O pontificado de João Paulo II é considerado
moderno pelas suas aproximações históricas
com a ciência, mas também conservador no que diz respeito
aos aspectos morais da sociedade. A tendência é de
que Bento XVI siga as pegadas do “papa peregrino”. Assim,
deve se tornar ainda mais próxima a relação
entre ciência e religião católica que, no entender
de João Paulo II, não são opostas, mas complementares.
Por outro lado, a Igreja ainda não encontrou respostas para
questões modernas e encara com uma dose de intolerância
certos aspectos morais da vida social, como, por exemplo, o aborto
e a união entre homossexuais. Outras imposições
morais são conhecidas do pontificado de João Paulo
II: ele se lançou contra a contracepção e foi
intransigente quando se tratava do celibato dos padres e da ordenação
das mulheres na Igreja. Com Bento XVI, esse panorama também
não deverá mudar.
A posição rígida da Igreja
frente às questões morais da sociedade contemporânea
é apontada como uma das causas da “diminuição
do rebanho católico” pelo mundo. Outra possível
causa seria a influência do Vaticano no desenvolvimento de
pesquisas científicas, sobretudo aquelas que envolvem os
conceitos sobre o início e o fim da vida. João Paulo
II ficou conhecido, entre outras coisas, por tentar acabar com a
oposição entre ciência e religião. Na
introdução de sua Encíclica, “Conhece-te
a ti mesmo”, escreveu: “a Igreja, por sua vez, não
pode deixar de apreciar o esforço da razão na consecução
de objetivos que tornem cada vez mais digna a existência pessoal”.
A professora do Instituto de Psicologia da USP e
vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), Dora Fix Ventura, explica que a interferência da Igreja
não atinge as instituições de fomento de pesquisas,
nem o Ministério de Ciência e Tecnologia, mas pode
interferir no legislativo ou executivo, como aconteceu recentemente
na votação da Lei de Biossegurança. Nessa ocasião,
setores conservadores da Igreja que compõem a Câmara
dos Deputados fizeram oposição ao PL 2401/03.
Para examinar e avaliar questões éticas,
Ventura explica que existem no país cerca de 400 Comissões
de Ética em Pesquisa (CEP) que respondem à Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) com o poder de centralizar
a análise de questões de projetos. “É
uma estrutura de controle ético das pesquisas realizadas.
Se algum dos meus alunos fizer uma dissertação de
mestrado ou uma tese de doutorado e examinar seres humanos o projeto
dele só terá o financiamento mediante a aprovação
da comissão de ética”, informa Ventura, e continua
“a comissão manda para um relator que é especialista
na área, e não uma pessoa leiga”. Ela explica
que a postura da SBPC é trabalhar para que a ciência
possa ser executada, possa avançar, pois como o próprio
nome diz é uma instituição para o progresso,
“mas, é lógico, dentro de preceitos éticos
e por isso eu acho muito relevante toda essa estrutura de análise
de projetos de pesquisa”, explica.
Pedido de desculpas marca aproximação
com a ciência
Já se esperava que o papa eleito fosse um
conservador, pois dos 117 cardeais, 95 foram nomeados por João
Paulo II. Desse modo, não se acredita que o papado de Bento
XVI promova grandes mudanças em relação ao
seu antecessor. O professor de teologia da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), Fernando Altmeyer,
também acredita que não haverá mudança
alguma na maneira de governar de Bento XVI, ou seja, deve-se continuar
uma hierarquia interna rígida e posições conservadoras,
mas com um diálogo crescente com a ciência. Ele explica
que, em breve, o novo papa deverá publicar a sua Encíclica
(documento se dirigindo aos bispos de todo o mundo tratando de matéria
doutrinária no campo da fé, costumes, culto social)
que inaugura seu pontificado. É como um plano de governo
que só é conhecido após o término das
eleições.
Altmeyer afirma que uma boa visão sobre o
que será o governo do novo papa com relação
à ciência pode ser lida em Fides et ratio (Fé
e razão, em português), publicada em 1998. “O
documento retrata a posição da Igreja Católica
em relação à questão ciência e
religião” explica. Essa Encíclica, com sete
capítulos, traz em seu capítulo quarto, “A relação
entre a fé e a razão”, uma discussão
sobre as etapas da aproximação e o drama da separação
entre a fé e a razão, onde estabelece as diretrizes
fundamentais para o futuro diálogo entre ciência e
religião.
As participações do papa João
Paulo II no debate científico marcaram profundamente seus
26 anos de pontificado. Em 1979, em discurso à Academia de
Ciências do Vaticano em comemoração do centenário
do nascimento de Albert Einstein, afirmou: “A fé apostólica
quer também prestar a Albert Einstein a homenagem que lhe
é devida pela contribuição eminente que trouxe
ao progresso da ciência, quer dizer, ao conhecimento da verdade,
presente no mistério do universo”.
Nesse mesmo documento foram iniciados os trabalhos,
a pedido do papa, para que a Igreja reconheça seus erros
passados. Tanto Galileu como Einstein foram reconhecidos pela importância
que representaram à época. Destaca-se o trecho em
que é dito que “o primeiro muito teve que sofrer —
não poderíamos escondê-lo — da parte de
homens e organismos da Igreja”. Indo mais longe, o papa João
Paulo II conclama teólogos, sábios e historiadores
a aprofundarem o exame do caso de Galileu, para que desapareçam
as desconfianças que ainda existem entre ciência e
fé, entre a Igreja e o mundo. “Dou todo o meu apoio
a esta tarefa, que poderá honrar a verdade da fé e
da ciência, e abrir a porta a futuras colaborações”.
Galileu publicou em 1633 sua obra: Diálogo sobre os dois
grandes sistemas do mundo, onde avançava as teses de Copérnico
sobre o heliocentrismo. Por conta disso, foi considerado herege
e teve que dizer que não acreditava no que escreveu. Exatamente
359 anos depois, em 1992, a Igreja se arrepende e João Paulo
II reabilita oficialmente Galileu, reconhecendo-o como um bom cristão
e que suas teorias estavam corretas.
Ultraconservadorismo
Antes de ser papa, o alemão Joseph
Ratzinger foi prefeito da Congregação para
a Doutrina da Fé, antigo Tribunal da Inquisição
de 1981. Em 31 de julho de 2003, a Congregação, da
qual era prefeito, publicou um documento intitulado: “Considerações
sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre
pessoas homossexuais” onde, já na introdução,
a questão é tratada como “um fenômeno
moral e social preocupante”. Para a Igreja “só
existe matrimônio entre duas pessoas de sexo diferente”.
No entanto, a preocupação central exposta no documento
é de caráter político, ou seja, dirige-se aos
países que já concederam ou se propõem conceder
reconhecimento legal às uniões homossexuais e, principalmente,
à possibilidade de estes adotarem filhos, o que feriria o
princípio da família. O recente documento faz um apelo
aos políticos católicos para impedirem projetos de
lei referentes a “esse problema”.
Se a união entre os homossexuais é
um assunto que arrepia a ala mais conservadora da Igreja, o aborto
é outro tema polêmico, mesmo que a mãe corra
risco de morte. Para a professora de ciência política
da Universidade de São Paulo (USP), Lourdes Sola, “nessa
questão a Igreja nunca avançou, por isso considero
suas posições ultraconservadoras”, avalia.
Para a Igreja Católica, a pretexto de salvar
uma vida, não interessam quais foram as condições
que provocaram a gravidez, ou em quais condições médicas
está evoluindo. “Em caso de estupro ou de anencefalia
a mulher aparece como uma reprodutora para multiplicar a espécie,
cuja saúde e principalmente os direitos de tomar sua própria
decisão não são respeitados”, finaliza.
Sinais de mudança?
Leonardo Boff,
principal teórico da Teologia da Libertação
foi obrigado a se desligar da Igreja Católicaem 1992. O uso
de teorias marxistas aplicadas ao catolicismo incomodava o Vaticano
e principalmente o prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger.
Ao comentar sobre a eleição de Ratzinger,
Boff demonstra um misto de decepção e surpresa. Quanto
à decepção ele conta que, na maioria das vezes,
quando um papa é eleito, os fiéis e a imprensa não
conhecem seu perfil, mas nesse caso foi diferente. “Ele, muito
fervoroso na doutrina, se fez notório durante 23 anos, controlando
as conferências de cardeais e bispos e punindo 140 teólogos,
inclusive eu fui um dos atingidos por ele” e continua, “a
primeira impressão é que sua linha dura será
continuada ou quem sabe até mais radicalizada”.
Quanto a parte da surpresa, Boff explica que os
sinais que Bento XVI está dando não correspondem a
essas expectativas e já começam pelo nome que escolheu,
ou seja, não é João Paulo III é Bento
XVI. A linha que ele está assinando, explica Boff, é
promissora, isto é, de uma Igreja descentralizada com a valorização
das igrejas locais e a retomada do Concílio Vaticano II.
“Ele se comprometeu oficialmente em retomar a gênese
do Vaticano II que é a agenda de democratização,
participação, diálogo com um mundo moderno
e com a ciência. Essa indicação é a de
que ele vai fazer um papado curto, pois sua saúde é
frágil. Vejo nos sinais que ele está dando, que vai
deixar uma marca no sentido de maior abertura, principalmente no
diálogo com a sexualidade, com a ciência moderna, células-tronco
e contraceptivos”, acredita.
Lembrando seu tempo de doutorado na Europa, Boff
diz que assistia às palestras de Ratzinger e que ele era
um dos cardeais mais ouvidos da Alemanha. Ele era o que mais críticas
fazia ao centralismo romano, que cobrava mais liberdade para a teologia
fazer o diálogo com o mundo moderno, por isso eu acho que
ele tem tudo para resgatar as suas origens e ser um papa não
de transição, mas que vai continuar a linha de João
XXIII da renovação da Igreja”, finaliza.