10/06/2014
Conceitos como “cordialidade brasileira” e “democracia
racial” estão sendo postos à prova no momento em
que há um reconhecimento inédito, por parte do Estado
brasileiro, notadamente depois de 1992, da importância de políticas
públicas que tentam reduzir a desigualdade social. Por outro
lado, o reconhecimento e enfrentamento de uma divisão racial
interna explicitou uma das facetas atribuídas à identidade
brasileira, qual seja, a manutenção de uma ambiguidade
(Ferreira, 2000),
do estigma como impulso de reversão (Munanga,
2004) e do cinismo em relação
à lei (Safatle, 2008),
que se estende às relações raciais em sua economia
de transformação entre a esfera pública e a esfera
privada, onde, por exemplo, uma empregada doméstica é
retratada afetivamente como “parte da família”, mas
não senta com essa mesma família à mesa para jantar.
O caso brasileiro se torna mais relevante se atentamos para o cenário
dos anos 2000-2010, com a chegada da “nova classe trabalhadora”,
segundo Jessé de Souza (2010),
às universidades e ao mercado mais amplo de consumo. Esse fenômeno
parece ter dado ensejo a um novo tipo de intolerância em relação
às diferenças étnicas e sociais, eventualmente
ligado a uma nova gramática de opressão e violência
(Guimarães, 2012).
Entender a natureza da complexidade envolvida, quando se trata de questões
relativas à intolerância, tem levado muitos pesquisadores
a pensar que deveríamos ir além das circunstâncias
econômicas, políticas e sociais que justificam as paixões
das nações, grupos étnicos e religiosos, classes
sociais e indivíduos. É preciso abarcar a especificidade
de cada conflito, inclusive as fantasias que cada grupo provoca no outro
com os quais tem contato e disputa espaços políticos,
ampliando o debate acerca do tema para um patamar que ultrapasse os
posicionamentos dualistas de avaliação das práticas
em andamento e outras ações possíveis na redução
dos problemas.
Uma das formas de implementação das denominadas “políticas
de igualdade” no Brasil, nos últimos anos, tem sido por
meio de políticas denominadas “ações afirmativas”,
medidas positivas tomadas para aumentar a representação
das minorias nas áreas do emprego e da educação
(Vieira, 2005).
Como essas ações envolvem seleção preferencial
com base em raça, gênero ou etnia, a ação
afirmativa pode, no entanto, gerar intensa polêmica. Isso deveria
implicar, nos parece, que se ampliasse o conhecimento das populações
envolvidas para além das pesquisas que se assemelham a levantamentos
de opinião, favoráveis ou não a essas ações.
Parece vital que tais ações sejam pensadas no escopo de
estudos qualitativos que orientem de forma mais abrangente, incluindo
a experiência de outros países, com as possíveis
medidas educacionais ou preventivas que as transformem em uma política
efetiva de oportunidades.
O desenvolvimento, a defesa e a contestação das ações
afirmativas no Brasil e em grande parte do mundo prosseguiu ao longo
de dois caminhos. Um deles foi o meio jurídico e administrativo,
como os tribunais, as legislaturas e os órgãos executivos
governamentais que fizeram ser aplicadas regras, como exigem as políticas
de igualdade. O outro meio tem sido o caminho do debate público,
onde a prática de tratamento preferencial gerou uma vasta literatura
de prós e contras. Muitas vezes, os dois caminhos não
conseguiram fazer uma interlocução adequada, com as discussões
públicas nem sempre bem ancoradas nas bases jurídicas
ou nas práticas sociais. Contudo, nessas duas dimensões,
a jurídica e a dos movimentos sociais, a identidade toma um papel
decisivo. É preciso se reconhecer e se incluir em um conjunto,
grupo ou denominação para que certas transformações
se processem; no entanto, essa inclusão reforça a potência
identitária e, com isso, as relações de contraste,
ameaça e agressividade para com as contra-identidades (Jones,
1993). Neste processo, assume particular
interesse a noção lacaniana de gozo, tomada como fator
político. A fantasia sobre a “identidade de gozo”
do outro é um dos principais indutores subjetivos da agressividade
e de sua contenção por meio das segregações
imaginárias (Zizek, 2006, Koltai,
2000). Vários capítulos do
livro Raízes da intolerância (ed.
Edufscar, 2014) tentam mostrar como essa
conexão entre o gozo identitário suposto ao outro, associado
com a crise imaginária do sujeito, constituem uma combinação
indutora da série composta pela intolerância, segregação
e violência.
A psicanálise lembra que as mais estranhas manifestações
de intolerância são reservadas às pessoas “estranhas”
que tentam agir e falar como aqueles que se julgam “cidadãos
natos” e “autênticos”. Quanto mais estes “estranhos”
tentam emular e imitar, isto é, quanto mais eles tentam “pertencer”,
mais feroz aparece a rejeição. Em O tabu da virgindade,
publicado em 1917, Freud cunhou a expressão “narcisismo
das pequenas diferenças”, referindo-se a um trabalho
anterior, do antropólogo britânico Ernest Crawley, que
havia dito que reservamos nossas emoções mais virulentas
(agressão, ódio, inveja) para aqueles que mais nos lembram
e nos ameaçam por essa semelhança, muito mais do que para
aqueles com quem temos pouca coisa em comum. Partindo da sua teoria
do narcisismo, Freud abordou os mecanismos de intolerância, segregação
e violência existentes na cultura para explicar como humanos vivendo
em sociedades teriam propensão à agressão uns contra
os outros. Haveria um processo no sentido de estigmatizar o outro com
pequenas diferenças que construiriam o estranhamento
desse outro e a segregação nos grupos.
O problema da intolerância racial, ao que parece, se deslocou,
decisivamente, para a esfera do sofrimento social e das estratégias
não apenas públicas de reconhecimento de diferenças.
Nesse sentido, a conceitografia psicanalítica nos ajudaria a
pensar como demandas políticas e aspirações por
novas formas de vida dependem de experiências de satisfação
e modos de gozo que são desconhecidos aos próprios atores
sociais nos quais se expressam. Isso significaria pensar que a nova
posição do problema depende de que reconheçamos
o fracasso relativo, e talvez a função de sintoma, exercido
pelas políticas multiculturalistas, aqui entendidas como políticas
da tolerância, que precederam e condicionaram a atual situação.
A composição heteróclita de aspirações
de classe, de gênero, de raça, de origem cultural, já
foi apontada pela teoria da intersecção (Burman), pelas
teorias pós-coloniais (Spivak), pelas teorias de gênero
(Butler) e pelos teóricos da política radical (Badiou,
Laclau, Mouffe, Zizek) como referidas a um problema comum: a concepção
identitarista que anela as reinvindicações transformativas
com uma alienação identitária. O principal sintoma
decorrente das políticas excessivamente centradas nas demandas
de identidade é a segregação imaginária
do outro, como contra-identidade formada no escopo mesmo da reificação
dos personagens envolvidos no conflito.
No Brasil, podemos dizer que as ações afirmativas caminham
hoje em sentido diferente, especialmente se pensarmos no projeto político
desenvolvido durante a ditadura militar dos anos 1970, onde havia um
massivo esforço de propaganda para unir a nação
“como um só povo”, um projeto político nacionalista
que defendia uma confrontação à “ameaça
vermelha” do comunismo como uma ameaça representada pelo
outro. Nesse sentido, as políticas de igualdade, depois dos anos
2000, têm agora outra direção. No entanto, o resgate
histórico das desigualdades do passado com particular relevo
para o legado da escravidão e o extermínio das nações
indígenas, ainda não foi feito com a devida elaboração
(ducharbeiten)
histórica. Passamos, assim, de um regime de alta densidade em
termos de políticas de identidade nacional, como parte de uma
política de Estado marcada pela intolerância, para um estado
de abertura do país, caracterizado pela grande internacionalização
econômica e intensa mobilidade social. Em menos de 20 anos, o
Brasil formou uma rede capilarizada de organizações não
governamentais, com um terceiro setor cada vez mais entranhado nos interesses
do novo Estado (Gohn, 2005).
Inicia-se um processo extenso de transformações jurídicas
e institucionais voltado para a inclusão de diferenças
e igualdade social. Isso afetou a escolarização por meio
dos marcos regulatórios mais inclusivos, o acesso às universidades
por meio do sistema de cotas, a humanização dos serviços
de saúde, a ampliação do acesso ao trabalho no
Estado e fora dele, por parte de populações antes ignoradas.
Tais indícios de ampliação da cidadania e redução
concreta da desigualdade social acirraram efeitos de intolerância
e, mais recentemente, de segregação. Um caso típico
é a situação de incremento da violência policial
em meio a demandas de transformação políticas geradas
pelo problema da mobilidade em grandes metrópoles (Vainer
et alli, 2013). Tudo se passa como
se o deslocamento do conflito do escopo econômico da desigualdade
para o conflito identitário e do reconhecimento, que em outros
países foi pré-elaborada por discursos multiculturais,
encontrasse, no Brasil, uma passagem direta. Como se ainda não
tivéssemos feito um bom balanço do que restou da ditadura,
para além de suas estruturas institucionais (Teles
& Safatle, 2007).
João Angelo Fantini é
professor do Centro de Educação e Ciências Humanas
da Universidade Federal de São Carlos e líder do grupo
de pesquisa Estudos sobre Intolerância.
* Este artigo é uma versão
parcial do capítulo do mesmo autor publicado no livro Raízes
da intolerância (ed. Edufscar, 2014) e é resultado
de Bolsa de Pesquisa no Exterior (proc. 2011/18801-4) da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
Referências bibliográficas
Bhaba, H.K. O local da cultura. Belo Horiznte, UFMG,
1998 2003. Dunker, C. I. L.. "Psychology and psychoanalysis in
Brazil: from cultural syncretism to the collapse of liberal individualism".
Theory & Psychology. , v.18, p.223–236, 2008.
Dyer, R. White. New York : Routledge, 1997.
Eagleton, T. As ilusões do pós modernismo. Rio de Janeiro,
Joge Zahar, 1996 1998.
Fanon, F. Black skins, black skin, white mask , London, Pluto, 1986.
Fantini, J. A. Raízes da intolerância. Edufscar, 2014.
Fantini, J. A. “The ‘racialized’ other: intolerance
and political equality in Brazil and the United Kingdom”. Anais
do Congresso: Psychoanalysis, Culture and Society na Middlesex University,
London, Reino Unido. (no prelo).
Fantini, J. A. Imagens do pai no cinema: clínica da cultura contemporânea.
Edufscar, 2009.
Ferreira, R.F. Afro descendente – identidade em construção
. Educ-Fapesp , São Paulo, 2000.
Freud, S. “ The taboo of virginity (contributions to the psychology
of love III)”. The Standard Edition, Volume XI (1910): Five Lectures
on Psycho-Analysis, Leonardo da Vinci and Other Works, p.191-208, 1918.
Freud, S. (1905).”On psychotherapy”. The Standard Edition.
Volume VII, 1905.
Frosh, S. and Baraitser, L. “Psychoanalysis and psychosocial studies”,
Psychoanalysis, Culture and Society, 13(4), p.346-365, 2008.
Frosh, S. “Desire, demand and psychotherapy: on large groups and
neighbours”. Psychotherapy and Politics International. volume
6, Issue 3, p.185–197, october, 2008.
Frosh, S. “Psychosocial studies and psychology: is a critical
approach emerging?”. Human Relations; 56; 1545 DOI: 10.1177/00187267035612005,
2003.
Frosh, S., Phoenix, A., & Pattman, R. Young masculinities: understanding
boys in contemporary society. London: Palgrave, 2002.
Gohn, M. G. O protagonismo da sociedade civil: movimentos sociais, Ongs
e redes solidárias. São Paulo: Cortez, 2005.
Guimarães, Antonio Sérgio Alfredo. “Cidadania e
retóricas negras de inclusão social”. (Dossiê
Questão Racial no Brasil) Luca Nova Revista de Política
e Cultura, n 85, 2012.
Hesse, B.(ed.). Un/settled multiculturalisms: diasporas, entanglements,
transruptions. London: Zed Books, 2000.
Hook, D. A critical psychology of the postcolonial: biko, fanon, racism
and psychoanalysis. Routledge: London & New York, 2011.
Hook, D. “The 'real' of racializing embodiment”. Journal
of Community and Applied Social Psychology, 18, 2, p.140-152, 2008.
Hook, D. “‘Pre-discursive’ racism”. Journal
of Community and Applied Social Psychology, 16 (3). p. 207-232, John
Wiley & Sons, Inc, 2006.
Jones Jr., J. E. “The rise and fall of affirmative action”.
In: Hill, H.; Jones Jr., J. E. (eds.). Race in America: the struggle
for equality. Wisconsin: University of Wisconsin Press, p. 345-368,
1993.
Koltai, C. Política e psicanálise: o estrangeiro. São
Paulo, Escuta, 2000.
Lacan, J. “Nota sul padre e l’universalismo”, La Psicoanalisi
33, Studi internazionali del campo freudiano, Astrolabio, 2003.
Lacan J. “Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de
l’ecole”, Autres Ecrits, Paris, Le Seuil, 2001.
Lacan, J. “Introduction au commentaire de Jean Hyppolite sur la
‘Verneinung’ de Freud”. Ecrits, Seuil, Paris, 1966
1998.
Lyotard, J.F. Moralidades pós-modernas. Campinas, Papirus, 1993
1996.
Mitchell, J. “From infant to child: the sibling trauma, the rite
de passage, and the construction of the “other” in the social
group”. Fort Da 12: p.35-49, 2006.
Mannoni, O. “ Prospero and caliban: the psychology of colonization”.
New York: Frederick
A. Praeger, 1956. Rpt. of Psychologie de la Colonisation . Paris : Seuil,
1950. Disponível em: http://postcolonialstudies.emory.edu/octave-mannoni/#ixzz2qTrVgAjI
.
Munanga K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade nacional
versus identidade negra. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica,
2004.
Pinho, P. S. "White but not quite: tones and overtones of whiteness
in Brazil". Small Axe 13(2): p.39-56, July 2009.
Telles, E. E. "Racial Classification". Race in another America:
the significance of skin colour in Brazil, Princeton University Press,
2004.
Safatle, V. Cinismo e falência da crítica. Boitempo, São
Paulo, 2008.
Souza, J. Os batalhadores brasileiros – nova classe média
ou nova classe trabalhadora?. Belo Horizonte, Humanitas, 2010.
Taylor, Charles Multiculturalism. Princeton University Press, 2011.
Teles, S. & Safatle, V. O que restou da ditadura? São Paulo,
Boitempo, 2007 2011.
Vainer, et alli Cidades rebeldes. São Paulo, Boitempo, 2013.
Vieira Júnior, R. J. A. “Rumo ao multiculturalismo: a adoção
compulsória de ações afirmativas pelo Estado brasileiro
como reparação dos danos atuais sofridos pela população
negra”. In: Santos, Sales Augusto dos (Org.). Ações
afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
Zizek, S. In defense of lost causes. New York. Verso, 2009.
Zizek, S. “Tolerance as an ideological category”. Critical
Inquiry. Autumn, 2007.
Zizek, S. The neighbor: tree inquires in political theology. Chicago.
The University of Chicago Press, 2006.
Zizek, S. The ticklish subject: the absent centre of political ontology.
Verso, 2000.
Zizek, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
Zizek, S. The metastases of enjoyment: six essays on woman and causality.
London: Verso, 1994.
Fonte: ComCiência - Revista
Eletrônica de Jornalismo Científico - http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=100&id=1221
topo