O ser humano tem muitos tipos de inteligência.
A hipótese do psicólogo Howard Gardner, formulada em
1982, o tornou conhecido mundialmente. Passados 25 anos, ele sustenta
haver, além das reconhecidas habilidades lingüística
e lógico-matemática, outras seis formas de inteligência:
espacial (mais presente em navegantes e engenheiros); corporal-cinestésica
(desenvolvida em atletas ou dançarinos); interpessoal (representada
pela capacidade de compreensão dos sentimentos do outro); intrapessoal
(expressa pelo autoconhecimento); naturalística (referente
à relação da pessoa com a natureza) e musical.
Professor da Universidade Harvard, Gardner é considerado um
dos “demolidores” do conceito de quociente de inteligência
(QI). Suas teorias, entretanto, têm pequena aceitação
entre neurobiólogos. Resenha publicada recentemente na revista
Educational Psychologist menciona a insuficiência de comprovação
empírica. A possibilidade de medir a inteligência pela
aplicação de testes simples parece ser um critério
para validação das hipóteses.
Artigo publicado em 2004 pela revista Nature Neuroscience relacionava
o desenvolvimento de competências a fatores socioeconômicos
e a aspectos biológicos como dimensões do cérebro,
duração da memória de curto prazo, velocidade
de transmissão sináptica e metabolismo neuronal. No
mesmo ano foi observada correlação entre o QI de bebês
e a velocidade de crescimento do córtex cerebral. Tais descobertas
não parecem perturbar o prolífico Gardner, que tem sua
teoria aplicada com eficácia em escolas de todo o mundo. Nesta
entrevista, ele declara-se mais interessado em estimular virtudes
e talentos humanos do que em medi-los.

“Não deveria valer apenas a nota
tirada na prova de matemática, mas o respeito pelo outro e
o tipo de ser humano que nos revelamos” - Howard Gardner
Mente&Cérebro:
O senhor poderia resumir sua teoria da inteligência múltipla?
Howard Gardner: A visão tradicional a respeito
da inteligência, que prevalece há centenas de anos, sustenta
que em nosso cérebro existe um único computador, de
capacidade muito geral. Quando funciona bem, a pessoa é inteligente
e capaz de destacar-se em qualquer atividade. Se o desempenho for
apenas razoável, o portador consegue resultado satisfatório
em diversas circunstâncias. Mas se funcionar mal, o dono desse
equipamento é um tolo, incapaz de estabelecer relações
coerentes. Discordo disso tudo. Creio que a relação
cérebro-mente pode ser descrita como um conjunto de oito ou
nove sistemas distintos de elaborações fundamentais.
Um deles pode atuar muito bem enquanto outro apresenta rendimento
mediano e um terceiro funciona mal.
Qualquer observador admitiria que na patologia há fenômenos
que sustentam minha hipótese. Existem pessoas dotadas de grande
talento artístico ou com habilidade para números e xadrez
que, no entanto, são incapazes de compreender os outros e manter
relacionamentos. A medicina oficial as considera casos patológicos,
mas eu sustento que esses fenômenos são normais.
M&C: Vejamos um exemplo: como o senhor avalia a sua
mente?
Gardner: Com base na teoria da inteligência
múltipla eu sou, certamente, do tipo lingüístico-musical.
Minha lógica é boa, mas jamais fará de mim um
matemático. Fisicamente não sou nada especial e sou
medíocre na inteligência espacial, mas me viro bem com
um mapa. A inteligência interpessoal, diferentemente de outras,
pode ser melhorada. Assim, espero continuar aprimorando minha capacidade
de compreender outros.
M&C: Uma das principais objeções à
sua teoria é a impossibilidade de medir as oito formas de inteligência.
Gardner: Se eu estivesse de fora observando meu trabalho,
é provável que dissesse a mesma coisa. Trata-se de uma
crítica bem razoável. Mas estou certo de que, se minhas
idéias forem um dia levadas a sério, algum pesquisador
desenvolverá instrumentos capazes de medir as várias
inteligências. Mas para mim isso jamais foi uma prioridade.
Não me dediquei ao tema. Robert J. Sternberg [pai da teoria
“triárquica”, segundo a qual a inteligência
se manifesta em três modalidades distintas: analítica,
criativa e prática] tentou fazê-lo no âmbito de
sua pesquisa, mas os resultados não me pareceram muito convincentes.
Posso deduzir que ou suas teorias são equivocadas, ou medir
as diversas inteligências humanas é tarefa mais complicada
do que parece.
M&C: Mas a psicometria clássica faz medições.
As pontuações que a pessoa obtém nos diversos
testes verbais e lógicos estão correlacionadas, o que
sugere a existência de uma inteligência “geral”.
O QI está vinculado a diversos parâmetros biológicos.
O que o senhor pensa sobre isso?
Gardner: Levo a sério essa questão e, se tivesse
de reescrever meu livro sobre a inteligência múltipla,
trataria mais do tema. Mas há fenômenos que esses estudos
não explicam, em particular as razões que nos tornam
tão diferentes uns dos outros. Um cientista pode passar a vida
tentando acumular provas da existência de uma inteligência
geral, mostrando como esta se correlaciona a este ou aquele fator;
ou pode tentar explicar por que as pessoas têm habilidades tão
diversas, quais as causas dessas diferenças e a que servem.
TALENTO para tocar instrumentos é uma
das competências descritas por Gardner
M&C: Mas as
duas coisas não se contradizem. Podemos fazer uma analogia
com os músculos do corpo, que se desenvolvem de forma desigual
em cada pessoa. Isso não impede que algumas pessoas possuam
– graças à combinação de genes,
alimentação e exercícios físicos –
estrutura muscular bem mais desenvolvida e potente que outras. Nem
todos podem se tornar um Schwarzenegger. O que vale para os músculos
não poderia valer para os neurônios?
Gardner: Tenho a mente aberta em relação
à questão. Caso eu viva mais 30 ou 40 anos e a ciência
identifique uma propriedade biológica fundamental – por
exemplo, a velocidade de transmissão nervosa ou a plasticidade
das conexões entre os neurônios – que explique
uma parte maior ou menor das diferenças de inteligência,
estarei pronto a rever meu pensamento.
Mas isso não esclarece as razões para alguém
ser mais capaz em certos setores que em outros. A resposta pode ser
simplesmente que a vida humana não é infinita, e, portanto,
não podemos ser excelentes em tudo. Penso que a explicação
mais plausível esteja na predisposição genética
e nas experiências infantis capazes de “estimular”
e potencializar um dos computadores mentais de que dispomos. Um gênio
poliédrico como Leonardo da Vinci é exceção,
e não regra. E devemos explicar ainda a origem das diferenças
nos perfis e talentos.
PIETÀ, 1499. ESCULTURA DE MÁRMORE
DE MICHELANGELO BUONARROTI. BASÍLICA DE SÃO PEDRO, VATICANO
DESENVOLVIMENTO EXCEPCIONAL da inteligência
espacial teria permitido a Michelangelo criar a Pietà (1499)
M&C: O senhor usa os termos “inteligência”
e “talento” como sinônimos. Mas, para a maioria
das pessoas, esses termos se referem a conceitos bem distintos.
Gardner: De fato. Mas, ao privilegiar o termo “inteligências”
em vez de “talentos” ou “habilidades”, fiz
um movimento retórico importante. Todos reconhecem a existência
de diferentes talentos e habilidades humanas, e provavelmente eu não
estaria aqui sendo entrevistado se tivesse usado essas palavras em
vez de “inteligências”.
M&C: O que o senhor entende por inteligência?
Gardner: O ponto é que a definição de
inteligência não é óbvia. Trata-se de algo
debatido por estudiosos e leigos. Segundo minha análise, os
pesquisadores orientados pela cultura escolástica se concentraram
nas habilidades verbais e lógicas, denominando as “inteligência”.
É uma questão de retórica e lingüística.
Não é “a” resposta correta. As pessoas com
bom desempenho em línguas e lógica são, em geral,
bons alunos, e nós as classificamos inteligentes. Nada tenho
contra isso, desde que se fale em “inteligência escolástica”.
Se, porém, sairmos da escola e estudarmos a inteligência
de arquitetos, bailarinos ou comerciantes, descobriremos que podem
ser excelentes naquilo que fazem, independentemente do desempenho
escolar. Se os homens de negócio tivessem inventado o QI, a
avaliação mediria, provavelmente, atitude em relação
a risco, iniciativa e capacidade de vender. Nenhuma dessas coisas
é medida pelos testes clássicos de inteligência.
M&C: Mas isso não ameaça relativizar
o conceito de inteligência, esvaziando-o de seu significado
intuitivo e científico?
Gardner: A ciência não deve, necessariamente,
reforçar o senso comum, muitas vezes equivocado. Minhas pesquisas,
além disso, atingem o campo das ciências sociais, diferentes
da física ou da biologia, justamente porque devem sempre elucidar
os próprios conceitos, propondo definições novas
e mais adequadas. O filósofo Bertrand Russell disse certa vez
que as idéias de todos os grandes pensadores podem ser resumidas
em uma ou duas frases: o que os torna notáveis é a estrutura
argumentativa que criaram para sustentar as afirmações
e defendê-las das críticas. Se eu transmitir às
pessoas apenas o conceito de que, além da escolástica,
existem outras formas de inteligência, já será
um enorme progresso. Creio que já alcancei algo nesse sentido.
Mas Daniel Goleman conseguiu ainda mais, pois seu conceito de “inteligência
emocional” tem apelo intuitivo, aludindo às experiências
do cotidiano, sobretudo no mundo do trabalho. O gerente de uma empresa
pode ter a mente perfeitamente organizada e revelar-se um desastre
para motivar funcionários. A diferença entre nossas
pesquisas é que estabeleci oito critérios a serem atendidos
por uma suposta inteligência.
M&C: Há poucos anos o senhor identificou
a existência de uma oitava inteligência, a naturalística.
Pensa em acrescentar outras?
Gardner: Escrevi bastante a respeito da possibilidade de
uma inteligência moral. Até há pouco tempo era
cético quanto a isso, mas mudei de idéia depois de algumas
leituras, em particular o livro escrito pelos neurobiólogos
Jean-Pierre Changeaux e Antonio Damásio. Avalio a possibilidade
de uma inteligência existencial, mas o problema é saber
se é diferente de qualquer outra capacidade filosófica.
Se não for, poderá ser explicada pelas inteligências
lingüística e lógica. As provas nesse sentido ainda
não são conclusivas.
M&C: Haveria em nosso DNA genes que a seleção
natural favoreceu, proporcionando assim a inteligência naturalística
ou a existencial?
Gardner: Certamente. Há genes para a inteligência
naturalística e, provavelmente, para todas as formas de inteligência
que menciono. Creio, porém, que cada um desses tipos possui
subcomponentes. Na inteligência lingüística, por
exemplo, não haveria só um gene, mas centenas. Alguns
deles podem predispor às línguas estrangeiras, outros,
à poesia e assim por diante. Mas se dissesse em meus livros
que há 500 inteligências, ninguém me levaria a
sério.

PARA BAILARINOS e cirurgiões são
fundamentais conhecimentos corporais e cinestésicos
M&C: Falemos de seu último livro,
Five minds for the future. O senhor descreve com precisão as
cinco mentes que devemos desenvolver para viver na futura sociedade:
sintética, respeitosa, ética, disciplinada e criativa.
Que mentes não deveríamos cultivar?
Gardner: Ninguém me havia feito esta pergunta
até agora. No livro falo, sobretudo, do mau uso que se pode
fazer de cada tipo de mente. Temo particularmente e penso que não
deveríamos cultivar a mente fundamentalista, aquela determinada
a não mudar de idéia sobre as coisas. É uma postura
muito mais comum do que pensamos. Basta perguntar a alguém
se recentemente mudou de idéia a respeito de algo. Provavelmente
dirá que sim, mas se pedirmos um exemplo, terá dificuldade
em responder. Sem perceber, nos aferramos facilmente a nossas convicções.
M&C: Permita-me uma provocação.
O que o senhor diz é sem dúvida correto. Qualquer um
concordaria que é bom ser mais disciplinado, respeitoso, razoável
e assim por diante. Qual é, assim, a novidade da mensagem de
seu livro?
Gardner: É uma pergunta legítima. Objetivamente,
há aspectos da natureza humana sobre os quais é difícil
hoje dizer algo de original. Esses temas, entretanto, devem ser reapresentados
para cada nova geração de forma que lhe pareçam
compreensíveis e sensatos. Creio ser importante fazer isso,
sobretudo porque hoje se fala da mente quase que apenas do ponto de
vista cognitivo. Em vez disso, eu falo de respeito, ética e
educação em um sentido mais clássico. Não
deveria valer apenas a nota tirada na prova de matemática,
mas o tipo de ser humano que nos revelamos. Em segundo lugar, é
verdade que o respeito sempre foi considerado qualidade desejável,
mas na era da globalização, num mundo em que os povos
podem facilmente se destruir, trata-se de algo indispensável.
ENXADRISTAS excepcionais, por exemplo, podem
ser incapazes de manter relacionamentos e vínculos duradouros
M&C: Por
qual de seus estudos o senhor gostaria de ser lembrado no futuro?
Gardner: Sou conhecido como “o fulano da bizarra
idéia sobre inteligência”, mas gostaria que as
pessoas recordassem a pesquisa sobre ética profissional que
realizo há 15 anos e que se tornou um estudo sobre a confiança.
Não sei se no futuro me darão crédito em relação
a esse trabalho, mas não importa, pois estou totalmente convencido
de que é indispensável. O domínio cultural exercido
pelo mercado nos Estados Unidos está arruinando o que há
de mais precioso no ser humano. Os americanos acabarão por
destruir a si mesmos e provavelmente ao mundo, pois ignoram qualquer
aspecto da vida que não seja comercializável. E porque
pensam que, se fizerem uma prece todo domingo de manhã, terão
indulto para arruinar qualquer habitante do planeta nos outros seis
dias e meio.
Estudando a ética e o sentimento de confiança, gostaria
de chamar atenção para coisas antes importantes que
hoje não têm mais valor. De fato, a pergunta que você
me fez é equivocada. A correta seria: por que as coisas de
que falo, que todos deveriam saber, foram esquecidas?
Inteligências múltiplas: a teoria na prática.
Howard Gardner. Artmed, 2000.
A matemática na educação infantil
– A teoria das inteligências múltiplas na prática
escolar. Kátia Smole. Artmed, 2000.