Haroldo Dutra Dias
> Traduttore, Traditore (Tradutor, Traidor)
Os livros do Novo Testamento foram escritos em qual
língua? Que idioma Jesus utilizou em suas pregações?
Traz algum benefício a leitura dos Evangelhos no original?
Até que ponto as traduções são confiáveis?
Nos meados do Séc IV a.C., Felipe II da Macedônia promove
a unificação política da Grécia preparando
o terreno para que seu filho, Alexandre magno (336 a 323 a.C.) leve
a cabo inúmeras conquistas, responsáveis por mudanças
radicais e duradouras no Mundo Antigo, especialmente na Palestina.
A Grécia se torna um império.
Em decorrência da ascensão do Império Greco-Macedônio
houve uma ampla divulgação da cultura e língua
gregas por toda parte. Os diversos dialetos se fundiram, dando origem
a uma nova forma de linguagem, mais popular, mais simples, chamada
(koiné),
que se tornou a língua universal da época.
De acordo com os historiadores esse dialeto foi francamente utilizado
em Roma, Alexandria, Atenas e Jerusalém nos tempos do Cristo.
Por esta razão todos os livros do Novo Testamento forma escritos
na koiné, embora Jesus utilizasse o Aramaico em
suas pregações.
Desse modo o texto do Novo Testamento utilizado nos círculos
cristão brasileiros é uma tradução para
o português dos livros gregos deixados pelos evangelistas.
Há um antigo ditado na Itália que afirma ser o tradutor
um traidor (Traduttore, Traditore). E de certo modo somos obrigados
a endossar esta afirmação.
Por mais que o tradutor esteja imbuído do sincero propósito
de oferecer ao leitor um texto isento de vícios, incorreções
e imprecisões, por vezes os obstáculos são
intransponíveis e aquilo que pretendia ser uma tradução
se torna inevitavelmente uma interpretação.
A razão é simples. Toda língua possui suas
peculiaridades, sua beleza, seus trocadilhos e suas ambigüidades
poéticas, resistindo a todos os esforços do tradutor
no sentido de adaptá-la a outro idioma.
Para exemplificar essa dificuldade, selecionamos uma passagem evangélica
bem conhecida dos espiritistas, o encontro de Nicodemos com Jesus,
retratado em João 3:1 a 13, onde o Divino Mestre aborda de
modo sutil e poético a Reencarnação.
Eis o relato do apóstolo João:
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1 E havia entre
os fariseus um homem chamado Nicodemos, líder dos judeus.
2 este veio ter com ele de noite e lhe disse: Rabi, sabemos que
és mestre vindo de Deus pois ninguém pode fazer os
sinais que tu fazes, se Deus não for com ele. 3 Em resposta
Jesus lhe disse: Em verdade, em verdade te digo que se alguém
não for gerado do alto/de novo não pode ver
o Reino de Deus. 4 Nicodemos lhe diz: Como pode um homem, sendo
velho, ser gerado; porventura pode entrar, uma segunda vez, no ventre
de sua mão e ser gerado. 5 Jesus respondeu: Em verdade, em
verdade te digo que se alguém não for gerado a partir
da água e do espírito não pode entrar no Reino
de Deus. 6 O que é gerado a partir da carne é carne,
e o que é gerado a partir do espírito é espírito.
7 Não te admires de te ter dito: Necessário vos é
ser gerado do alto/de novo. 8 O espírito/vento sopra
onde quer e ouves sua voz mas não sabes donde vem, nem para
onde vai. Assim é todo aquele que é gerado partir
do espírito. 9 Em resposta Nicodemos lhe disse: Como pode
suceder estas coisas? 10 Em resposta Jesus lhe disse: Tu és
o Mestre de Israel e não sabes estas coisas? 11 Em verdade,
em verdade te digo que falamos o que sabemos e testificamos o que
vimos, e não aceitais o nosso testemunho. 12 Se vos falei
de coisas terrestres, e não crestes, como crereis, se vos
falar das celestiais? 13 Ora, ninguém subiu ao céu,
senão o que desceu do céu, o filho do homem. |
Como pode ver o leitor o texto foi reproduzido no original grego,
acompanhado de uma singela tradução à guisa
de demonstração das dificuldades oferecidas pelo texto
dos tradutores.
Antes de mais nada convém salientar que esta passagem evangélica
é rica em ambigüidades poéticas que dão
um toque especial aos ensinos do Mestre. E por este motivo o tradutor
se depara com obstáculos, por vezes intransponíveis.
Os problemas surgem a partir do versículo três. A maioria
das traduções apresenta o seguinte texto: “Em
verdade, em verdade te digo que aquele que não nascer de
novo não pode ver o Reino de Deus.”
O apóstolo empregou, no texto grego, o verbo
que na verdade é um subjuntivo, na voz passiva, do verbo
(gerar, produzir, engendrar), logo pode ser traduzido como ser gerado/nascer.
Particularmente prefiro o termo ser gerado, já que reflete
com maior clareza o tema abordado por Jesus, ou seja, a Reencarnação.
Este verbo é utilizado inúmeras vezes pelo Evangelista
João nesta passagem.
O advérbio que complementa o verbo ser gerado pode ser traduzido
de duas maneiras: do alto/de novo. É neste trecho que o Divino
Mestre lança mão, em sua fala, de uma ambigüidade
intencional, uma vez que os dois sentidos são perfeitamente
ajustados ao contexto da mensagem. na verdade há jogo de
oposições entre os dois significados, que o Evangelista
soube utilizar com mestria. O que não deixa de ser poético.
Todavia, qual sentido deve o tradutor utilizar em seu texto? Qualquer
um dos sentidos adotados, na tradução, retira totalmente
a beleza, a sutileza, a ambigüidade poética do texto
grego.
Para não nos alongarmos em demasia, examinemos o versículo
seis da passagem evangélica em tela.
No texto traduzido encontramos “O que é nascido da
carne é carne, o que é nascido do espírito
é espírito.”
Como dito acima, preferimos traduzir o verbo ,
particípio, na voz passiva, do verbo gerar como
o que é gerado, pois reforça a idéia de Reencarnação,
deixando claro que não se trata de um renascimento no sentido
figurado ou espiritual, como querem os profitentes de outras crenças,
mas sim um verdadeiro renascer, no sentido biológico do termo.
Tanto é assim que a preposição grega que se
segue ao verbo apresenta uma nuance de sentido que as traduções
ocultam. Senão vejamos: no texto grego encontramos ,
expressão que foi traduzida, neste artigo, como a partir
da carne conforme se vê nas principais traduções.
A preposição de do português não reflete
o verdadeiro sentido da preposição
do grego. Aqueles que conhecem o latim, sabem a diferença
entre um genitivo e um ablativo, ou seja, entre um de com sentido
de posse (genitivo) e um de com sentido de procedência, matéria
(ablativo).
Essa diferença pode ser percebida no português quando
se diz: o livro de Clarissa; eu vim de Lisboa. É fácil
perceber a nuance de sentido das duas expressões.
Pois bem, a preposição utilizada no texto grego, tem
o sentido de procedência, de matéria. Foi por este
motivo que optamos pela seguinte tradução: “O
que é gerado a partir da carne é carne, o que é
gerado a partir do espírito é espírito.”
E mais uma vez o tema Reencarnação é colocado
no centro da mensagem veiculada pelo Divino Mestre. Quem tem olhos
de ver, leia.
A leitura do evangelho na sua língua original nos permite
entrar em contato com as qualidades literárias do texto,
sua beleza, sutileza, e espiritualidade, embora sejamos forçados
a reconhecer que a essência da mensagem tenha sido preservada
nas diversas traduções.
Como nos assevera o benfeitor Emmanuel, no prefácio do livro
Vinha de Luz, “O Evangelho é o Sol da Imortalidade
que o Espiritismo reflete, com sabedoria, para a atualidade do mundo.”
Sendo assim, não obstante toda imperfeição
do trabalho humano, incluindo o trabalho de tradução,
esse poderoso Sol prossegue nos aquecendo nos aquecendo e iluminando
nossa senda há 2 milênios, com a mesma força,
doçura, e poesia dos primeiros tempos.
Fonte:
http://www.espirito.org.br/portal/artigos/diversos/estudo/traduttore.html
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