Espiritualidade e Sociedade





Rodrigo Farias

>   Os perigos da “pós-verdade” - Um olhar espírita na era da (des) informação

Artigos, teses e publicações

Rodrigo Farias
>   Os perigos da “pós-verdade” - Um olhar espírita na era da (des) informação

 

 

Caso n.º 1:

4 de dezembro de 2016, EUA. Edgar Welch, ex-bombeiro e ator de 28 anos, morador do estado da Carolina do Norte, dirige quase 600km até uma pizzaria em Washington, capital do país. Carregando um rifle AR-15, um revólver e uma escopeta calibre 12, ele invade a loja e causa pânico entre funcionários e clientes. Após ameaçar um deles, que foge, Welch se concentra em arrombar em uma porta específica. Quando a polícia chega, descobre-se que o atirador não era nem um assaltante, nem um dos autores de massacres tão típicos dos Estados Unidos. A sua motivação era outra: acabar com uma suposta quadrilha de pedófilos ligada à candidata democrata à presidência, Hillary Clinton, e libertar as crianças escravizadas que estariam sendo mantidas presas na loja. A história vinha sendo divulgada em sites de direita na Internet, e Welch, indignado com a aparente omissão das autoridades, decidira “investigar” o caso in loco. Não havia nada, porém, e Welch é preso e condenado a 4 anos de prisão.

Caso n.º 2:

Guarujá, SP, maio de 2014. Fabiane Maria de Jesus, dona de casa de 33 anos, oferece uma fruta que havia acabado de comprar a um menino na rua. A mãe da criança, ao ver a cena, se lembra de um retrato falado publicado no site Guarujá Alerta, de uma mulher que supostamente estaria raptando crianças para rituais de magia negra. Achando que o filho corria perigo, ela dá o alerta e logo uma multidão cerca Fabiane. Começa um longo espancamento, que durou duas horas, assistido por centenas de testemunhas impassíveis, muitas vindas de bairros vizinhos para ver a “bruxa”. Fabiane é internada, e o vídeo de seu linchamento viraliza. No dia seguinte, ela morre. Segundo a polícia, não havia nenhum caso de sequestro, muito menos de crianças, registrado na cidade. O retrato falado da “bruxa” vinha de um crime cometido no Rio de Janeiro em 2012, sem relação com o Guarujá. Apenas cinco pessoas foram condenadas pelo linchamento. Fabiane deixou marido e dois filhos.

As histórias de Edgar e Fabiane, embora muito diversas, têm pelo menos dois traços em comum: o caráter trágico e o fato de que ambas eram perfeitamente evitáveis. Se Edgar, indignado com a ideia de crianças sofrendo abusos, tivesse tido o cuidado de pesquisar sites com maior credibilidade, talvez não tivesse feito o que fez. E se os responsáveis pelo site Guarujá Alerta tivessem verificado a história da “bruxa” antes de a publicarem, ou se os vizinhos de Fabiane tivessem, entre outras coisas, a noção de que nem tudo que é publicado é verdadeiro, especialmente quando se trata de acusações criminais, talvez os dois filhos da vítima ainda estivessem com sua mãe. Cada um ao seu modo, Edgar Welch e Fabiane de Jesus foram vítimas da face moderna de um fenômeno muito antigo: uma combinação perversa de boato, viés de confirmação e comunicação de massa ora chamada de pós-verdade, bem como suas irmãs gêmeas, as notícias falsas (fakenews).

Definindo o problema

Esclareçamos desde o início: “pós-verdade” é um eufemismo para mentira. Aparentemente a expressão nasceu nos EUA, segundo alguns em 2010, segundo outros no início dos anos 90; mas o fato é que só se popularizou durante a campanha presidencial de 2016. Neste caso, ela designava o uso frequente e deliberado de informações falsas e dados distorcidos sobre questões objetivas, principalmente por parte do então candidato Donald Trump e seus apoiadores. Em um país já famoso pela produção de teorias conspiratórias e pela forte polarização política nas últimas décadas, a facilidade com que Trump e seus correligionários repetiam afirmações factuais já desmentidas por especialistas e repórteres, chamou a atenção. Declarações bombásticas sobre o índice de criminalidade entre imigrantes mexicanos, o fenômeno do aquecimento global e acusações contra a honra de rivais (como “Barack Obama é o fundador do Estado Islâmico”) eram divulgadas a torto a direito, não apenas em comícios e entrevistas, mas em todo o aparato midiático que os repercute: blogs, redes sociais, fóruns de discussão, vídeo no YouTube, etc. A prática continuou mesmo após a vitória: no dia seguinte à posse de Trump, o novo porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, insistiu que a cerimônia tivera uma audiência maior que a de todos os presidentes anteriores. Mesmo quando se divulgaram fotos mostrando um público maior na posse de Barack Obama, uma assessora de alto nível do novo governo, Kellyanne Conway, insistiu na versão, alegando que Spicer havia apresentado não uma mentira, mas apenas “fatos alternativos”. Foi provavelmente a primeira vez que um governo nos EUA tentou mudar a própria definição de “fato”.

O fenômeno não era uma exclusividade americana. Ainda em 2016, a campanha pelo “Brexit” — a saída da Grã-Bretanha da União Europeia — martelou dados inflados sobre os custos da participação do país na organização. No Brasil, há anos, intelectuais radicais, alguns religiosos e seus admiradores, inclusive políticos, têm propagado veementemente análises baseadas em complôs internacionais para destruir a civilização ou roubar determinadas riquezas minerais estratégicas do Brasil. No caso, alegações nunca provadas, mas repisadas com convicção e alheias a qualquer tentativa de refutação. Mais recentemente, também em nosso país têm se propagado grupos dedicados a ideias completamente opostas ao consenso científico existente, como a de que vacinas causariam autismo ou, até, de que a Terra seria plana em vez de redonda. Isso para não falar da “guerra de narrativas” ensejada pela guerra política em torno do impeachment de Dilma Rousseff, que continua até hoje.

 




O que todos eles têm em comum? Da parte dos formuladores, principalmente o desprezo pelos fatos; da parte dos seguidores, a disposição para acreditar e o envolvimento apaixonado com o assunto em pauta. Na “pós-verdade”, não interessa debater ou desvendar a realidade, mas mobilizar o público para um fim específico. Dados falsos, estudos arranjados, interpretações distorcidas, falsas citações, memes, manchetes apelativas desvinculadas do conteúdo real das reportagens, vale tudo para propagar um certo ponto de vista, de preferência em frases curtas e de forte apelo emocional. Nessa perspectiva, o único critério funcional para avaliar uma informação é: isso confirma o que eu já acredito? Se sim, ótimo; se não, só pode estar errado, não importa de quem venha. O uso cada vez maior da Internet como fonte de informação agrava o problema: não apenas tendemos naturalmente a dar mais valor e atenção àquilo que concorda com nossas crenças (o viés de confirmação), como muitas vezes não sabemos distinguir entre o que é uma fonte confiável e uma não confiável. Para piorar, criou-se toda uma indústria que se alimenta dessa ignorância, como portais de “notícias” falsas cujo objetivo é atrair o maior número de cliques com manchetes sensacionalistas a fim de gerar receita publicitária.
(1) Um desses casos, por exemplo, foi o de um grupo de adolescentes na cidade de Veles, na Macedônia, que registraram mais de cem domínios de sites de notícias falsas, para faturarem com os cliques de internautas desavisados.(2)

(1) Em 19/2/2017, a Folha de S. Paulo publicou uma longa reportagem explicando como esses sites funcionam: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859808--como-funciona-a-engrenagem-das-noticias-falsas-no- -brasil.shtml. (Acessado em: 06/10/2017.)

(2) Cf. “Direto da Macadônia: Ganhei dinheiro publicando notícias falsas”. Piauí, 22/9/2017. Disponível em: http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/09/22/direto-da-mace-donia-eu-ganhei-dinheiro-publicando-noticias-falsas/ (Acesso em: 6/10/2017.)

No meio de tamanha confusão, o que o Espiritismo tem a nos dizer? Haverá alguma orientação específica que ele nos ofereça?

 

A “pós-verdade” e o Espiritismo

O Espiritismo nasceu das pesquisas de Allan Kardec com os Espíritos. Ao contrário do que muitos pensam, não se trata de uma Doutrina que veio pronta e acabada do outro lado da vida. Pelo contrário, sua natureza dialógica já se apresenta na sua obra fundadora, O Livro dos Espíritos (1857). Porém, não bastava fazer contato e anotar o que os Espíritos diziam; era preciso selecionar o material, comparar as informações obtidas, separar o que era consenso e o que não era, estabelecer critérios de credibilidade. Afinal, como o próprio Kardec já dizia, os Espíritos nada mais são que as almas dos homens, portanto:

“[e]ncontramo-los de todos os graus de conhecimento e de ignorância, de moralidade e de imoralidade; eis o que não devemos perder de vista. Não esqueçamos que entre os Espíritos, assim como na Terra, há seres levianos, estouvados e zombeteiros; pseudossábios, vãos e orgulhosos, de um saber incompleto; hipócritas, malvados e, o que nos pareceria inexplicável, se de algum modo não conhecêssemos a fisiologia desse mundo, existem os sensuais, os ignóbeis e os devassos que se arrastam na lama. Ao lado disto, tal como ocorre na Terra, temos seres bons, humanos, benevolentes, esclarecidos, de sublimes virtudes (...).”(3)

(3) KARDEC, Allan. Deve-se publicar tudo quanto dizem os Espíritos? Revista Espírita, novembro de 1859. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Disponível em:
http://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/ Revista1859.pdf. (Acesso em: 6/10/2017.


Em outras palavras, nem todo Espírito era confiável, fosse por suas intenções ou por sua capacidade. Assim como na Terra não pedimos a um pedreiro que faça uma cirurgia, ou a um estelionatário que cuide de nossas finanças, também com os Espíritos é preciso ter certas cautelas. Foi dessa percepção aparentemente simples, mas fundamental, que Kardec derivou um conjunto de métodos para avaliar se uma comunicação mediúnica era ou não digna de crédito. Tais procedimentos, que envolvem, por exemplo, a análise cuidadosa da linguagem do Espírito e de sua concordância, ou não, em relação a outras mensagens obtidas por médiuns independentes, sem contato entre si, vão se tornar um dos pré-requisitos para a fé raciocinada preconizada pelo Espiritismo. Trata-se de uma fé não dogmática, que não só permite como estimula uma postura crítica. Sem recair em um ceticismo exagerado — também uma forma de dogmatismo —, o espírita, tendo uma base moral consolidada e a convicção da perfeição das Leis Divinas, também não se apressa para adotar uma novidade.

Nas palavras do Espírito Erasto, publicadas em O Livro dos Médiuns:

“Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos antigos provérbios. Não admitais, pois, o que não for para vós de evidência inegável. Ao aparecer uma nova opinião, por menos que vos pareça duvidosa, passai-a pelo crivo da razão e da lógica. O que a razão e o bom senso reprovam, rejeitai corajosamente. Mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única teoria falsa”.(4)

(4) Cap. XX, “A influência moral dos médiuns”. Disponível em:
https://livrodosmediuns.wordpress.com/2a-parte-das-manifestacoes-espiritas/cap-20-influencia-moral- -dos-mediuns/. (Acesso em: 6/10/2017.)

Note-se que esse conselho é bom não só para se avaliar uma mensagem mediúnica, mas para informações de ordem geral. Numa época em que existe uma avalanche de informações sobre toda e qualquer coisa, é preciso saber selecionar, e isso requer certa serenidade. Hoje até mais do que antes, o simples fato de algo ser publicado — num website ou num livro, numa rede social ou numa revista — não é em si atestado de veracidade. O papel e a tela aceitam tudo. Por outro lado, ficou muito mais fácil verificar a maioria das informações, trocar ideias, comparar materiais. No caso de Edgar Welch e Fabiane de Jesus, talvez uns poucos minutos no Google pudessem ter feito a diferença entre liberdade e prisão, e entre vida e morte. Na falta disso, a simples prudência diante de denúncias fortes vindas de fontes obscuras já teria bastado, e o mundo teria sido poupado de dois crimes.

 



 

Por fim, algumas dicas iniciais podem nos prevenir contra manipulações. Uma delas é conhecer os sites de verificação de fatos (fact-checking), alguns deles especializados em boatos de Internet, como o E-farsas (www.e-farsas. com) e o Boatos.org (www. boatos.org). Também há guias da grande imprensa como reconhecer notícias falsas, como fez o G1 (https://g1.globo.com/e-ou-nao-e/noticia/como-saber-se-uma-noticia-e-falsa.ghtml) e também o El País(https://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/28/ t e c n o l o g i a / 1 4 8 0 3 4 5 5 1 4 _ 0 6 6 1 4 2 . ht m l )

Finalmente, também é preciso atentar para as famosas “correntes” que circulavam por e-mail e hoje grassam por aplicativos como o WhatsApp: nunca repasse nada que não tenha verificado antes. Isso vale para acusações, textos alarmistas (“Aviso urgente!”), mensagens com dados pessoais de alguém (como telefone, foto ou nome) e também supostas mensagens mediúnicas. Afinal de contas, talvez nenhum outro campo de atividade exija maior prudência que o intercâmbio com o mundo espiritual, que também tem seus charlatões e suas fakenews. Para isto, a melhor dica ainda é O Livro dos Médiuns e um bom domínio da Doutrina Espírita. Mas isso é assunto para uma outra oportunidade.

Finalizando, tanto para este como para o outro mundo, guardemos, mais uma vez, o conselho de Erasto: “Mais vale rejeitar dez verdades do que aceitar uma única mentira...”.

 

 

Fonte: Revista CELD de Estudos Espíritas
https://celd.xyz/wp-content/uploads/12-Revista_CELD_Dezembro_2017.pdf

 

 

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