Vitor Hugo Monteiro Franco
Professor do ensino básico e autor
do livro ‘Escravos da Religião’ (Ed. Appris),
é doutorando em História (UFF) e idealizador do
Podcast Atlântico Negro
A história da Igreja Católica sempre me
cativou, e conhecê-la era compreender o mundo ao meu redor. Isso
por que o catolicismo fazia parte da minha vida. Escutava meu pai contar
as histórias dos seus tempos das CEBs (Comunidades Eclesiais
de Base), em um país lutando para se redemocratizar.
No ensino fundamental, frequentei uma escola católica
de classe média em Duque de Caxias (RJ), na Baixada Fluminense.
Nos meses de maio, em determinada hora do dia, parava-se tudo para se
fazer uma oração à Virgem Maria. Na adolescência,
ingressei no catecismo na igreja do bairro. O meu interesse por história,
que se aguçou aos 12 anos, me fazia querer entender essa experiência
que me rodeava por todos os lados.
Conforme ficava mais velho, tal busca tornava-se angustiante,
pois havia muitas partes que não se ajustavam. Ser uma pessoa
negra muda toda a trajetória até aqui relatada. Não
se encaixava: como a Igreja Católica deu as bases para a escravidão
africana? Qual era minha história familiar, e como o cativeiro
a atravessou? Por que a escola foi um dos primeiros ambientes que me
mostrou que ser negro no Brasil era uma situação hostil?
Como ser negro e católico?
Essas perguntas só começaram a ser respondidas
depois de alguns anos, durante a graduação em história
na Universidade Federal Fluminense. Naquele tempo, ingressei no grupo
de pesquisa “A Cor da Baixada”, que, dentre outros temas,
investigava o passado escravista da Baixada Fluminense. Por um acaso,
ou não, o coordenador do grupo, o professor Nielson Bezerra,
me passou uma cópia digitalizada do livro de batismo de escravizados
da antiga fazenda São Bento de Iguassú, pertencente à
maior ordem religiosa escravista do Brasil Imperial: a Ordem de São
Bento.
Ao fazer um esforço para decifrar a caligrafia
do século 19, me surpreendi com os fragmentos de vida daquelas
pessoas. Com muita frequência elas eram descritas pelos monges
como “escravas da religião”. Aos olhos de alguém
do século 21, o termo soa estranho e nebuloso. E foi justamente
a partir dessa incompreensão que tentei entender o que significava
ser “escravo da religião”. De alguma forma, esse
caminho também me ajudou a preencher alguns silêncios sobre
quem sou.
A pesquisa me mostrou que a vida dos escravizados pela
Igreja era permeada pela força dos dogmas católicos, pelas
incertezas do cativeiro e pela violência do sistema escravista.
No entanto, isso não resumia a experiência daquelas pessoas.
Esses agentes de carne e osso tentaram a todo custo não se entregar.
São histórias como a da africana Nathalia,
batizada em ?Iguassú com apenas 12 anos, em 1831, no limite do
fim do tráfico atlântico de escravizados. Ainda muito jovem,
ela não só sobreviveu à traumática travessia
oceânica e ao ritmo de trabalho intenso como formou família
e faleceu como liberta aos 56 anos. Infortúnio como o de Querubim,
que fugiu para viver em um quilombo e foi preso ao fugir de uma batida
policial, nas proximidade de Iguassú. Altivez como a de Marcellino
de Nação, descrito pelos monges como “incorrigível”
e “rebelde”, e por isso vendido a outro senhor. Sem esquecer
da força dos laços familiares, Francisco das Chagas desembolsou
um alto valor para libertar a sua neta do poder dos monges, assim como
Fidélis para emancipar a esposa, e Emerenciana para alforriar
a filha.
Revisitar um passado que significa dor, sofrimento e
estigma para mim e para tantas pessoas não é tarefa fácil.
No entanto, sigo acreditando que o trabalho de historiador pode ressignificar
a relação que os indivíduos possuem com o passado.
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https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/11/1934564-biografias-improvaveis-inspiram-livro-de-leandro-narloch-sobre-escravidao.shtml
Ao estudar a vida dos “escravos da religião”
pude redimensionar minha própria história familiar. Compreendi
que, apesar da violência do sistema escravista, possivelmente
meus ancestrais escravizados também apostaram em seus poucos
recursos disponíveis para suportar e superar a penosa experiência
da escravidão.
Não se trata de positivar o sofrimento, romantizar
a dor ou heroicizar trajetórias: isto não é possível.
Mas, sim, tentar balancear a força da opressão do sistema
com a potência das respostas dadas por africanos e afro-brasileiros
escravizados. Tais respostas têm muito a nos ensinar.
E sigo aprendendo para tentar explicar o mundo ao meu
redor e responder de alguma forma àquelas inquietudes da adolescência
que ainda vivem em mim.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/06/escravidao-e-igreja-catolica-como-lidar-com-um-passado-silenciado.shtml?origin=uol
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