
Caso n.º 1:
4 de dezembro de 2016, EUA. Edgar
Welch, ex-bombeiro e ator de 28 anos, morador do estado da Carolina
do Norte, dirige quase 600km até uma pizzaria em Washington,
capital do país. Carregando um rifle AR-15, um revólver
e uma escopeta calibre 12, ele invade a loja e causa pânico
entre funcionários e clientes. Após ameaçar um
deles, que foge, Welch se concentra em arrombar em uma porta específica.
Quando a polícia chega, descobre-se que o atirador não
era nem um assaltante, nem um dos autores de massacres tão
típicos dos Estados Unidos. A sua motivação era
outra: acabar com uma suposta quadrilha de pedófilos ligada
à candidata democrata à presidência, Hillary Clinton,
e libertar as crianças escravizadas que estariam sendo mantidas
presas na loja. A história vinha sendo divulgada em sites de
direita na Internet, e Welch, indignado com a aparente omissão
das autoridades, decidira “investigar” o caso in loco.
Não havia nada, porém, e Welch é preso e condenado
a 4 anos de prisão.
Caso n.º 2:
Guarujá, SP, maio de 2014. Fabiane Maria de Jesus, dona de
casa de 33 anos, oferece uma fruta que havia acabado de comprar a
um menino na rua. A mãe da criança, ao ver a cena, se
lembra de um retrato falado publicado no site Guarujá Alerta,
de uma mulher que supostamente estaria raptando crianças para
rituais de magia negra. Achando que o filho corria perigo, ela dá
o alerta e logo uma multidão cerca Fabiane. Começa um
longo espancamento, que durou duas horas, assistido por centenas de
testemunhas impassíveis, muitas vindas de bairros vizinhos
para ver a “bruxa”. Fabiane é internada, e o vídeo
de seu linchamento viraliza. No dia seguinte, ela morre. Segundo a
polícia, não havia nenhum caso de sequestro, muito menos
de crianças, registrado na cidade. O retrato falado da “bruxa”
vinha de um crime cometido no Rio de Janeiro em 2012, sem relação
com o Guarujá. Apenas cinco pessoas foram condenadas pelo linchamento.
Fabiane deixou marido e dois filhos.
As histórias de Edgar e Fabiane, embora muito diversas, têm
pelo menos dois traços em comum: o caráter trágico
e o fato de que ambas eram perfeitamente evitáveis. Se Edgar,
indignado com a ideia de crianças sofrendo abusos, tivesse
tido o cuidado de pesquisar sites com maior credibilidade, talvez
não tivesse feito o que fez. E se os responsáveis pelo
site Guarujá Alerta tivessem verificado a história
da “bruxa” antes de a publicarem, ou se os vizinhos de
Fabiane tivessem, entre outras coisas, a noção de que
nem tudo que é publicado é verdadeiro, especialmente
quando se trata de acusações criminais, talvez os dois
filhos da vítima ainda estivessem com sua mãe. Cada
um ao seu modo, Edgar Welch e Fabiane de Jesus foram vítimas
da face moderna de um fenômeno muito antigo: uma combinação
perversa de boato, viés de confirmação e comunicação
de massa ora chamada de pós-verdade, bem como suas
irmãs gêmeas, as notícias falsas (fakenews).
Definindo o problema
Esclareçamos desde o início: “pós-verdade”
é um eufemismo para mentira. Aparentemente a expressão
nasceu nos EUA, segundo alguns em 2010, segundo outros no início
dos anos 90; mas o fato é que só se popularizou durante
a campanha presidencial de 2016. Neste caso, ela designava o uso frequente
e deliberado de informações falsas e dados distorcidos
sobre questões objetivas, principalmente por parte do então
candidato Donald Trump e seus apoiadores. Em um país já
famoso pela produção de teorias conspiratórias
e pela forte polarização política nas últimas
décadas, a facilidade com que Trump e seus correligionários
repetiam afirmações factuais já desmentidas por
especialistas e repórteres, chamou a atenção.
Declarações bombásticas sobre o índice
de criminalidade entre imigrantes mexicanos, o fenômeno do aquecimento
global e acusações contra a honra de rivais (como “Barack
Obama é o fundador do Estado Islâmico”) eram divulgadas
a torto a direito, não apenas em comícios e entrevistas,
mas em todo o aparato midiático que os repercute: blogs, redes
sociais, fóruns de discussão, vídeo no YouTube,
etc. A prática continuou mesmo após a vitória:
no dia seguinte à posse de Trump, o novo porta-voz da Casa
Branca, Sean Spicer, insistiu que a cerimônia tivera uma audiência
maior que a de todos os presidentes anteriores. Mesmo quando se divulgaram
fotos mostrando um público maior na posse de Barack Obama,
uma assessora de alto nível do novo governo, Kellyanne Conway,
insistiu na versão, alegando que Spicer havia apresentado não
uma mentira, mas apenas “fatos alternativos”. Foi provavelmente
a primeira vez que um governo nos EUA tentou mudar a própria
definição de “fato”.
O fenômeno não era uma exclusividade americana. Ainda
em 2016, a campanha pelo “Brexit” — a saída
da Grã-Bretanha da União Europeia — martelou dados
inflados sobre os custos da participação do país
na organização. No Brasil, há anos, intelectuais
radicais, alguns religiosos e seus admiradores, inclusive políticos,
têm propagado veementemente análises baseadas em complôs
internacionais para destruir a civilização ou roubar
determinadas riquezas minerais estratégicas do Brasil. No caso,
alegações nunca provadas, mas repisadas com convicção
e alheias a qualquer tentativa de refutação. Mais recentemente,
também em nosso país têm se propagado grupos dedicados
a ideias completamente opostas ao consenso científico existente,
como a de que vacinas causariam autismo ou, até, de que a Terra
seria plana em vez de redonda. Isso para não falar da “guerra
de narrativas” ensejada pela guerra política em torno
do impeachment de Dilma Rousseff, que continua até hoje.

O que todos eles têm em comum? Da parte dos formuladores, principalmente
o desprezo pelos fatos; da parte dos seguidores, a disposição
para acreditar e o envolvimento apaixonado com o assunto em pauta.
Na “pós-verdade”, não interessa debater
ou desvendar a realidade, mas mobilizar o público para um fim
específico. Dados falsos, estudos arranjados, interpretações
distorcidas, falsas citações, memes, manchetes apelativas
desvinculadas do conteúdo real das reportagens, vale tudo para
propagar um certo ponto de vista, de preferência em frases curtas
e de forte apelo emocional. Nessa perspectiva, o único critério
funcional para avaliar uma informação é: isso
confirma o que eu já acredito? Se sim, ótimo; se não,
só pode estar errado, não importa de quem venha. O uso
cada vez maior da Internet como fonte de informação
agrava o problema: não apenas tendemos naturalmente a dar mais
valor e atenção àquilo que concorda com nossas
crenças (o viés de confirmação), como
muitas vezes não sabemos distinguir entre o que é uma
fonte confiável e uma não confiável. Para piorar,
criou-se toda uma indústria que se alimenta dessa ignorância,
como portais de “notícias” falsas cujo objetivo
é atrair o maior número de cliques com manchetes sensacionalistas
a fim de gerar receita publicitária.(1)
Um desses casos, por exemplo, foi o de
um grupo de adolescentes na cidade de Veles, na Macedônia, que
registraram mais de cem domínios de sites de notícias
falsas, para faturarem com os cliques de internautas desavisados.(2)
(1) Em 19/2/2017, a Folha de
S. Paulo publicou uma longa reportagem explicando como esses sites
funcionam: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859808--como-funciona-a-engrenagem-das-noticias-falsas-no-
-brasil.shtml. (Acessado em: 06/10/2017.)
(2) Cf. “Direto da Macadônia:
Ganhei dinheiro publicando notícias falsas”. Piauí,
22/9/2017. Disponível em: http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/09/22/direto-da-mace-donia-eu-ganhei-dinheiro-publicando-noticias-falsas/
(Acesso em: 6/10/2017.)
No meio de tamanha confusão, o que o Espiritismo tem a nos
dizer? Haverá alguma orientação específica
que ele nos ofereça?
A “pós-verdade”
e o Espiritismo
O Espiritismo nasceu das pesquisas
de Allan Kardec com os Espíritos. Ao contrário do que
muitos pensam, não se trata de uma Doutrina que veio pronta
e acabada do outro lado da vida. Pelo contrário, sua natureza
dialógica já se apresenta na sua obra fundadora, O
Livro dos Espíritos (1857). Porém, não bastava
fazer contato e anotar o que os Espíritos diziam; era preciso
selecionar o material, comparar as informações obtidas,
separar o que era consenso e o que não era, estabelecer critérios
de credibilidade. Afinal, como o próprio Kardec já dizia,
os Espíritos nada mais são que as almas dos homens,
portanto:
“[e]ncontramo-los de todos os
graus de conhecimento e de ignorância, de moralidade e de imoralidade;
eis o que não devemos perder de vista. Não esqueçamos
que entre os Espíritos, assim como na Terra, há seres
levianos, estouvados e zombeteiros; pseudossábios, vãos
e orgulhosos, de um saber incompleto; hipócritas, malvados
e, o que nos pareceria inexplicável, se de algum modo não
conhecêssemos a fisiologia desse mundo, existem os sensuais,
os ignóbeis e os devassos que se arrastam na lama. Ao lado
disto, tal como ocorre na Terra, temos seres bons, humanos, benevolentes,
esclarecidos, de sublimes virtudes (...).”(3)
(3) KARDEC,
Allan. Deve-se publicar tudo quanto dizem os Espíritos? Revista
Espírita, novembro de 1859. Tradução de Evandro
Noleto Bezerra. Disponível em:
http://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/ Revista1859.pdf.
(Acesso em: 6/10/2017.
Em outras palavras, nem todo Espírito era confiável,
fosse por suas intenções ou por sua capacidade. Assim
como na Terra não pedimos a um pedreiro que faça uma
cirurgia, ou a um estelionatário que cuide de nossas finanças,
também com os Espíritos é preciso ter certas
cautelas. Foi dessa percepção aparentemente simples,
mas fundamental, que Kardec derivou um conjunto de métodos
para avaliar se uma comunicação mediúnica era
ou não digna de crédito. Tais procedimentos, que envolvem,
por exemplo, a análise cuidadosa da linguagem do Espírito
e de sua concordância, ou não, em relação
a outras mensagens obtidas por médiuns independentes, sem contato
entre si, vão se tornar um dos pré-requisitos para a
fé raciocinada preconizada pelo Espiritismo. Trata-se
de uma fé não dogmática, que não só
permite como estimula uma postura crítica. Sem recair em um
ceticismo exagerado — também uma forma de dogmatismo
—, o espírita, tendo uma base moral consolidada e a convicção
da perfeição das Leis Divinas, também não
se apressa para adotar uma novidade.
Nas palavras do Espírito Erasto, publicadas em O Livro
dos Médiuns:
“Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos antigos
provérbios. Não admitais, pois, o que não for
para vós de evidência inegável. Ao aparecer uma
nova opinião, por menos que vos pareça duvidosa, passai-a
pelo crivo da razão e da lógica. O que a razão
e o bom senso reprovam, rejeitai corajosamente. Mais vale rejeitar
dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única
teoria falsa”.(4)
(4) Cap. XX, “A influência
moral dos médiuns”. Disponível em:
https://livrodosmediuns.wordpress.com/2a-parte-das-manifestacoes-espiritas/cap-20-influencia-moral-
-dos-mediuns/. (Acesso em: 6/10/2017.)
Note-se que esse conselho é bom não só para se
avaliar uma mensagem mediúnica, mas para informações
de ordem geral. Numa época em que existe uma avalanche de informações
sobre toda e qualquer coisa, é preciso saber selecionar, e
isso requer certa serenidade. Hoje até mais do que antes, o
simples fato de algo ser publicado — num website ou num livro,
numa rede social ou numa revista — não é em si
atestado de veracidade. O papel e a tela aceitam tudo. Por outro lado,
ficou muito mais fácil verificar a maioria das informações,
trocar ideias, comparar materiais. No caso de Edgar Welch e Fabiane
de Jesus, talvez uns poucos minutos no Google pudessem ter feito a
diferença entre liberdade e prisão, e entre vida e morte.
Na falta disso, a simples prudência diante de denúncias
fortes vindas de fontes obscuras já teria bastado, e o mundo
teria sido poupado de dois crimes.

Por fim, algumas dicas iniciais podem
nos prevenir contra manipulações. Uma delas é
conhecer os sites de verificação de fatos (fact-checking),
alguns deles especializados em boatos de Internet, como o E-farsas
(www.e-farsas. com) e o Boatos.org (www. boatos.org). Também
há guias da grande imprensa como reconhecer notícias
falsas, como fez o G1 (https://g1.globo.com/e-ou-nao-e/noticia/como-saber-se-uma-noticia-e-falsa.ghtml)
e também o El País(https://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/28/
t e c n o l o g i a / 1 4 8 0 3 4 5 5 1 4 _ 0 6 6 1 4 2 . ht m l )
Finalmente, também é preciso atentar para as famosas
“correntes” que circulavam por e-mail e hoje grassam por
aplicativos como o WhatsApp: nunca repasse nada que não tenha
verificado antes. Isso vale para acusações, textos alarmistas
(“Aviso urgente!”), mensagens com dados pessoais de alguém
(como telefone, foto ou nome) e também supostas mensagens mediúnicas.
Afinal de contas, talvez nenhum outro campo de atividade exija maior
prudência que o intercâmbio com o mundo espiritual, que
também tem seus charlatões e suas fakenews. Para isto,
a melhor dica ainda é O Livro dos Médiuns e
um bom domínio da Doutrina Espírita. Mas isso é
assunto para uma outra oportunidade.
Finalizando, tanto para este como para o outro mundo, guardemos, mais
uma vez, o conselho de Erasto: “Mais vale rejeitar dez verdades
do que aceitar uma única mentira...”.