Você conhece a rede social ELEQT? Se desconhecer, não
se preocupe. A ELEQT não é uma rede social popular.
Pelo contrário. Seu público é claro e muito
bem definido: só participam milionários. A ideia é
que as pessoas mais ricas do planeta, que têm hábitos
de consumo e estilo de vida diferenciados da maior parte da população,
tenha a oportunidade de se relacionar e gerar negócios. A
ELEQT mostra, de forma clara, a diferenciação econômica
e simbólica entre as classes mais altas e as mais baixas.
Diferenciação essa que, muitas vezes, resulta em preconceito
socioeconômico, no qual os hábitos e estilo de vida
dos mais ricos são considerados superiores aos exercidos
pela outra parte da população.
Conhecida como a “rede social de luxo”, a ELEQT nasceu
em 2012, fruto da união entre a rede social internacional
Elysiants e a Qube da Quintessentially, maior grupo privado de serviço
de luxo e lifestyle do planeta. No artigo “Preconceito social
na internet: a reprodução de preconceitos e desigualdades
sociais a partir da análise de sites de redes sociais”,
Ruleandson do Carmo Cruz, doutorando em ciências da informação
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apresenta resultados
que sugerem uma territorialização do ciberespaço,
como ocorre na divisão geográfica do mundo físico
real.
O artigo, publicado em 2009, definia o Orkut (rede
social mais popular na época), como a dos menos favorecidos,
ou dos moradores da Zona Norte, e o Twitter e a então Elysiant,
a dos mais ricos, da Zona Sul. “A ideia de que a internet
é livre e que todos convivem em harmonia, muito propagada
no início da popularização da rede mundial
de computadores, é falsa. Os conflitos do mundo físico
se repetem no mundo virtual e há intolerância e discriminação
com o gosto e com a classe social, orientação sexual
do outro, entre outras formas”, afirma Cruz, que é
professor do curso de jornalismo da Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP).
Cruz argumenta que quando a revista Época publicou uma matéria
de capa intitulada “Você já usou o Twitter?”,
os usuários da rede social começaram a discutir e
temer a popularização do site e a migração
dos usuários do Orkut para o Twitter. Nessa época,
foi criado o termo “orkutização”,
para designar o processo de popularização pelo qual
estava passando o Twitter, que deixava de ser um site restrito.
“Esse temor foi expresso
por meio de um discurso, presente no próprio site e em
alguns blogs, que dizia que os usuários do Orkut somente
se interessavam por informações irrelevantes, escreviam
as palavras de forma errada e, por isso, a participação
deles no Twitter empobreceria e banalizaria o serviço”,
afirma.
Como exemplo de reclamação,
o pesquisador cita alguns tweets, como o de um usuário que
postou “De fato, é a orkutização do twitter,
a proliferação das favelas digitais”. Outro
usuário dizia ter “saudades dos tempos em que tudo
era mais seleto” e outro reclamou sobre os gostos musicais
do novo público: “Pior que a citação
das músicas (sic) sertaneja no twitter, são citações
de músicas (sic) se é que pode chamar de música
funk; Maldita orkutização”. Atualmente, o Orkut
perdeu popularidade para o Facebook, que em fevereiro de 2014 tinha
1,23 bilhão de usuários, sendo 61,2 milhões
deles, brasileiros. O país, na época, segundo o próprio
site, era o terceiro com maior número de usuários,
perdendo apenas para os Estados Unidos e a Índia.
Em seu doutorado, Cruz continua sua pesquisa tentando descobrir
se o preconceito socioeconômico que acontece no campo simbólico
também ocorre na internet.
“Eu penso que a disputa
se dá em um campo simbólico e, de modo geral, um
site pode, sim, deixar de ser usado por ser símbolo de
pobreza e atraso, como o Orkut, e outro pode passar a ser usado
por ser símbolo de poder e de status, como o Facebook e
o aplicativo Instagram”, afirma.
O professor da Universidade Estadual
Paulista (Unesp) e coordenador do Observatório de Educação
e Direitos Humanos, Clodoaldo Cardoso Meneguello, é bem enfático
ao afirmar que a “desigualdade é o chão de todas
as intolerâncias”. Para ele, se todos tivessem acesso
à saúde, à educação e a uma vida
digna, o problema do preconceito não estaria resolvido, mas
teria um grande avanço. Meneguello explica que há
esforço, no campo dos direitos humanos, de trabalhar em conjunto
os direitos individuais e sociais.
“A liberdade é um
polo, que vai ter uma luta de respeito ao outro, e a dignidade
é outro polo, de todos terem acesso a bens que dão
dignidade. Por exemplo, perante a lei eu sou livre para ir a qualquer
lugar do mundo, mas eu ganho um salário mínimo.
Ora, eu tenho liberdade de ir e vir, mas não tenho condições.
Na prática, esses dois conceitos não se separaram”,
afirma.
Os direitos humanos, segundo Meneguello,
são um esforço para desenvolver uma convivência
de respeito e dignidade humana.
“Agora, o que é dignidade
humana? Temos um esforço de descobrir consensos sobre a
dignidade humana, para poder existir o diálogo”,
afirma.
Meneguello explica que o ser humano
tem uma individualidade muito forte, mas para essa individualidade
não cair no individualismo, há uma característica
complementar e dialética que é a capacidade de conviver
com o outro.
“O social e o individual
são duas grandes características do ser humano.
Os direitos humanos têm que respeitar a dignidade humana
do ponto de vista individual e social, porque ela só se
constrói na relação com o outro”, afirma.
De acordo com o professor de sociologia
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Michel Nicolau Netto,
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização
das Nações Unidas (ONU), a palavra “igualdade”
aparece 13 vezes, enquanto a palavra “diferença”
não é citada nenhuma vez. Isso não significa,
porém, que as pessoas vivam em pé de igualdade e que
a diferença não exista. Pelo contrário.
“Se não há
uma legislação que institucionalize a diferença,
então criamos formas de diferenciação simbólicas.
Você não pode proibir que um pobre frequente o shopping
center, mas pode criar biombos simbólicos, como colocar
seguranças na porta e criar comportamentos para os frequentadores,
por exemplo”, explica.
Barreiras simbólicas
Netto ilustra a força dessas barreiras com um exemplo de
1998, quando o então primeiro ministro da Inglaterra, Tony
Blair, começou uma política de subsídios para
as artes, redirecionando dinheiro das loterias, dobrando, assim,
os investimentos em cultura e possibilitando que os museus nacionais
passassem a ser gratuitos. Apesar de o público ter aumentado
em 75%, não houve uma mudança no perfil dos frequentadores.
“O que está em um
museu faz parte de uma classe específica, que não
é a da classe mais baixa, e isso vale para o teatro, o
concerto e para alguns programas de TV e filmes. Esses elementos
de não pertencimento se acumulam no sujeito, que se sente
inferior e se convence de que aquilo não é para
ele”, diz o professor da Unicamp.
Outro efeito que essas barreiras
simbólicas podem causar é a ideia de desafiar o espaço,
como aconteceu com os chamados “rolezinhos” e o “funk
ostentação”. Os “rolezinhos” começaram
em dezembro de 2013, quando jovens da periferia combinaram alguns
encontros em shoppings pelas redes sociais. Com “medo”
da grande quantidade de participantes – os encontros reuniram
milhares de jovens – alguns comerciantes começaram
a fechar as lojas e os shoppings colocaram seguranças para
barrar a entrada dos jovens nos estabelecimentos. Alguns foram até
mesmo detidos pela polícia militar, mesmo não havendo
registro de roubos ou furtos nas lojas. Os organizadores definiam
os encontros como um “grito por lazer”.
“Esses fenômenos estão
claramente marcados pela ideia de que as classes mais baixas também
podem consumir. Isso traz uma indignação, porque
a classe alta vê seus bens simbólicos desvalorizados,
com a popularização”, diz Netto.
O professor da Unicamp explica que
essa “exigência” das classes altas em possuir
coisas “exclusivas” é muito presente em suas
viagens. Ele exemplifica que antigamente a elite intelectual viajava
para Paris, como uma forma de distinção, e as viagens
para a Disney eram vistas como passeio de massa.
“Acontece que hoje Paris
é a cidade que mais recebe turistas no mundo e isso a desvaloriza
perante a classe A”, afirma.
A jornalista e escritora Danuza
Leão causou indignação na internet por conta
de seu artigo “Ser especial”, publicado no jornal Folha
de S. Paulo, em 25 de novembro de 2012. No artigo, Danuza dizia
que “ir para Nova York já teve a sua graça,
mas, agora, o porteiro do prédio também pode ir, então
qual é a graça?”. A jornalista afirmava que
“bom mesmo é possuir coisas exclusivas, a que só
nós temos acesso; se todo mundo fosse rico, a vida seria
um tédio”.
Tolerância é a palavra?
Tanto Netto quanto Meneguello têm
certo receio em utilizar as palavras “tolerância”
e “intolerância”. Para Netto, a palavra “tolerância”
é muito conflituosa e difícil de ser alcançada,
porque coloca em jogo preferências pessoais. Ele exemplifica
com o polo de discussão entre os homossexuais e os evangélicos,
tendo em vista que há argumentos para defender um ou outro
lado.
“A discussão chegará
a um nível de preferência pessoal, porque há
um conflito muito forte. A tolerância é ideal, mas
é inalcançável. Por isso, acredito que muito
mais do que buscar a tolerância, é preciso dar condições
de acesso igualitário aos bens simbólicos e econômicos”,
afirma o professor da Unicamp.
Para Meneguello, há duas
formas de tolerância: a boa e a ruim. A boa é a aceitação
da diversidade e a ruim é quando se aceita que essa diversidade
é fruto da desigualdade.
Segundo o professor da Unesp, o limite da tolerância é
a ética.
“Se não tiver esse
limite, você vai pregar a tolerância para tudo, falando,
por exemplo, que ‘aquela cultura agia assim com a mulher,
então tem que aceitar, tem que tolerar’. Mas não
é assim. Você não pode tolerar a opressão,
o trabalho escravo, o trabalho infantil e o abuso sexual”,
conclui.