O paradigma oculto da filosofia
moderna
Desempenhando um papel decisivo, mas ainda pouco examinado, o
ceticismo orientou boa parte da revisão metodológica
que inaugura a modernidade
O ceticismo é um tema discutido
por quase todos os principais filósofos modernos - seja como
um pesadelo epistemológico que, ameaçando nossa capacidade
de conhecer a verdade e alcançar a felicidade, deve ser exorcizado
pela boa filosofia (como no caso de Berkeley); seja, ao contrário,
como filosofia que, parcial ou integralmente, merece ser acolhida
(como para Hume ou Montaigne). De fato, foram e ainda são radicais
as divergências filosóficas em torno do tema, e bastante
prejudicadas por aquele que diríamos ser o primeiro grande
problema com que se depara quem se interessa por ele - a saber, a
vagueza do que se chama de "ceticismo". Quem é exatamente
o "cético"? Ele pode ser tanto o sujeito caricato
que duvida de tudo (desde a antiguidade houve, como Galeno, quem dizia
que o cético está condenado à morte porque, como
duvida que o sol nasceu, não se levanta) quanto o portador
de uma filosofia elaborada e posta em prática, desde os antigos,
constituindo doutrinas (ainda que num sentido peculiar, não-sistemático),
cuja coerência pode, decerto, ser examinada e questionada noutros
níveis de profundidade. De um ponto de vista histórico,
todavia, o problema tem um interesse especial, porque a tematização
filosófica moderna do ceticismo tem, bem ou mal, com todos
os seus mal-entendidos, sua raiz na redescoberta renascentista das
escolas filosóficas céticas antigas - o assim chamado
ceticismo da Nova Academia de Platão, segundo a versão
latina que encontramos em textos de Cícero, ou o pirronismo
dos que se denominaram skeptikoi, "aqueles que investigam",
tal como explica Sexto Empírico, uma vez que o exame crítico
que esses filósofos empreenderam das demais filosofias, que
procuraram, cada qual, oferecer a verdade, ainda não pôde
encontrar um fim, pois a verdade deve ser uma só para todos
e existem discrepâncias indecidíveis entre elas, bem
como recorrentes defeitos argumentativos em cada uma.
Muitos filósofos modernos que ofereceram sua filosofia como
antídoto aos problemas "céticos", como Berkeley,
e mesmo outros que pensavam estar propondo um ceticismo "mitigado"
(por oposição à virulência do ceticismo
propriamente dito), como Hume, aparecem hoje mais próximos
do ceticismo antigo, ao menos sob certos aspectos, do que eles mesmos
parecem ter podido reconhecer.
A mesma dificuldade marca análises interessantes como a de
Ernest Gellner, segundo quem o ceticismo constituiria mesmo uma espécie
de "paradigma oculto" da filosofia moderna. Ele sustenta
que o poder e a autonomia adquiridos pelo conhecimento entre os modernos
acabaram por produzir uma espécie de suspensão do juízo
metodológica sobre o "mundo real", que entre os antigos
fora aceito como um dado. Um bom exemplo seria a "revolução
copernicana" de Kant, que pretendeu resolver os impasses da metafísica
propondo que, em vez de indagar como o nosso conhecimento se regula
pelas coisas, deveríamos nos indagar sobre como nossas condições
a priori de conhecimento nos permitem conhecer o que conhecemos.
Não deixa de ser curioso que os impasses da metafísica
que Kant pretende contornar também são similares aos
descritos pelos céticos.
Mas seria também o caso já das Meditações
de Descartes, onde encontramos a primeira formulação
do assim chamado Problema do Mundo Exterior (o problema de saber como
podemos inferir, do conjunto das nossas representações
subjetivas, às quais temos acesso imediato, a existência
de um Mundo exterior objetivamente existente que elas representariam).
Embora as dúvidas filosóficas que ele propõe
na sua Primeira Meditação - considerando a possibilidade
de estarmos agora sonhando ou sendo enganados por um Gênio Maligno
em nossas certezas mais básicas - sejam seguramente moldadas
no ceticismo debatido nos círculos intelectuais que freqüentou,
isso não faz de Descartes um cético. Essa filosofia
encontrou uma acolhida bem mais favorável em seus correspondentes,
Mersenne e Gassendi. Mas a dúvida metódica de Descartes,
ao contrário, parece antes corresponder a uma "vacina"
filosófica capaz de imunizar as verdades metafísicas
que, a elas resistindo, provam sua solidez para além daquelas
oferecidas pelos seus predecessores. Ao passo que superariam definitivamente
a dúvida dos céticos - mesmo que, talvez, ao preço
de produzir involuntariamente o que veio a se chamar posteriormente
um "ceticismo moderno", mais radical e virulento do que
o proposto pelos antigos.
Extensão do ceticismo antigo?
É uma outra questão controvertida a de saber se esse
"ceticismo moderno" (caso essa expressão não
seja afinal imprópria) deve ser visto como um aprofundamento
do ceticismo antigo, ou se ele resulta de uma incompreensão
da sua coerência filosófica particular. Pois os céticos
antigos já condenavam seus rivais estóicos e epicuristas
de não terem bem compreendido o que diziam. Os céticos
sustentavam, afinal, que o ceticismo era perfeitamente compatível
com uma vida vivida de modo pleno, regrado, saudável, e com
a adoção de crenças num sentido meramente "prático",
seguindo a experiência comum, à falta de atingirem o
tipo de Conhecimento prometido pelos filósofos em perpétua
contradição (eles, sim, doentiamente apegados, a seu
ver, a uma suposta verdade que efetivamente não podem provar).
Existe assim uma imbricação entre problemas conceituais
e históricos em torno desse tema, que justificam especialmente,
no caso da filosofia moderna, a necessidade de um exame sistemático
da retomada e transmissão das fontes do ceticismo antigo, praticamente
desconhecido entre os medievais e redescoberto durante o Renascimento,
bem como do seu impacto filosófico. Este trabalho, todavia,
é bem recente e se fez sobretudo a partir das obras seminais
de Charles Schmitt, sobre a difusão das obras céticas
de Cícero a partir do século 15, e de Richard Popkin,
sobre a redescoberta tardia do pirronismo a partir da tradução
das obras de Sexto Empírico para o latim, iniciada em 1562.
Popkin sustenta que tal retomada teve um impacto decisivo na constituição
do pensamento moderno, oferecendo um esquema intelectual - oportuno
em face das crises culturais do Renascimento. Tematizando a impossibilidade
de decisão filosófica racional entre os diversos sistemas
em conflito, o ceticismo ofereceu um ponto de vista intelectual próprio
diante da multiplicidade de fontes antigas redescobertas pelos humanistas,
corroborando a dúvida gerada em torno da autoridade aristotélica
nos temas filosóficos. Se o questionamento desta autoridade
se fazia tanto mais pelo impacto do modelo heliocêntrico copernicano
e das descobertas geográficas e antropológicas decorrentes
da expansão marítima, os textos céticos também
discutem a impossibilidade de encontrarmos, ante a diversidade de
costumes, um critério racional para decidir se algum deles
representa melhor a verdade ou a natureza (com efeitos evidentes na
discussão sobre o estatuto dos povos recém-descobertos
por Montaigne).
Mas Popkin focaliza prioritariamente o debate teológico entre
católicos e protestantes sobre o critério para determinar
o sentido da verdade revelada (seja a autoridade do Papa ou a razão
individual iluminada pela fé). Tal problema do critério
é explicitamente discutido por Sexto, que argumenta para mostrar
a impossibilidade de resolvê-lo racionalmente e oferece, assim,
um arsenal para defesas da fé de tendência fideísta
(enfatizando o caráter essencial e sobrenatural da fé,
em detrimento das justificações racionais) e apoiadas
na tradição e nos costumes da Igreja (sendo este um
dos critérios "práticos" que o cético
oferece para agir na vida, razão pela qual o ceticismo foi
inicialmente, mas não exclusivamente, melhor assimilado pelos
católicos). Tal interesse, num segundo momento, acabou conduzindo
à descoberta do potencial filosófico (epistemológico)
dessa reflexão.
Montaigne e o questionamento sistemático
da razão
Cruciais nessa transição são as obras do médico
e filósofo português Francisco Sanchez (o Quod nihil
scitur, de 1581, que empreende uma crítica cética
de cunho acadêmico à concepção aristotélica
de conhecimento) e do mais conhecido autor francês Michel de
Montaigne, cujos Ensaios (1580), exibem, após uma fase de reflexão
marcadamente estóica, um ceticismo conseqüente, capaz
de empregar de modo ao mesmo tempo rigoroso e original a quase totalidade
dos argumentos céticos provenientes de Sexto. Isso é
bem claro em sua Apologia de Raimond Sebond, onde ele critica
uma "vaidade" bem próxima da "presunção"
dogmática: seja a vaidade do homem, que se acha superior aos
animais pela posse exclusiva da razão; a vaidade do saber,
que pretende alcançar uma verdade que não alcança;
ou a vaidade de nossas faculdades cognitivas, em cuja crítica
se desenvolve, com base em argumentos céticos antigos, um exame
crítico da razão, do juízo e dos sentidos, o
que nos lança ao debate epistemológico fundamental da
modernidade. Porém, embora para Montaigne o ceticismo exponha
radicalmente nossa precariedade cognitiva, não se trata (como
em Descartes) de uma filosofia incompatível com a vida. "O
cético - diz ele - não quis se fazer pedra nem tronco.
Ele quis se fazer homem vivo, pensante e raciocinante, fruindo de
todos os seus prazeres corporais e espirituais, em ordem e com retidão.
Os privilégios fantásticos, imaginários e falsos
que o homem se usurpou, de reger, ordenar e estabelecer a verdade,
estes ele de boa fé abandonou e a eles renunciou..." (Ensaios)
Embora hoje o lugar de Montaigne na história da filosofia possa
aparecer como duvidoso, ao longo do séc. 17 ele foi sobretudo
lido como cético, e seus Ensaios foram amplamente conhecidos,
seja por Descartes, seja por outro influente autor (especialmente
para a tradição do empirismo britânico), no qual
a presença do ceticismo tem igualmente sido negligenciada,
Francis Bacon. Não apenas esse tema freqüentemente retorna
em suas reflexões, mas muitas de suas considerações
sobre os "ídolos" que nos impediriam o acesso à
verdade e que seu método da indução pretenderia
paulatinamente remover são inspiradas em Montaigne. Menos ignorada
é a leitura que faz Pascal de Montaigne como um "puro
pirrônico" e a importância que ganha em suas Pensées
essa filosofia, como uma das duas (ao lado do estoicismo de Epicteto)
que seriam, a seu ver, merecedoras de consideração,
uma por mostrar a miséria, outra por mostrar a grandeza do
homem, ainda que as forças da primeira sejam, a seu ver, de
longe superiores. Tal leitura de Montaigne contribuiu para que o ceticismo
se espraiasse ainda numa versão cristianizada, cujos ecos ressoariam
mais tardiamente em Kierkegaard. Outro veio de transmissão
da reflexão cética, aparentemente menos afeito à
religião, e bem mapeado por Popkin, é o que se dá
pelos libertins érudits, como La Mothe le Vayer, que
acabarão por ter impacto no debate dos iluministas franceses.
Para além da modernidade
Estes são apenas alguns
aspectos de uma rica dimensão da filosofia moderna que permanece
um canteiro de obras em aberto para os historiadores, de onde emergem,
tanto novas interpretações dos filósofos, quanto,
gradualmente, um novo panorama dessa própria história.
Ao contrário do que por vezes se alega, levar em conta a presença
do ceticismo como motor da reflexão filosófica moderna
não conduz necessariamente a uma perspectiva redutora (pois
não se trata de negar o modo particular como cada filósofo
o reinterpreta); trata-se, ao contrário, de uma tarefa importante
do historiador disposto a investigar com seriedade as pistas que momentaneamente
se reabrem nos vãos dos preconceitos da época.
Popkin parece ter razão ao apontar para
a existência de verdadeiras tradições céticas
ao longo da filosofia moderna que, de importância maior ou mais
restrita, resultam de releituras e recriações desses
mesmos argumentos céticos repostos em circulação,
em contextos intelectuais e filosóficos diversos. Muito resta,
assim, a ser explorado para que compreendamos como pôde esse
tema interessar autores tão díspares como Hegel (autor
de uma obra de juventude sobre a importância filosófica
do ceticismo, destinada a criticar a insuficiência da interpretação
proposta pelo "cético" Schulze), Nietzsche (que se
refere de modo elogioso aos céticos tanto em obras de juventude
quanto em outras mais tardias, como Humano demasiado humano)
ou Wittgenstein (o qual, de modo geral alheio à semelhança
entre suas reflexões e aquelas provenientes de outras fontes,
não deixa por isso de se ocupar explicitamente do tema, sobretudo
em seus escritos finais, como os que se reuniram pelo título
"Sobre a certeza" - conquanto se tenha ali em vista um "ceticismo"
de tipo cartesiano), dentre outros tantos que poderíamos mencionar.
Luiz Antonio Alves Eva é professor
de Filosofia da UFPR