Seria o Espiritismo uma ideologia migrante? Dos Estados Unidos,
onde surgiu de forma empírica nos anos 40 do século
XIX, para a Europa, onde vestiu-se com uma densa filosofia, que
chegou a empolgar a intelectualidade francesa da segunda metade
do século, e com cuja roupa migrou para o Brasil, onde se
transforma em movimento social e religioso e, nessa forma, retorna
à França e aos Estados Unidos, embalada nas ondas
migratórias do final do século XX?
É uma das idéias que se percebe no extenso trabalho
da pesquisadora francesa, doutora em antropologia, Marion Aubrée,
e de seu professor orientador, François Laplantine, publicado
pelas Éditions Jean-Claude Lattès, 1990, num livro
de 340 páginas, sob o título: "La Table,
le Livre et les Esprits", e subtítulo: "Naissance,
évolution et actualité du mouvement social spirite
entre France et Brésil".
O trabalho é completo. Começa pelo surgimento do espiritismo
na América, biografa Allan Kardec, demonstra a repercussão
da doutrina na Europa do século passado, e analisa as causas
de seu declínio. Depois, viaja ao Brasil (onde os pesquisadores
estiveram várias vezes), e procura levantar as causas de
sua grande aceitação popular, de sua penetração
social, de suas transformações, de quebra ensaiando
uma explicação antropológica do próprio
Brasil, quando aborda o mito criador do espiritismo brasileiro contemporâneo:
la brasiliodicée. Para, finalmente, retornar à França
e discorrer sobre as práticas e grupos atuais.
Algumas "subteses" do trabalho apresentam um interesse
especial, como as relações entre espiritismo e socialismo,
colocadas num capítulo que tem como título: "Quand
les barricades rencontrent les guéridons". Aqui os autores
dizem que "... il y a une parenté et une connivence
entre le socialisme et le spiritisme au XIXe. Siècle qui
ne cesse d"entremêler les deux thèmes", e
afirma categoricamente que "... l"un est littéralemente
incompréhensible sans l"autre". Estamos transcrevendo
estes trechos em francês porque não está tão
difícil a compreensão.
Analisando o apogeu e o declínio do Espiritismo na França,
os autores relacionam algumas causas. Primeiramente, referem-se
eles à fraude dos médiuns que buscavam a qualquer
preço provar sua força mediúnica. Depois, ao
progresso das descobertas científicas, principalmente na
astronomia, tornando anacrônica a doutrina espírita
por sugerir que as comunicações tendem a reproduzir
o meio social e cultural onde são transmitidas: os espíritos
ensinam a geração expontânea quando ela é
ensinada na universidade; professam a teoria dos planetas habitados
até que se descobre que eles não o são. Uma
outra razão repousa nas dissensões entre espíritas
e ocultistas (Papus), entre espíritas e teosofistas (Blavatski),
assim como à atração exercida pelas sociedades
metapsíquicas. Também teria influído nesse
declínio, o surgimento na literatura (Dostoieviski) e na
filosofia (Schopenhauer, Nietzsche) de uma certa exploração
da face noturna do ser humano, seguida do fenecimento do romantistmo.
Até mesmo a substituição do paradigma positivista
pelo relativista teve sua influência, provocando um declínio
do absoluto, um enfraquecimento da certeza, uma sensação
de que a ciência não detém toda a verdade, mas,
ao contrário, a arte e a literatura podem proporcionar formas
mais profundas de conhecimento. Mas, segundo os autores, o golpe
de misericórdia no Espiritismo foi dado pelas pesquisas de
psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, pondo em evidência
o papel do inconsciente e oferecendo aos sábios uma tentadora
explicação sobre os mecanismos da comunicação
mediúnica.
As "seduções" sofridas por um dos autores
(FL) no Brasil, demonstram uma característica marcante do
espiritismo brasileiro. Coisas do tipo: "Humberto de Campos
me disse que você tem uma grande missão com esse trabalho",
ou "Allan Kardec está acompanhando você nesta
pesquisa". Mas, sem dúvida, os médiuns que lançaram
essas lisonjas ficarão, ou ficaram, decepcionados com a leitura
final do trabalho, tendo em vista a quase frieza científica
e distanciamento com que os autores o conduziram.
Pode-se notar uma verdadeira explosão de
teses universitárias sobre espiritismo no Brasil ultimamente.
Tanto nos grande centros (Giumbelli, Rio; Damásio, Rio; Stoll,
São Paulo; Colombo, São Paulo) como nas inúmeras
Universidades Estaduais do interior. Espero que não sejam
simples conseqüência do impulso imitativo da intelectualidade
brasileira no rastro de pesquisadores como François Laplantine
da França e John David Hess dos Estados Unidos. De qualquer
forma, elas ocorrem sempre nas áreas de Antropologia, Ciências
Sociais, História, isto é, encarando o Espiritismo
como um movimento social ou religioso. Desconheço, na presente
tendência, alguma tese que o trate como filosofia ou ciência.
Enfim, "La Table..." é um "olhar
de fora", e como tal observa muito mais as práticas
do que a doutrina. Mas, não podemos negar que muito tem a
contribuir para a compreensão do Espiritismo. A Dra. Marion
Aubrée elaborou várias teses sobre movimentos religiosos
e sociais. O Professor François Laplantine orientou dezenas
de teses em antropologia, inúmeras ligadas a religião,
fenômenos psi e doenças mentais. O próprio Jean-Claude
Lattès parece ser um especialista em editar teses universitárias.
Já existem pessoas no Brasil se interessando pela tradução
e publicação do livro, o que poderá acontecer
brevemente. Enquanto isso, quem quiser adquirir o livro em francês
a um custo final menor que setenta reais, pode procurar no site:
alapage.com.