O caso da norte-americana Terry Schiavo suscitou o
debate sobre a eutanásia em todo o mundo. A decisão
pelo desligamento ou não dos aparelhos que a mantinham viva
estendeu-se pelos tribunais. Vários laudos técnicos
foram usados na disputa judicial, além de funcionarem também
como atenuante para a solução final: ela praticamente
não teria sofrido durante os treze dias em que ficou sem água
e comida até falecer, já que seu cérebro estaria
comprometido a ponto dela não sentir mais dor, fome ou sede.
O embate jurídico em torno da manutenção ou não
da vida da paciente mostrou que a questão, do ponto de vista
exclusivo da medicina e do direito, está longe de ter um ponto
final. Nesse contexto, a ética e a filosofia podem contribuir
de maneira significativa para um avanço das discussões
e de critérios para decisões em torno do assunto.
Entre os médicos, o conceito de morte
cerebral é padronizado
e aceito internacionalmente. Ocorre quando um paciente encontra-se
em um quadro de falência total do sistema nervoso central, caracterizável
como irreversível. Já uma falência parcial do
cérebro pode levar ao controverso conceito de “estado
vegetativo”, quando existe um comprometimento das respostas
do organismo aos estímulos nervosos. Mas, em muitos casos,
o grau desse comprometimento é impossível de ser aferido
e avaliado com exatidão. Desse modo, os argumentos de natureza
estritamente técnica mostram-se insuficientes para decidir
pela interrupção ou não da vida de uma pessoa
que, por exemplo, vive com o auxílio de aparelhos. O debate
ético em torno do assunto, que no Brasil é ainda incipiente,
lança novos pontos de vista sbre a eutanásia.
“O que seria, no caso de Terry Schiavo, algo
praticamente indolor?” indaga o filósofo e professor
da Universidade de São Paulo (USP), Renato Janine Ribeiro.
Para ele, na ciência, há um forte elemento amoral, ou
seja, uma tendência de isentar-se de julgamentos morais e manter-se
neutra. Tal característica é oriunda do fato que seus
avanços, muitas vezes, já se confrontaram com valores
considerados corretos pela sociedade na qual ela está inserida
e se desenvolvendo. Um exemplo significativo pode ser situado nos
primórdios dos chamados estudos científicos: “A
ciência começou a fazer anatomia quando isso era um pecado
mortal, uma entre muitas coisas que a religião desaprovava”,
afirma. No entanto, Janine lembra que, embora a anatomia tenha sido
fundamental para o progresso da medicina, os estudos anatômicos
também foram feitos, por exemplo, em prisioneiros durante o
século XVI: “Quando o rei Carlos IX, da França,
foi ferido em um torneio, o médico dele, Ambroise Paré,
recebeu vários presos condenados à morte para estudar
possíveis tratamentos, e todos morreram nas experiências”,
afirma. Assim, “é muito difícil dizer que o que
hoje a moral condena não vá ser, dentro de um tempo,
aceito”, completa.
Janine revela não ter uma opinião fechada
sobre a eutanásia e que é cético em relação
a uma possível solução ou regra única
para definir em quais casos o paciente tem direito a morrer. Para
ele, os cuidados médicos podem prolongar uma agonia por muito
tempo ou assegurar uma morte limpa e sem dor, mas a decisão
sobre isso não pode ser do médico. “Deve ser,
em última análise, uma decisão da pessoa que
há de viver ou morrer e, antes disso, uma decisão da
sociedade”, diz. Deste modo, Renato Janine aponta para a necessidade
de uma discussão ética sobre o assunto, incluindo os
limites entre os direitos sociais e individuais, nos mais variados
casos em que a eutanásia é cogitada.
A questão apontada pelo filósofo e a
necessidade de um posicionamento da sociedade englobam o paciente
que, conscientemente, opta pela morte. Trata-se de uma ocasião
em que a discussão sobre os limites da autonomia individual
é mais latente, uma vez que, em muitos casos, a pessoa manifesta
o interesse por morrer antes do tempo que ela poderia ficar viva com
auxílios técnicos da medicina ou até mesmo se
curar. Embora também tenha dúvidas sobre a maneira adequada
para decidir-se sobre a eutanásia nesses casos, Janine aponta
um possível caminho para iniciar essa discussão: o respeito
pelo direito da pessoa de não querer mais viver. Uma das maneiras
de fazer isso é o diálogo com o indivíduo sobre
a opção feita por ele e não simplesmente a tentativa
de convencê-lo do contrário. Seria uma maneira de fugir
de uma tendência de infantilizá-lo, como muitas vezes
ocorre com os idosos. “Isto significa que, se uma pessoa não
quer mais viver devido a um sofrimento intenso e irreversível,
deve ter meios de poder abreviar sua vida, tal como exemplifica o
filme Menina de Ouro, de Clint Eastwood”, conclui.
Também para o médico e filósofo
Rodrigo Siqueira Batista, coordenador do Núcleo
de Estudos em Filosofia e Saúde da Fundação Educacional
Serra dos Órgãos (Feso), é imprescindível
tornar essa discussão mais ampla. Para ele, a eutanásia
não tem recebido a devida atenção da comunidade
médica brasileira. Devido ao fato da sua prática ser
considerada crime pelo artigo 121 do Código Penal, tem sido
mantido um “espúrio pacto de silêncio” nas
Unidades de Assistência à Saúde. Ele menciona
que a decisão de interromper ou não a vida dos pacientes
acaba por ser tomada às escuras, por profissionais habitualmente
sem qualquer preparo para enfrentar a situação, muitas
vezes à revelia dos familiares e do próprio enfermo:
“Discutir e ponderar sobre ética e eutanásia,
demarcando-se adequadamente os conceitos e enfocando-se os argumentos
favoráveis e contrários à sua realização,
torna-se fundamental para a formação laboral em saúde,
bem como para o mais amplo exercício da cidadania, ao menos
em sociedades laicas e plurais”, afirma.
Nesse sentido, Siqueira Batista entende que uma das
ponderações importantes para essa discussão é
a noção de finitude da vida, uma das marcas profundas
da condição humana. “Desde tempos imemoriais,
vêm sendo desenvolvidos modos para se lidar com a efemeridade
da vida, como no caso das narrativas míticas gregas, por exemplo,
nas quais deuses e homens eram distinguidos pela sujeição
à mortalidade”, explica. Posteriormente, as religiões
e a filosofia também desempenharam esse papel, e atualmente
ele também vem sendo exercido pela ciência. No contexto
atual, é imprescindível realçar a inserção
da ciência como uma das modalidades de explicação
da realidade: “Ainda que se torne possível um prolongamento
da vida, a questão da sua finitude estará sempre enraizada
na experiência humana de existir”, afirma. Segundo o pensador,
“tornar-se imortal representa, em última análise,
abdicar de ser humano”, completa.
Para Eduardo Cruz, chefe do Programa
de Pós-graduação em Ciência de Religião
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), um avanço sobre a questão da eutanásia
está relacionada a uma aproximação equilibrada
entre ciência e religião. “Ao ver a religião
apenas como resquício de um passado de superstições
e dogmatismo, alguns cientistas podem prejudicar a própria
sociedade a quem querem beneficiar”, afirma. Ele procura realçar
a lógica do pensamento religioso diante dos avanços
da medicina, que permitem hoje a possibilidade de uma “sobrevida”
do paciente com graves problemas de saúde. Ele diz que as religiões
optaram, de um modo geral, pela naturalidade da vida e da morte dos
seres humanos. “Meios de prolongar intoleravelmente a vida não
são incentivados, enquanto o término antecipado da existência
é condenado”, afirma. Essa postura contrária à
eutanásia, segundo ele, advêm da impossibilidade de reversão
do processo e do questionamento da objetividade do paciente e dos
parentes em um momento de extrema emoção.
Para Cruz, outra questão presente no discurso
religioso que critica a eutanásia é a idéia da
inserção de cada indivíduo no fluxo da existência
e da sociedade: “Esta concepção, de certa forma,
vai contra o postulado da modernidade da soberania do indivíduo
em tomar qualquer decisão”, afirma. Segundo o pesquisador,
esse princípio não se restringe ao âmbito religioso,
pois o direito e a moral contemporâneos, já apresentam
limites ao poder de decisão do indivíduo. “Seja
porque uma ação deste pode ter um impacto direto na
vida social, como roubar, por exemplo, seja porque, aos poucos, essas
decisões podem corroer o tecido social e o fluxo da natureza”,
explica. Desse modo, o homem que reivindica o direito à eutanásia,
definido como um indivíduo em face de um incômodo existencial,
não deve ter sua vontade como único referencial: “Não
há um direito sagrado a uma existência sem problemas”,
afirma.
Já Rodrigo Siqueira Batista
aponta também algumas perspectivas para desenvolver o debate
sobre a eutanásia. A primeira delas seria recuperar o sentido
originário da palavra eutanásia, literalmente “boa
morte” (eu – regular/justamente //com bondade, benevolência;
e tanatos – morte), livrando-a de ranços e seqüelas
remanescentes da política nazista de extermínio, erroneamente
traduzida por “eutanásia”.
A segunda perspectiva aproxima-se da posição
de Eduardo Cruz. “É preciso uma profunda discussão
acerca da autonomia do sujeito – possivelmente o mais poderoso
argumento pró-eutanásia – na medida em que a autonomia
individual, ainda que plenamente defensável, é sujeita
a grande polêmica em termos do seu alcance, chegando-se, inclusive,
a questionar a sua real existência”, afirma. O pesquisador
cita filmes de ficção científica, como Gattaca
e Brilho eterno de uma mente sem lembrança, nos quais a ciência
desenvolve técnicas para moldar a personalidade e o fenótipo
do ser humano. “Trata-se de uma fecunda discussão sobre
livre arbítrio/ determinação para o âmbito
da vida e o para o futuro da humanidade”, diz Batista.
Uma terceira perspectiva vai ao encontro da proposta
de Renato Janine. Rodrigo Siqueira Batista afirma a necessidade de
entender a eutanásia como um ato inscrito no paradigma da compaixão,
segundo o qual o homem em processo de morrer deve ser acolhido, como
um igual, em seus mais íntimos propósitos – independentes
de serem livres ou determinados – ainda que estes se dirijam
para a interrupção da própria existência.
Mesmo que a compaixão esteja sendo pouco prestigiada nas reflexões
contemporâneas, ele afirma que integrá-la aos demais
fios que compõem o grande tecido dos debates sobre a eutanásia
é uma forma de olhar e acolher o homem que morre, “um
genuíno ato de fraternidade, permitindo-lhe, quiçá,
a restituição da prerrogativa de sonhar com seus melhores
dias de outrora”, conclui.