é que qualificamos de hipócritas os que apenas aparentemente
se privam de alguma coisa.”
Diversos estudos sobre questões ambientais têm
apresentado evidencias robustas de que o consumo de carne animal acaba
por gerar problemas de ordem ambiental, além de complicações
físicas para o consumidor.
Em pesquisa realizada pela nutricionista Aline Martins
de Carvalho, da FSP (Faculdade de Saúde Pública da USP),
descobriu-se que “o consumo excessivo de carne foi verificado
em grande parte da população pesquisada, com aumento significativo
ao longo dos anos, relacionado com pior qualidade da dieta em homens
e considerável impacto ambiental”. Concluiu ainda,
que “as carnes vermelhas e processadas têm sido relacionadas
com aumento do risco de câncer de cólon e reto, doenças
cardiovasculares, diabetes e ganho de peso” (p. 01, 2012).
Tal dissertação resultou no artigo científico “Excessive
meat consumption in Brazil: diet quality and environmental impacts”,
publicado na revista científica inglesa Public Health Nutrition.
O impacto ambiental do consumo de carne
Apontados como grandes vilões do aquecimento global, a pecuária
e o consumo de carne estão sendo cada vez mais debatidos por
biólogos, ambientalistas, vegetarianos, além de diversos
movimentos sociais.
Em entrevista cedida ao Instituto Humanitas, o biólogo
Sérgio Greiff explica que “A carne é responsável
por grande impacto ambiental. Áreas naturais (florestas, matas,
cerrados, campinas etc.) precisam ser devastadas para a abertura de
pastos. Muitas pessoas associam a devastação nas florestas
tropicais ao corte de madeira. Na verdade, a contribuição
das madeireiras para essa devastação nem se compara à
devastação causada pela pecuária, pois as madeireiras
selecionam apenas as árvores que interessam para o corte. Já
o pecuarista precisa se livrar das árvores indiscriminadamente”.
Diante destas evidências, a resposta oferecida pelos Espíritos
na questão 724 de O Livro dos Espíritos coloca-nos
em cheque, uma vez que deixa claro que a privação da carne
em prol do coletivo é relevante, meritória.
Levando-se em conta que nos tempos de Kardec os conhecimentos
sobre nutrição eram totalmente restritos, privar-se de
carne consistia, portanto, em ação grandiosa, altamente
altruísta. Porém, nos dias de hoje, com todos os recursos
de que dispomos, entendemos que tal ação sai do âmbito
da ampla generosidade, para tornar-se um dever.
Além disso, realizando pequeno exercício
filosófico, devemos alinhar nossos saberes com a questão
de amarmos Deus acima de todas as coisas e ao próximo como
a nós mesmos. [ensinamento fundamental proposto pelo Cristo
como sendo o resumo da Lei e dos Profetas].
Como amar a Deus se confinamos, privamos e matamos suas
criaturas pelo prazer efêmero de nosso paladar, ocasionando tantos
transtornos à nossa volta?
Vegetarianismo e Espiritismo – um diálogo
necessário.
Outra munição frequentemente utilizada
pelos Espíritas ainda defensores do carnivorismo apoia-se no
fato de que o médium brasileiro Francisco Cândido Xavier
consumia carne, enquanto encarnado.
Construindo suas ideias em premissas infundadas, afirmam:
“Chico Xavier era carnívoro e Hitler era vegetariano,
então…”
Com relação a esta situação,
temos alguns pontos a considerar.
Primeiramente, necessário compreender que Hitler não se
tornou vegetariano por questões morais, mas sim por conta de
um problema de saúde, na área gástrica, segundo
seus biógrafos. Conta-se, ainda que ele “roubava”
carne da cozinha, costumeiramente, o que denota seu conflito nesta questão.
Quanto ao médium, faz-se necessário separar
a obra ditada pelos Espíritos de suas ações, pois
temos, ao longo de seus escritos mediúnicos, inúmeros
apontamentos em defesa do vegetarianismo.
Vejamos:
O Espírito Irmão X, em seu texto intitulado
“Preparação para a Morte”, buscando cooperar
com os irmãos que logo mais atravessarão os portões
do além túmulo, inicia dizendo sobre a necessidade primordial
de nos abstermos do consumo de produtos de origem animal a fim de facilitarmos
nosso ingresso no Plano Espiritual. Recomendou-nos ele:
“Comece a renovação de seus
costumes pelo prato de cada dia. Diminua gradativamente a volúpia
de comer a carne dos animais. O cemitério na barriga é
um tormento, depois da grande transição. O lombo de
porco ou o bife de vitela, temperados com sal e pimenta, não
nos situam muito longe dos nossos antepassados, os tamoios e os caiapós,
que se devoravam uns aos outros.”
No livro Missionários da Luz, capítulo
4, o Espírito André Luiz, descreve o ambiente de um matadouro
aos leitores, dizendo estar junto de Alexandre, um benevolente instrutor,
que o faz compreender a questão do vampirismo espiritual, naquele
caso resultante das ações criminosas dos homens junto
aos animais. Comenta o instrutor de André que no futuro da humanidade
o estábulo será tão sagrado quanto um lar terrestre.
Entretanto, comenta que na atualidade, infelizmente “Os seres
inferiores e necessitados do Planeta não nos encaram como superiores
generosos e inteligentes, mas como verdugos cruéis”.
Oras, nem poderia ser de outra forma, dada a maneira como tratamos estes
seres.
Alexandre continua seus ensinamentos, afirmando que
nossos irmãos animais “aceitam o cutelo no matadouro,
quase sempre com lágrimas de aflição, incapazes
de discernir com o raciocínio embrionário onde começa
a nossa perversidade e onde termina a nossa compreensão”.
E, colocando-nos de frente com a questão paradoxal que nos envolve
a existência, comenta:
“Se não protegemos nem educamos aqueles
que o Pai nos confiou, como germens frágeis de racionalidade
nos pesados vasos do instinto; se abusarmos largamente de sua incapacidade
de defesa e conservação, como exigir o amparo de superiores
benevolentes e sábios, cujas instruções mais
simples são para nós difíceis de suportar, pela
nossa lastimável condição de infratores da lei
de auxílios mútuos?”
Neste ponto nevrálgico, relembramos a Oração
Pela Paz, atribuída ao querido Francisco de Assis, que nos convoca
a sermos instrumentos de paz, de amor.
Parece-nos impossível conseguirmos apoio do mais
alto se nos posicionamos nas esferas mais baixas da vida.
E, colocando-nos a par sobre nosso papel diante desta
urgente questão, ainda o instrutor de André Luiz afirmou
que “(…) na qualidade de filhos endividados para com
Deus e a Natureza, devemos prosseguir no trabalho educativo, acordando
os companheiros encarnados, mais experientes e esclarecidos, para a
nova era em que os homens cultivarão o solo da Terra por amor
e utilizar-se-ão dos animais, com espírito de respeito,
educação e entendimento”.
Neste trecho, fica explícita a convocação ao trabalho
de educação dos seres, levando as informações
de que dispomos, a fim de alterarmos o cenário no mundo.
Prosseguindo com nossos estudos, citaremos agora o Espírito
Emmanuel, no livro “O Consolador”, com suas explicações
que, por serem longas, porém necessárias, serão
copiadas abaixo, na íntegra:
“A ingestão das vísceras dos animais
é um erro de enormes consequências, do qual derivaram
numerosos vícios da nutrição humana.
É de lastimar semelhante situação,
mesmo porque, se o estado de materialidade da criatura exige a cooperação
de determinadas vitaminas, esses valores nutritivos podem ser encontrados
nos produtos de origem vegetal, sem a necessidade absoluta dos matadouros
e frigoríficos.
Consolemo-nos com a visão do porvir, sendo
justo trabalharmos, dedicadamente, pelo advento dos tempos novos em
que os homens terrestres poderão dispensar da alimentação
os despojos sangrentos de seus irmãos inferiores.”
Poderíamos destacar ainda outros trechos de textos
assinados por Espíritos que ditaram suas ideias através
de Francisco Candido Xavier, porém consideramos desnecessário,
uma vez que praticamente todos buscaram nos impulsionar para a mesma
direção – a do vegetarianismo consciente.
Entendemos, ainda, que o fato de ter consumido carne
durante sua última existência, em nada diminuiu a grandeza
do trabalho realizado por Francisco Cândido Xavier, que deixou
certamente vasto legado de informações e exemplos superiores.
Cabe-nos, entretanto, como nos ensinava o mestre comum
Allan Kardec, seguir adiante, de mãos dadas com os novos saberes
que nos são apresentados, reforçados e confirmados por
diversas áreas do conhecimento humano.
Ademais, como destacado anteriormente, o Espiritismo,
em seu aspecto moral de justiça, amor e caridade, sempre condenou
os excessos. Uma vez comprovada a não necessidade da morte do
animal para nosso sustento, devemos trilhar outros caminhos, mais sensatos,
corretos, éticos.
Por fim, compreendemos que a evolução
do planeta passa, invariavelmente, pela questão alimentar.
Este salto, importante e fundamental, ocorrerá
a partir da mudança de cada um, reconhecendo nos animais o próprio
Criador em sua expressão de amor e benevolência.
E então, congruentes com a Lei Maior, certamente
trilharemos por caminhos mais tranquilos, repletos de cooperação
e crescimento.
Trabalhemos por isso!
Claudia Gelernter
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CARVALHO, A. M.; Tendência temporal
do consumo de carne no município de São Paulo: estudo
de base populacional – ISA Capital 2003/2008; dissertação
de mestrado; FSP – USP; 2012. Disponível em http://www5.usp.br/17464/estudo-da-fsp-relaciona-consumo-excessivo-de-carne-com-impacto-ambiental/acessadoem
21 de agosto de 2013.
HUMANITAS; O impacto ambiental do consumo
de carne. Entrevista especial com Sérgio Greif e depoimento de
Sonia Montaño, disponível emhttp://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/10451-o-impacto-ambiental-do-consumo-de-carne-entrevista-especial-com-sergio-greif-e-depoimento-de-sonia-montano,
acessado em 19 de agosto de 2013.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos,
FEB, Rio de Janeiro, 1994 – Questões 723 3 724.
XAVIER, F. C.; O Consolador, por Emmanuel,
Ed FEB, Rio de Janeiro, 21ª edição, 1998.
_____________ Missionários da
Luz, Espírito Andre Luiz, Ed. FEB, Rio de Janeiro, 2005.
_____________ Treino para a Morte, Espírito
Irmão X, Ed. FEB, Rio de Janeiro, 2002.