A moral do espiritismo, bem compreendida,
é uma alternativa de vanguarda às opções
oferecidas pela sociedade, seja pelo materialismo ou pelas religiões
tradicionais.
Ao materialista, basta a justiça.
O lema é não fazer aos outro aquilo que não queira
que se faça a si mesmo. Mas pense bem, essa regra é
apenas restritiva, evita o mal, mas não causa mudanças.
As injustiças, desigualdades e privações existentes
na sociedade permanecem continuamente, mesmo que todos respeitem a
regra da justiça! O único recurso para evitar o mal
é a punição. Seguindo essa cartilha, nos jornais
televisivos, os braços se agitam, olhos esbugalhados e berros
anunciam a solução para a violência e desigualdade
sociais: penas mais severas, rigor nas punições. Só
assim vamos viver em paz. Será?
Ao crente religioso, o lema é
outro, a maior virtude é obediência. Devemos nos submeter
aos sofrimentos, privações e dores da vida, pois se
é assim é porque Deus o quis. E com ele não se
discute. Nos textos do catecismo católico vamos encontrar as
seguintes palavras:
“Dizem as sagradas escrituras:
‘O justo vive pela fé’. Fé é
a atitude daquele que crê e obedece ao Senhor. A fé
é um ato de submissão que implica obediência
à sua perfeita Vontade. Mesmo não querendo, o
crente dedica-se à oração. Mesmo com a
tentação de algo mais interessante, lê as
sagradas escrituras. Mesmo sendo egoísta, dedica serviço
ao próximo. Mesmo não querendo, pratica a penitência.
Mesmo não estando disposto, vai à missa. São
sinais de obediência, selo da verdadeira fé”.
Mas essa milenar receita criada para
manter as massas submissas às suas condições
miseráveis, aceitando a exploração dos sacerdotes
e nobre, despertou a incredulidade e a revolta na grande revolução
da França. Pensadores como o conde de Volney, tinham convicção
de que os jovens e crianças deveriam seguir uma nova moral.
Radicalmente diferente da ladainha igrejeira do mundo velho. Num de
seus esforços, escreveu um Catecismo do Cidadão Francês.
Novos tempos, novas regras. Entre as perguntas e respostas de seu
texto elaborado como um longo diálogo, Volney considera:
"A lei natural considera
como virtudes a esperança e a fé que se unem à
caridade?"
E então surpreendentemente
responde:
"Não; porque essas
ideias são irreais; e se algum efeito resulta delas,
é em vantagem daqueles que não possuem essas ideias
em relação com aqueles que as têm; de tal
modo que se pode definir fé e esperança como virtudes
dos inocentes a benefício dos canalhas."
Ou seja, para quem estuda profundamente
a história, como o conde que percorreu as ruínas da
antiguidade, fé e esperança são instrumentos
de dominação dos poderosos sobre os inocentes, simples
e ignorantes.
Mas, então, sem fé,
sem esperança, como construir um mundo novo, desafio da revolução?
Ou, como se dizia, por quais meios vamos “regenerar a humanidade”?
Para os revolucionários franceses e os materialistas que os
sucederiam em gerações até a contemporaneidade,
a inspiração vem da obra de Helvétius, que, segundo
Domenech, foi o “primeiro que fundou a moral sobre a base inabalável
do interesse pessoal” (l’Éthique
des lumières). Para Helvétius a liberdade não
passa de uma ilusão, pois somos todos submissos aos nossos
interesses, e não há mal algum nisso, somente naturalidade
biológica. E então, entona sua máxima moral:
“em matéria de
moral como em matéria de espírito, é o
interesse pessoal que dita o juízo dos indivíduos
e o interesse geral que dita o das nações”
(Helvétius, Do Homem).
Em resumo, para as religiões
milenares devemos ser submissos a Deus. E para o materialista somos
naturalmente submissos aos interesses. O ser humano, então,
se ressume a isso: submissão?
É aqui que o espiritismo vai
inovar, colocando-se na vanguarda do mundo novo.
Não a doutrina mal compreendida,
pois não há no ensino dos espíritos superiores
a ideia de pecado, seja o católico, ou o oriental, conhecido
como carma.
Carma ou pecado é a ideia de
que Deus estabeleceu regras que devem ser obedecidas pelos indivíduos,
caso contrário serão castigados. E se forem obedientes,
serão recompensados.
Esse mecanismo é exatamente
o do condicionamento. Por ele, os animais fazem exatamente o que os
adestradores mandam. Repetindo as situações, e dando
um petisco, o bicho vai fazendo aquilo que se manda. A punição
nem é necessária, somente para descondicionar hábitos
equivocados extremos. Chega uma hora que, mesmo sem petisco, ele vai
obedecer direitinho. Esse é o infalível mecanismo.
Seres humanos também podem
ser condicionados. Pela moda, pelos programas de televisão,
repressão policial, livros. Seja bonzinho e aceite a recompensa.
Depois vem o hábito, e nem precisa mais de recompensa, pois
já estão todos condicionados, obedecendo direitinho.
Aos rebeldes, estará reservada a punição.
Mas o espiritismo revela uma lei natural
muito diferente. Nós temos um corpo animal, essa é a
causa da possibilidade de condicionamento dos seres humanos. Outra
causa está no fato de que vivemos num mundo ainda muito primitivo,
onde a maioria dos espíritos que aqui encarnam estão
vivendo suas primeiras centenas de vidas humanas.
Mas verdadeiramente somos espíritos,
e por isso temos vontade, razão e sentimento. Desde as primeiras
vidas humanas, desenvolvemos paulatinamente o livre-arbítrio.
Sim, a liberdade. Essa é a lei do espirito. Deus não
pune nem recompensa os espíritos, mas criou leis tais que regem
o universo, de tal modo que as escolhas carregam em si mesmas as consequências
boas ou ruins. Afirmam os espíritos:
"A alma ou Espírito
sofre na vida espiritual as consequências de todas as
imperfeições que não conseguiu corrigir
na vida corporal. O seu estado, feliz ou desgraçado,
é inerente ao seu grau de pureza ou impureza.
(O céu e o inferno)."
Deus não impõe o sofrimento
com castigo quando alguém erra. Não existe esse mecanismo.
Da mesma forma que Deus não empurra uma maça para baixo
para fazer valer sua lei da gravidade. Veja só o que os espíritos
explicam:
"Sendo a felicidade dos Espíritos
inerente às suas qualidades, haurem-na eles em toda parte
em que se encontram, sela à superfície da Terra,
no meio dos encarnados, ou no Espaço."
Ou seja, a felicidade não está
num lugar no qual o espírito possa ser colocado para usufruir
um bem estar. Esse sentimento não vem da satisfação
das necessidades, como pensava Helvétius, nem de merecer viver
as beatitudes de um céu imaginário, como prometem os
sacerdotes, mas de uma condição conquistada pelo esforço
voluntário de cada um, ou suas qualidades. Felicidade é
o sentimento daquele que progride. Fazendo uso da música, os
espíritos em O céu e o inferno oferecem uma interessante
comparação:
"Se se encontrarem em um
concerto dois homens, um, bom músico, de ouvido educado,
e outro, desconhecedor da música, de sentido auditivo
pouco delicado, o primeiro experimentará sensação
de felicidade, enquanto o segundo permanecerá insensível,
porque um compreende e percebe o que nenhuma impressão
produz no outro. Assim sucede quanto a todos os gozos dos Espíritos,
que estão na razão da sua sensibilidade. O mundo
espiritual tem esplendores por toda parte, harmonias e sensações
que os Espíritos inferiores, submetidos à influência
da matéria, não entreveem se quer, e que somente
são acessíveis aos Espíritos purificados."
Mas e o castigo, não é
necessário como reação ao erro?
Segundo as tradições
orientais, a cada erro cometido terá como consequência
um castigo. Um sofrimento desta vida, se não tem causa aparente,
estará certamente na vida anterior. É a lei do carma,
ou causa e efeito, ou ação e reação. Mas
não é esse o ensinamento inovador dos espíritos
superiores. Do mesmo modo que a felicidade é inerente às
qualidades, eles ensinam que:
"O sofrimento é
inerente à imperfeição."
Ou seja:
"Sendo o sofrimento inerente
à imperfeição, tanto mais tempo se sofre
quanto mais imperfeito se for, da mesma forma por que tanto
mais tempo persistirá uma enfermidade quanto maior a
demora em tratá-la. Assim é que, enquanto o homem
for orgulhoso, sofrerá as consequências do orgulho;
enquanto egoísta, as do egoísmo."
Qual a relação entre
uma vida e outra, então? Agora é preciso prestar atenção
pois a diferença é sutil. O carma propõe uma
relação de causa e efeito. Ou seja, o erro terá
como efeito o sofrimento. Os espíritos, por sua vez, estão
ensinando que se trata de uma relação de “inerência”
entre a imperfeição e o sofrimento. O indivíduo
sofre nesta vida em virtude da imperfeição presente,
aquela da qual ainda não se libertou, e não por causas
passadas. Afirmam os espíritos:
"Aquele, pois, que sofre
nesta vida pode dizer-se que é porque não se purificou
suficientemente em sua existência anterior, devendo, se
o não fizer nesta, sofrer ainda na seguinte. Isto é
ao mesmo tempo equitativo e lógico."
Está bem claro, não
se sofre nesta vida tendo com causa o erro da vida passada. Quem sofre
nessa vida, é em virtude da imperfeição que ainda
tem, desde as outras passadas. Em verdade desde que desenvolveu os
hábitos que caracterizam sua imperfeição. Porque
todos fomos criados simples e ignorantes. Alguns desenvolvem imperfeições
e vão precisar superá-las, outros conquistam qualidades
sem precisar passar por aquela condição. A ignorancia
é o ponto de partida de todos, a virtude será igualmente
o destino de todos, a imperfeição é a escolha
de alguns. Muitos evoluem sem precisar enfrentar as expiações,
explicam os espíritos superiores em O evangelho segundo
o espiritismo:
"Entretanto, nem todos
os Espíritos que encarnam na Terra vão para aí
em expiação. As raças a que chamais selvagens
são formadas de Espíritos que apenas saíram
da infância e que na Terra se acham, por assim dizer,
em curso de educação, para se desenvolverem pelo
contato com Espíritos mais adiantados. Os Espíritos
em expiação, se nos podemos exprimir dessa forma,
são exóticos, na Terra; já tiveram noutros
mundos, donde foram excluídos em consequência da
sua obstinação no mal e por se haverem constituído,
em tais mundos, causa de perturbação para os bons.
Tiveram de ser degradados, por algum tempo, para o meio de Espíritos
mais atrasados, com a missão de fazer que estes últimos
avançassem, pois que levam consigo inteligências
desenvolvidas e o gérmen dos conhecimentos que adquiriram.
Daí vem que os Espíritos em punição
se encontram no seio das raças mais inteligentes."
Deus não lida conosco por meio
de castigos e recompensas, como o faz um treinador de animais. Ele
nos reconhece em nossa natureza espiritual, a mais ampla liberdade.
Criou leis naturais que oferecem consequências naturais às
nossas escolhas. A dor da queda não é um castigo imposto
pela lei da gravidade, mas consequência natural do peso, da
fisiologia, da aceleração da gravidade, tudo previsível
e natural.
Compreender as consequências
naturais de nossos atos, escolhendo o melhor modo de agir em cada
situação, de acordo com as nossas possibilidades é
que podemos denominar virtude. Buscar o melhor para todos, agindo
livremente de acordo com a consciência, usando o esforço
da razão é o ato do dever. Não buscamos em Deus
o livramento das nossas dificuldades, mas a força necessária
para superá-las. O espírita não espera de Deus
recompensa. E isso é novidade apenas na interpretação
correta da palavra de Jesus, pois, há dois mil anos, ele já
ensinava:
“E sereis ditosos por
não terem eles meios de vo-lo retribuir” (Lucas,
14:12-15).