SETENTA
ANOS atrás, em 1940, uma revista de ciência
popular publicou um artigo curto que deu origem a uma das modas
intelectuais mais influentes do século 20. À primeira
vista, o artigo não prenunciava a celebridade que viria a
adquirir. Nem o título, "Ciência e Linguística",
nem a revista, a "Technology Review", do Instituto de
Tecnologia de Massachu-?setts (MIT), nos EUA, tinham nenhum tipo
de glamour. E o autor, um engenheiro químico que trabalhava
para uma companhia de seguros e ganhava algum dinheiro extra dando
aulas de antropologia na Universidade Yale, era um improvável
candidato ao estrelato intelectual.
Benjamin Lee Whorf, no entanto, teve uma ideia faiscante acerca
do poder da linguagem sobre a mente, e sua prosa sedutora levou
toda uma geração a acreditar que nossa língua
materna restringe o que somos capazes de pensar.
IMAGEM DA REALIDADE
Whorf afirmava, em especial, que os idiomas dos indígenas
norte-americanos impunham a seus falantes uma imagem da realidade
completamente diferente da nossa, e que os falantes dessas línguas
não seriam capazes de compreender alguns de nossos conceitos
básicos, como o fluxo do tempo ou a distinção
entre objetos (como "pedra") e ações (como
"queda").
Por décadas, a teoria de Whorf deslumbrou tanto acadêmicos
quanto o público em geral. À sombra de suas ideias,
estudiosos apresentaram uma longa série de argumentos criativos
sobre o suposto poder da linguagem, que variavam da asserção
de que "os idiomas indígenas americanos conferiam a
seus falantes uma compreensão instintiva do conceito de Einstein
sobre o tempo como uma quarta dimensão" à teoria
de que "a natureza da religião judaica era determinada
pelo sistema de tempos verbais do hebraico antigo".
A teoria de Whorf veio a despencar, sob o peso de fatos concretos
e de um sólido bom senso, quando surgiram sinais de que jamais
houve provas que sustentassem sua fantástica argumentação.
A ?reação foi tão dura que, por décadas,
quaisquer tentativas de estudar a influência da língua
materna sobre nossos pensamentos ficaram relegadas aos rincões
menos respeitáveis e mais amalucados do mundo acadêmico.
NOVAS PESQUISAS
Passados 70 anos, porém, é chegada a hora de superar
o trauma com relação a Whorf. Nos últimos anos,
novas pesquisas revelaram que, ao aprendermos nossa língua
materna, nós de fato adquirimos determinados hábitos
de pensamento que dão forma às nossas experiências
de maneira significativa, volta e meia surpreendente.
Whorf, como agora sabemos, cometeu muitos erros. O mais grave foi
presumir que a língua materna restringe a nossa mente e inibe
a nossa capacidade de pensar determinados pensamentos. O pilar de
sua argumentação era a alegação de que,
se um idioma não tem palavra para determinado conceito, as
pessoas que o falam não são capazes de compreender
o conceito. Se um idioma não tem um tempo verbal futuro,
por exemplo, seus falantes não são capazes de compreender
o nosso conceito de tempo futuro.
É quase incompreensível que essa linha de argumentação
tenha conquistado tamanho sucesso, dado o imenso volume de provas
em contrário que surgem a olhos vistos, por todos os lados.
Se você perguntar, em inglês perfeitamente normal, e
no presente, "você vem amanhã?", vai sentir
que o seu domínio do conceito de futuro se esvai? Os anglófonos
que jamais ouviram a palavra alemã "Schadenfreude"
têm dificuldade para compreender o conceito de "alegrar-se
com o infortúnio alheio"?
Ou então pense no seguinte: se o estoque de palavras disponíveis
no seu idioma determina quais conceitos você será capaz
de compreender, como é que você faria para aprender
coisas novas?
DIREÇÃO OPOSTA
Já que não existe prova de que qualquer idioma proíba
seus falantes de pensar coisa alguma, é preciso olhar em
direção oposta para descobrir de que maneira nossa
língua materna altera nossa experiência do mundo.
Por volta de 50 anos atrás, o renomado linguista Roman Jakobson
assinalou um fato crucial sobre as diferenças entre idiomas,
por meio de uma máxima incisiva: "Os idiomas diferem
essencialmente naquilo que devem transmitir, e não naquilo
que podem transmitir". A máxima nos dá a chave
para compreender a força verdadeira da língua materna:
caso idiomas diferentes influenciem nossa mente de modos diferentes,
isso não acontecerá por causa daquilo que nosso idioma
nos permite pensar, e sim por aquilo que ele costuma nos obrigar
a pensar.
AMBIGUIDADE Considere
esse exemplo: suponha que eu lhe diga, em inglês, que "I
spent yesterday evening with a neighbor" [Passei a noite de
ontem com um(a) vizinho(a)].
Você pode muito bem especular se a minha companhia era homem
ou mulher e eu posso lhe dizer educadamente que isso não
é da sua conta.
Mas se estivéssemos conversando em francês ou alemão,
eu não teria o privilégio de manter essa ambiguidade,
porque seria obrigado a escolher, pela gramática do idioma,
entre "voisin" ou "voisine", "Nachbar"
ou "Nachbarin". Os idiomas me compeliriam a lhe informar
o sexo da pessoa que me acompanhou na noite passada, ainda que eu
considere que isso não seja da sua conta.
Isso não significa, evidentemente, que os falantes de inglês
sejam incapazes de perceber as diferenças entre noites passadas
com vizinhos ou vizinhas; significa que não precisam levar
em conta o sexo de vizinhos, amigos, professores e de uma série
de outras pessoas cada vez que são mencionados numa conversa,
enquanto os falantes de outros idiomas são obrigados a fazê-lo.
CONTEXTO
O inglês, por sua vez, nos obriga a especificar determinados
tipos de informação que, em outros idiomas, podem
ser deixados para o contexto. Se quero falar, em inglês, sobre
um jantar com alguém que mora na vizinhança, posso
não especificar o sexo dessa pessoa, mas preciso informar
sobre o momento do evento: preciso decidir se jantamos, se estávamos
jantando, se íamos jantar e assim por diante.
Já o chinês não obriga seus falantes a especificar
dessa maneira o tempo exato da ação, pois a mesma
forma verbal pode ser usada para ações presentes,
passadas ou futuras. Uma vez mais, isso não significa que
os chineses sejam incapazes de compreender o conceito de tempo.
Significa que não precisam pensar no tempo ao descrever uma
ação.
Nos casos em que o seu idioma rotineiramente o obriga a especificar
certos tipos de informação, ele o força a prestar
atenção a certos detalhes e a certos aspectos da experiência
nos quais falantes de outros idiomas talvez não sejam forçados
a pensar o tempo todo. E uma vez que esses hábitos de fala
são cultivados desde cedo, é natural que se tornem
hábitos mentais, que vão além do idioma e afetam
experiências, percepções, associações,
sentimentos, memórias e orientação no mundo.
Mas há provas de que isso aconteça na prática?
GÊNEROS
Voltemos aos gêneros. Línguas como espanhol, francês,
alemão e russo não só obrigam o falante a pensar
no sexo de amigos e vizinhos como associam os gêneros masculino
ou feminino a objetos inanimados, sob critérios muitas vezes
arbitrários. O que, por exemplo, existe de especialmente
feminino na barba ("la barbe") de um francês? Por
que a água russa é feminina, e por que ela se torna
"ele" quando colocam um saquinho de chá lá
dentro?
Mark Twain escreveu uma famosa diatribe sobre o comportamento errático
dos gêneros, reclamando das tulipas no feminino e das virgens
no gênero neutro, em "The Awful German Language"
[A Horrível Língua Alemã]. Embora Twain tenha
argumentado que existe algo de particularmente perverso no sistema
de gêneros do idioma alemão, é o inglês,
na verdade, que se mostra incomum, ao menos entre as línguas
europeias, por não tratar tulipas e chás como masculinos
ou femininos.
Idiomas que tratam objetos inanimados como "ele" ou "ela"
forçam seus falantes a se referir a esses objetos como se
fossem homens ou mulheres. E, como poderia lhe dizer qualquer pessoa
cuja língua materna faça distinções
de gênero, quando o hábito pega, é impossível
abandoná-lo. Quando falo inglês, refiro-me a uma cama
em gênero neutro, dizendo que "it" é bem
macia; sendo porém o hebraico minha língua materna,
sinto que "ela" é bem macia, na verdade. "Ela"
se mantém no feminino por todo o caminho, dos pulmões
à glote, e só se torna neutra ao chegar à ponta
da língua.
ASSOCIAÇÕES
Nos últimos anos, diversas experiências demonstraram
que os gêneros gramaticais são capazes de influenciar
sentimentos e associações dos falantes em relação
aos objetos que os cercam. Na década de 90, por exemplo,
psicólogos compararam as associações entre
falantes de alemão e espanhol. Há muitos substantivos
inanimados cujos gêneros se invertem de um idioma para outro.
No alemão, uma ponte ("die Brücke"), por exemplo,
é feminina, mas "el puente" é masculino
em espanhol; o mesmo vale para relógios, apartamentos, garfos,
jornais, bolsos, ombros, selos, ingressos, violinos, o sol, o mundo
e o amor.
Já para os alemães uma maçã é
masculina, mas feminina para os espanhóis; o mesmo vale para
cadeiras, vassouras, estrelas, mesas, guerras, chuva e lixo. Quando
os falantes foram convidados a classificar os objetos segundo características
diversas, os espanhóis definiram pontes, relógios
e violinos como portadores de mais "propriedades másculas",
como a força, enquanto os alemães tendiam a vê-los
como mais esguios ou elegantes. No caso de objetos como cadeiras
ou mesas, que são "ele" no alemão e "ela"
em espanhol, o efeito se inverte.
VOZES
Em outra experiência, falantes de espanhol e francês
foram convidados a associar vozes humanas a diversos objetos que
apareciam num desenho animado. Quando os franceses viam a imagem
de um garfo ("la fourchette"), a maioria preferia atribuir
ao objeto uma voz feminina; já os espanhóis, para
os quais "el tenedor" é masculino, preferiam lhe
conferir voz masculina e rouca.
Mais recentemente, psicólogos conseguiram demonstrar que
os "idiomas com gêneros" imprimem na mente de seus
usuários os traços de gênero dos objetos com
tamanha força que essas associações chegam
a obstruir a capacidade do falante para armazenar informações
na memória.
É evidente que nada disso significa que falantes de espanhol,
francês ou alemão sejam incapazes de compreender que
objetos inanimados não têm sexo biológico -uma
mulher alemã raramente confunde seu marido com um chapéu,
e homens espanhóis não confundem a cama com algo que
possa estar deitado nela. Mesmo assim, uma vez que as conotações
de gênero foram impressas em mentes jovens e impressionáveis,
farão com que falantes de idiomas dotados de gêneros
vejam o mundo inanimado por lentes coloridas de associações
emocionais que os anglófonos -aprisionados em seu monocromático
deserto de "its"- ignoram completamente.
Será que os gêneros opostos de "ponte" em
alemão e espanhol, por exemplo, influenciaram de alguma forma
os projetos de pontes na Espanha e na Alemanha? Será que
os mapas emocionais impostos pelo sistema de gêneros têm
maiores consequências comportamentais em nossa vida cotidiana?
Influenciarão preferências, modas, hábitos e
gostos?
No estado atual do conhecimento sobre o cérebro, não
se trata de algo que possa ser mensurado com facilidade num laboratório
de psicologia. Mas seria surpreendente que não influenciassem.
LINGUAGEM ESPACIAL
A área que viu surgirem as provas mais notáveis da
influência dos idiomas no pensamento é a linguagem
espacial -como descrevemos a orientação do mundo em
redor.
Suponha que você queira explicar a alguém como chegar
à sua casa. Poderia dizer "depois do sinal, vire na
primeira à esquerda, depois na segunda à direita;
você vai dar numa casa branca, nossa porta é a da direita".
Mas, em tese, também poderia dizer "depois do sinal,
siga para o norte, depois vire a leste no segundo cruzamento e,
quando vir uma casa branca a leste, a nossa será a porta
sul".
São dois conjuntos de instruções que descrevem
a mesma rota, mas dependem de diferentes sistemas de coordenadas.
O primeiro emprega coordenadas "egocêntricas", que
dependem do nosso corpo: o eixo direita-esquerda e o eixo frente-trás,
disposto de maneira ortogonal com relação ao outro.
O segundo sistema emprega coordenadas geográficas fixas,
que não nos acompanham quando nos viramos.
É útil adotar coordenadas geográficas para
caminhar em campos abertos, por exemplo, mas as coordenadas egocêntricas
dominam completamente a nossa fala quando descrevemos espaços
em pequena escala. Não dizemos: "Quando sair do elevador,
caminhe para o sul e bata na segunda porta a leste".
A razão para que o sistema egocêntrico seja tão
dominante em nossa linguagem é que parece mais fácil
e mais natural. Afinal, sempre sabemos onde ficam "frente"
e "trás". Não precisamos de mapa ou bússola
para compreender; basta sentir, pois as coordenadas egocêntricas
se baseiam diretamente em nosso corpo e nosso campo visual imediato.
GUUGU YIMITHIRR
Mas então foi descoberto um remoto idioma aborígine
australiano, o guugu yimithirr, do norte de Queensland, e com ele
a perturbadora constatação de que nem todos os idiomas
se conformam ao que invariavelmente tomamos como "natural".
O guugu yimithirr não usa de modo algum as coordenadas egocêntricas.
O antropólogo John Haviland e, mais tarde, o linguista Stephen
Levinson demonstraram que o guugu yimithirr não emprega palavras
como "direita", "esquerda", "frente"
ou "trás" para descrever a posição
de objetos.
Nos casos em que costumamos usar o sistema egocêntrico, o
guugu yimithirr emprega os pontos cardeais. Se a ideia é
que você abra um pouco mais de espaço no banco do carro,
um falante de guugu yimithirr dirá "vá um pouquinho
para leste". Para dizer onde exatamente deixou um objeto em
casa, ele dirá "deixei na ponta sul da mesa oeste".
Ou alertará: "Cuidado com aquela formigona bem ao norte
do seu pé". Mesmo quando veem um filme na TV, descrevem-no
com base na orientação da tela. Se a TV estivesse
voltada para o norte e um homem na tela se aproximasse, eles diriam
que ele está "vindo rumo ao norte".
PESQUISA
Quando essas peculiaridades do guugu yimithirr foram descobertas,
inspiraram um projeto de pesquisa em larga escala sobre a linguagem
espacial. E isso deixou claro que o guugu yimithirr não representa
uma ocorrência excepcional; idiomas que se valem primordialmente
de coordenadas geográficas estão espalhados mundo
afora, da Polinésia ao México, da Namíbia a
Bali.
Para nós, poderia parecer o cúmulo do absurdo que
uma professora de dança dissesse "erga sua mão
norte e mova sua perna sul para o leste". Mas algumas pessoas
não perceberiam a piada: Colin McPhee, musicólogo
canadense-americano que passou muitos anos em Bali na década
de 30, conta a história de um menino que mostrava grande
talento para a dança. Como não havia professores em
sua aldeia, McPhee conseguiu que um instrutor de outra aldeia aceitasse
o garoto.
Quando visitou a aldeia para verificar como estava indo o estudo,
o menino estava desanimado, e o professor, irritado. Quando instruído
a dar "três passos para o leste" ou "se curvar
para o sudoeste", ele não sabia o que fazer. Em sua
aldeia natal, instruções assim não seriam problema,
mas, como a paisagem na nova aldeia lhe era completamente desconhecida,
ele ficava desorientado e confuso.
Por que o instrutor não empregou outro método de instrução?
Ele provavelmente responderia que dizer "dê três
passos para a frente" ou "curve-se para trás"
seria o cúmulo do absurdo.
FALAR E PENSAR
Assim, idiomas diferentes nos fazem falar sobre o espaço
de jeitos muito diferentes. Mas será que isso realmente significa
que pensamos sobre o espaço de forma diferente? É
preciso cautela, pois, mesmo que uma língua não tenha
uma palavra como "para trás", isso não significa
necessariamente que seus falantes sejam incapazes de compreender
esse conceito.
Em vez disso, devemos procurar as possíveis consequências
daquilo que as linguagens geográficas obrigam seus falantes
a expressar. Devemos ficar especialmente atentos a quais hábitos
mentais podem ser desenvolvidos pela necessidade de especificar
direções geográficas o tempo todo.
A fim de falar um idioma como o guugu yimithirr, a pessoa precisa
saber onde estão os pontos cardeais a cada momento de sua
vida. É preciso ter uma bússola mental que opere o
tempo todo, dia e noite, sem pausas para o almoço ou folgas
em fins de semana, pois, de outra forma, a pessoa não seria
capaz de comunicar as informações mais básicas
nem de compreender o que os outros dizem.
SENSO DE ORIENTAÇÃO
Os falantes de idiomas geográficos realmente parecem dotados
de um senso de orientação quase sobre-humano. A despeito
das condições de visibilidade, estejam em mata fechada
ou planície aberta, em ambientes abertos ou cobertos, e até
mesmo no interior de cavernas, parados ou em movimento, eles têm
um senso de direção infalível.
Não param para olhar o sol antes de dizer que "tem uma
formiga ao norte do seu pé". Apenas sentem onde ficam
o norte, o sul, o leste e o oeste, da mesma forma que pessoas com
ouvido absoluto sentem qual é cada nota, sem que precisem
calcular os intervalos.
Não faltam histórias sobre o que a nós pareceriam
incríveis prodígios de orientação, mas
que entre os falantes de idiomas geográficos são corriqueiros.
Uma delas conta sobre um falante do idioma tzeltal, do sul do México,
que teve os olhos vendados e foi girado em torno de si mesmo por
mais de 20 vezes, numa casa escura. Mesmo vendado e zonzo com os
giros, ele foi capaz de apontar sem hesitação os quatro
pontos cardeais.
INDÍCIOS
Como isso funciona? A convenção da comunicação
por meio de coordenadas geográficas compele os falantes a,
desde cedo, prestarem atenção a indícios oferecidos
pelo ambiente físico (a posição do sol, o vento
etc.) a cada segundo e a desenvolver memórias precisas sobre
suas mudanças de rumo a todo instante.
Assim, a comunicação cotidiana num idioma geográfico
oferece o exercício mais intenso que se possa imaginar em
termos de orientação geográfica (estima-se
que perto de 10% das palavras usadas numa conversa em guugu yimithirr
sejam "norte", "sul", "leste" e "oeste",
acompanhadas de gestos manuais precisos).
O hábito de manter consciência da direção
geográfica é inculcado desde muito cedo; estudos demonstram
que, nessas sociedades, as crianças já começam
a utilizar direções geográficas aos dois anos,
e, aos sete ou oito, já dominam o sistema. Com um treino
tão precoce e intenso, o hábito logo se torna uma
segunda natureza, inconsciente e involuntário. Quando os
falantes de guugu yimithirr foram questionados sobre como sabiam
onde ficava o norte, não foram capazes de explicar, assim
como você não seria capaz de explicar como sabe onde
fica "atrás".
TEMPO
Mas os efeitos de um idioma geográfico vão além,
pois o senso de orientação precisa se estender no
tempo e ir além do presente imediato. Se você fala
uma língua do tipo guugu yimithirr, precisa armazenar todas
as suas lembranças tendo os pontos cardeais como parte do
quadro.
Um falante de guugu yimithirr foi filmado enquanto contava aos amigos
uma história de sua juventude, quando seu barco virou em
águas infestadas de tubarões. Ele e uma pessoa mais
velha foram apanhados por uma tempestade, e o barco virou. Os dois
saltaram na água e conseguiram retornar à costa, depois
de nadar por uns cinco quilômetros. Ao chegar, descobriram
que o missionário para quem trabalhavam estava mais preocupado
com a perda do barco do que aliviado com o salvamento milagroso.
Além do teor dramático, o mais notável na história
é ter sido recordada inteiramente com base em orientações
geográficas: o narrador saltou para a água pelo lado
oeste do barco, e seu companheiro pelo lado leste; viram um grande
tubarão nadando ao norte; e por aí vai.
Teriam os pontos cardeais sido acrescentados para aquela narrativa
específica? Pois bem, por acaso, a mesma pessoa foi filmada
anos mais tarde, contando a mesma história. Os pontos cardeais
bateram precisamente nos dois relatos. Ainda mais notáveis
eram os espontâneos gestos manuais que acompanhavam a história.
Por exemplo, a direção em que o barco virou foi indicada
por um gesto na orientação geográfica certa,
independentemente da direção em que o narrador estivesse
nas duas ocasiões em que foi filmado.
ROTAÇÕES
Experiências psicológicas demonstraram também
que, sob certas circunstâncias, os falantes de idiomas como
o guugu yimithirr chegam a lembrar "a mesma realidade"
de modo diferente do nosso. Há debates candentes sobre a
interpretação de algumas dessas experiências,
mas uma constatação que parece convincente é
a de que, enquanto somos treinados a ignorar as rotações
direcionais ao guardar uma história na memória, os
falantes de idiomas geográficos são treinados a não
fazê-lo.
Isso pode ser compreendido ao imaginar que você vai viajar
na companhia de um falante de um idioma geográfico e que
os dois vão se hospedar num hotel de uma grande rede. O seu
amigo está no apartamento em frente ao seu e, se você
for ao apartamento dele, verá uma réplica exata: a
mesma porta de banheiro à esquerda, o mesmo guarda-roupa
com porta espelhada à direita, o mesmo quarto de dormir,
com a cama à esquerda, uma escrivaninha idêntica na
parede à direita, em cima dela a mesma TV, no canto esquerdo,
e o telefone, no canto direito. Ou seja, você viu o mesmo
quarto duas vezes.
Mas quando o seu amigo entra no seu quarto, vê algo bem diferente,
pois tudo está invertido em sentido norte-sul. No quarto
dele, a cama está ao norte e, no seu, está ao sul;
o telefone, no seu quarto, fica a oeste, e o do amigo, a leste;
e por aí vai. Enquanto você vê e se lembra do
mesmo quarto duas vezes, o falante de um idioma geográfico
vê e se lembra de dois quartos diferentes.
GRADE
Não é fácil para nós conceber como os
falantes de guugu yimithirr experimentam o mundo, com uma grade
de pontos cardeais sobreposta a cada imagem mental e a cada porção
de memória gráfica. Tampouco é fácil
especular de que modo os idiomas geográficos afetam outras
áreas de experiência que não a orientação
espacial -por exemplo, se influenciam o senso de identidade de seus
falantes, ou se resultam numa visão de mundo menos egocêntrica.
Mas um indício é revelador: se você vir um falante
de guugu yimithirr apontando para o próprio peito, naturalmente
vai presumir que deseja chamar a atenção para si.
Na verdade, ele estará indicando um ponto cardeal que está
às suas costas. Enquanto nós estamos sempre no centro
do mundo e jamais nos ocorreria que apontar em nossa própria
direção pudesse significar outra coisa além
de chamar a atenção para nós mesmos, um falante
de guugu yimithirr aponta em sua própria direção
para indicar aquilo que está atrás dele, como se ele
fosse ar, e sua existência, irrelevante.
CORES
De que outras formas o idioma que falamos poderia influenciar nossa
experiência do mundo? Recentemente, uma série de engenhosos
experimentos demonstrou que percebemos até mesmo as cores
pelo filtro de nossa língua materna.
Há variações radicais na maneira pela qual
os idiomas dividem o espectro da luz visível; em inglês,
por exemplo, azul e verde são consideradas cores distintas,
mas em muitos idiomas são vistas como tons de uma mesma cor.
E o fato é que as cores que nosso idioma nos obriga a tratar
como distintas podem refinar nossa sensibilidade puramente visual
a determinadas diferenças de cor na realidade, de modo que
nosso cérebro seja treinado a exagerar a distinção
entre nuanças de cor, caso tenham nomes diferentes em nosso
idioma.
Por mais estranho que pareça, a experiência de contemplar
um quadro de Chagall pode depender, em certa medida, de o nosso
idioma ter ou não uma palavra para o azul.
MATSES
Em breve os pesquisadores poderão também iluminar
o impacto da linguagem sobre áreas mais sutis de percepção.
Por exemplo, alguns idiomas, como o matses, do Peru, obrigam seus
falantes -feito rigorosos advogados- a especificar exatamente de
que maneira vieram a se informar sobre os fatos que estão
testemunhando.
Você não pode simplesmente dizer que "um animal
passou por aqui". É preciso especificar, usando uma
forma verbal diferente, caso tenha sido por experiência direta
(você viu o animal passar), inferência (você viu
pegadas), conjectura (animais costumam passar por ali naquele horário),
ouvir falar ou coisa parecida. Se uma afirmação for
feita com a "cadeia evidenciária" incorreta, será
tomada como mentira.
Assim, por exemplo, se você pergunta a um homem matse quantas
mulheres ele tem, a menos que elas estejam em seu campo de visão
no momento, a resposta virá no passado, e terá forma
semelhante a "eram duas na última vez que verifiquei".
Afinal de contas, se as mulheres não estiverem presentes,
ele não pode ter certeza absoluta de que não morreram
ou fugiram desde a última vez que as viu, mesmo que apenas
cinco minutos antes. Portanto, não pode testemunhar a situação
como fato comprovado, em tempo presente.
ESTUDOS EMPÍRICOS
Será que a necessidade de pensar constantemente sobre epistemologia,
de maneira tão cuidadosa e sofisticada, influencia as perspectivas
de vida dos falantes do idioma ou seu senso de verdade e causalidade?
Quando nossas ferramentas experimentais forem menos brutas, questões
serão levadas a estudos empíricos.
Por muitos anos, a língua materna foi tratada como um "presídio"
que restringia a capacidade de raciocinar. Quando se tornou claro
que tais alegações não tinham fundamento, passou-se
a considerar que pessoas de todas as culturas pensam genericamente
da mesma maneira.
É um erro, porém, superestimar a importância
do raciocínio abstrato em nossas vidas. Afinal, quantas decisões
tomamos a cada dia com base em lógica dedutiva, comparadas
às decisões que tomamos por instinto, intuição,
emoção, impulso ou questões práticas?
Os hábitos mentais que nossa cultura nos instila desde a
infância definem nossa orientação no mundo e
nossa resposta emocional aos objetos com que deparamos, e suas consequências
provavelmente vão muito além daquilo que foi demonstrado
de modo experimental até agora.
Podemos não saber ainda como medir essas consequências
diretamente, ou como avaliar sua contribuição para
os desentendimentos políticos e culturais. Mas, como primeiro
passo para nos compreendermos uns aos outros, seria melhor não
fingirmos que pensamos todos da mesma forma.