"Três períodos distintos
apresenta o desenvolvimento dessas idéias: primeiro, o
da curiosidade, que a singularidade dos fenômenos produzidos
desperta;
segundo, o do raciocínio
e da filosofia; terceiro, o da aplicação e das conseqüências.
O período da curiosidade passou... começou o segundo
período, o terceiro virá inevitavelmente"
(Kardec, O Livro dos Espíritos, Conclusão,
item V).
Na leitura atenta da citação
acima, principalmente tendo-se em mãos o texto completo,
vemos facilmente que Kardec não quis se referir a períodos
excludentes, mas, sim, superpostos em seu desenvolvimento. Estaríamos
sofismando se retirássemos do texto uma reprimenda, um desestímulo
que fosse, ao amplo e livre exercício da mediunidade nos
centros espíritas.
Ainda no Livro dos Espíritos, Conclusão, item VI,
Kardec afirma que a força do Espiritismo está no apelo
que faz à razão e ao bom senso, mais do que nas manifestações
materiais. Mas, logo adiante, ele demonstra a impossibilidade e
o ridículo de se oferecer entraves à liberdade das
manifestações.
No mesmo capítulo, item VII, ele classifica o grau de seus
adeptos:
"1°.) os que crêem nas manifestações
e se limitam a constatá-las: para eles, é uma ciência
de experimentação;
2°.) os que compreendem as suas conseqüências morais;
3°.) os que praticam ou se esforçam por praticar essa
moral."
O termo usado é "grau", portanto, está claro
a superposição e não a exclusão de aspectos.
Mesmo porque, seria absurdo supor alguém praticando uma moral
que não compreendesse.
Portanto, proibir, combater, restringir ou, simplesmente, inibir
a mediunidade, eqüivale a pensar que a mediunidade teve como
única função permitir o surgimento da filosofia
espírita, para depois calcificar-se como uma "pineal
coletiva"; e, isto, é miopia filosófica.
O fenômeno mediúnico é a origem do Espiritismo.
Mas, também, sua sustentação e continuidade.
É a própria vacina para que o Espiritismo não
venha a se tornar uma religião dogmática, cadaverizada,
com conceitos e interpretações impostos por intelectuais,
grupos, associações, federações, ou
seja lá o que venha a surgir como substitutivo da escolástica
e suas conseqüências.
O momento principal, a "esquina de pedra" quando o cristianismo
nascente transformou-se num movimento uniformizado e repressor foi
quando, por força de decretos retirados em concílios,
conseguiram proibir o contato com os espíritos. A democracia
permitida pela mediunidade que, sendo fenômeno inerente ao
ser humano, ocorre no barraco ou na cobertura, na universidade ou
no templo evangélico, foi, na época citada, substituída
pelo autoritarismo.
A mediunidade, como todas as faculdades naturais do ser humano,
é inalienável, irreprimível. Todas as leis
e forças da natureza devem ser conhecidas, estudadas e, não,
negadas. (Ou então, cuidemos para não retroceder ao
período pré-cartesiano!). A grande contribuição
da ciência espírita para o conjunto do conhecimento
humano é justamente o domínio do fenômeno mediúnico
em todas as suas formas de manifestação. E a grande
contribuição da filosofia espírita é
a abordagem e utilização ética desse grande
canal de comunicação entre diferentes dimensões
da realidade, de maneira que ele cumpra sua função
natural de impulsionar a evolução do indivíduo
e da civilização.
Nos últimos anos temos visto um crescente, avassalador mesmo,
interesse pelos fatos mediúnicos, parapsicológicos
ou psicobiofísicos, abordados, geralmente, sob um enfoque
místico e supersticioso. Ora, a obra iniciada por Kardec
e corajosamente continuada por inúmeros pesquisadores e divulgadores
é uma pedra de toque, um porto seguro, um farol iluminando
uma prática tão difícil e ardilosa. Daí
a responsabilidade dos espíritas em contribuir para o momento
histórico com a abordagem e prática racional e lúcida
da mediunidade.
A prática mediúnica é complicada, cheia de
percalços e escolhos? Existem muitas pessoas que se dizem
médiuns e, produzindo fenômenos esdrúxulos expõem
a doutrina espírita ao ridículo? Outros exploram o
fenômeno mediúnico, autêntico ou fraudulento,
em benefício da autopromoção e até do
enriquecimento ilícito? As respostas a todas estas perguntas
e a muitas outras que podem ser feitas, é afirmativa. Por
isso vamos então reprimir ou coibir a mediunidade nos centros
espíritas? Ora, isto eqüivaleria ao "retirar o
sofá da sala" da velha anedota popular. Vamos continuar
o trabalho kardequiano de educar a faculdade mediúnica, pois,
tal tarefa implica em contribuir na grande obra de educação
do próprio homem, condição indispensável
de progresso, como afirma com veemência a filosofia espírita.
Na verdade, não estaríamos aqui tratando de tais assuntos
ou lembrando, ainda que sutilmente, certos editoriais da imprensa
espírita, se não fosse o prazer de escrever. Pois,
não há motivo de preocupação quanto
a certas decisões ou modismos recorrentes no movimento espírita.
As organizações, por mais que se julguem iluminadas,
não conseguiriam nunca implementar atitudes como a inibição
ou eliminação do fenômeno mediúnico dos
centros. Ele, o movimento, é livre, multiforme, suficientemente
anárquico, para vir a ser uniformizado sob um dogmatismo
qualquer.