A Revista Internacional de Espiritismo,
em sua edição deste outubro de 2017, traz um artigo
interessantíssimo com uma resenha literária assinada
por Antonio Cesar Perri de Carvalho, a respeito de uma obra rara
e valiosíssima especialmente para os espíritas mais
atentos à historiografia do Espiritismo: Antichristo:
Senhor do Mundo, de Leopoldo Cirne, publicada
em 1935.
A RIE é editada pela histórica
Editora O Clarim. fundada pelo saudoso Cairbar Schutel
Antonio Cesar Perri de Carvalho,
ex-presidente da FEB - Federação Espírita Brasileira,
então nos oferece um grande resgate histórico ao recolocar
em evidência o livro daquele gigante ativista espírita,
Leopoldo Cirne, que, entre outros feitos, também presidiu
a FEB.
Sobre o livro de Cirne, deixemos
por conta da excelente resenha, que reproduzimos a seguir:
Cristianismo, Espiritismo e
o Anticristo
Análise de uma obra rara de Leopoldo Cirne lançada
em 1935.
Por: Antonio Cesar Perri de Carvalho
Leopoldo Cirne (1870-1941), ex- -presidente
da FEB, escreveu a portentosa obra Anticristo. Senhor do Mundo,
tendo dois subtítulos: “O Espiritismo em falência”
e “A obra cristã e o poder das trevas”. Concluída
em 3 de outubro de 1934, impressa por Bedeschi e lançada
no Rio de Janeiro em 1935, não foi reeditada e é encontrada
em alguns sebos, onde a localizamos e com a riqueza de conter dedicatória
manuscrita de Cirne para familiar. Com 529 páginas, na 1ª
Parte Cirne analisa em detalhes a trajetória do Cristianismo
e na 2ª Parte focaliza o Espiritismo.
1ª Parte
O objetivo da obra é defnido pelo autor: “(...) apreciando
a ação perturbadora do Anticristo na existência
da igreja – alvo do seu inveterado rancor – do mesmo
que em todas as manifestações da vida humana, em que
essa interferência transparece, colher ensinamentos e advertências
para salvaguarda dos que, nesta época de transformações
e num radioso futuro que se avizinha, desejem sinceramente seguir
a Jesus e necessitam estar apercebidos contra as insidiosas manobras
dos que com propriedade são denominados inimigos da luz.
(...) O presente estudo é assim uma contribuição
exclusivamente pessoal, fundada na observação e análise
dos fatos à luz dos conhecimentos adquiridos na doutrina
espírita, que temos a felicidade de professar há quarenta
anos”. Esclarece que entende por “Anticristo”
uma força, também chamada de “príncipe
deste mundo”, “poder das trevas”, que age “em
oposição, deliberada e sistematicamente, ao plano
evolutivo traçado por Deus à humanidade”. Considera
que o Cristo empreende a obra de educação e redenção
da humanidade e raciocina: “o princípio oposto –
de separatividade [sic] e de egoísmo – que forma o
substrato da natureza inferior do homem e constitui, na quase totalidade
da espécie humana, o motivo preponderante de seus atos e
impulsos? (...) esse princípio deverá chamar-se o
Anticristo. Somos todos assim, enquanto consentimos em nós
o predomínio do egoísmo com todos os seus derivados
– ambição, vaidade, orgulho – e pelejamos
denodadamente pela obtenção e acréscimo dos
bens, posições e vantagens pessoais, com sacrifício
dos outros e violação da lei de solidariedade (...)”
Cirne comenta a ação
do Cristo e de seus seguidores, com citações dos evangelistas,
de Atos e de epístolas de Paulo. Ao relacionar a trajetória
do Cristianismo com o escopo de seu livro, opina: “exposta
às agressões do Espírito das trevas e em contato
com a fragilidade dos que, no futuro, tomariam o encargo de seus
depositários e propagadores, a sua doutrina de amor e imortalidade
seria deturpada por adaptações parasitárias
e materializadoras.” Analisa algumas dissensões, concílios
e deturpações dos ensinos cristãos primitivos.
Destaca o papel de Francisco de Assis e as “incomparáveis
contribuições para a obra da civilização
verdadeiramente cristã, são: A imitação
do Cristo e o apostolado de Francisco de Assis”. Refere-se
à obra de Thomas Hemerken, conhecido como Kempis (1380-1471),
que propõe a reconciliação da Igreja com o
espírito do Cristianismo.
Focaliza os complicados momentos
do papado em Avignon e momentos subsequentes: “Foi esse o
começo do grande cisma, que durante meio século –
de 1378 a 1429 – atormentou a existência da igreja.”
Aí se inclui o sacrifício de Jan Huss. Considera que
a história da Igreja cristã “tem sido uma ?
agrante representação objetiva da alegoria expressa
na parábola do joio entre o trigo, (...) O partido político
que tem o seu quartel general no Vaticano e representação
diplomática em todos os países, preocupa-se antes
de tudo com o domínio temporal, (...) O ‘tesouro de
S. Pedro’ – que de resto ‘não possuía
ouro nem prata’ – é o alicerce da sua grandeza
(...).” Lamenta os movimentos fanatizados das Cruzadas e da
Inquisição. Dedica um capítulo à Reforma
e transcreve trecho de carta de Lutero ao papa Leão X: “Não
sei decidir ao certo se o papa é o Anticristo ou o apóstolo
do Anticristo.”
Considera que a Reforma provocou
efeitos salutares, inclusive na moralização de costumes.
Destaca os papéis independentes de Copérnico, Giordano
Bruno e Galileu. Sobre a França (século XVIII), com
os desvarios da “Deusa Razão”, anota: “Do
cimo das inteligências cultas, obnubiladas pelo orgulho do
saber e, em tais condições, inconscientes instrumentos
do Anticristo, (...) se propagassem pelas camadas sociais subjacentes,
gerando com o morbus da irreligiosidade absoluta, os sentimentos
de revolta (...)”
Cirne valoriza o “sacerdote
cristão e não católico”, o abade Lamennais,
citando “seus esforços no sentido de reconciliar a
Igreja com o espírito do Cristianismo”. Este foi excomungado
e é autor de mensagens em O Livro dos Espíritos e
O Evangelho Segundo o Espiritismo. Destaca as lutas para a manutenção
dos Estados pontifícios, culminando com o “acordo de
Latrão” (século XX) com o governo italiano,
que reconhece a soberania temporal do papa. A propósito,
transcreve trechos do intelectual português Jaime Cortesão
(1884-1960), como: “Roma abraçou o Cristianismo, mas
para o afogar nos braços.”
2ª Parte
Na 2ª Parte, Leopoldo Cirne focaliza os momentos predecessores
e concomitantes ao Espiritismo, de eclosão de muitos fenômenos
mediúnicos e com notável trabalho de vários
pesquisadores. Comenta: “não foi esse, de ter feito
silenciarem no seio da cristandade as vozes dos Espíritos,
o menor dos erros perpetrados (...). Porque, estancando arbitrariamente
a fonte das inspirações do Alto, em sua forma tradicional
e ostensiva, quando apenas lhes cumpria cercar de prudentes cuidados
essa prática (...).” Lembra sobre o vaticínio
de Lamennais: “uma transformação ou, se o preferirem
assim denominar, um novo movimento do Cristianismo no seio da humanidade.”
Descreve o cenário dos primeiros
grupos espíritas do Rio de Janeiro e as difculdades da novel
Federação Espírita Brasileira: “Havia,
em 1895, atingido o limite de sua capacidade máxima de resistência,
esgotado os seus últimos recursos e estava prestes a sucumbir,
quando foi convidado a assumir a sua direção, com
amplos e discricionários poderes, como o exigia a situação,
o Dr. Adolfo Bezerra de Menezes.” Define a presidência
de Bezerra como um “renascimento para a Federação,
acerca de cujas sessões doutrinárias, em que foi restabelecido
o estudo metódico de O Livro dos Espíritos”;
registra interessantes particularidades sobre a atuação
do então presidente da FEB. Sendo vice-presidente a partir
de 1898, com a desencarnação de Bezerra, em 11 de
abril de 1900, Leopoldo Cirne assume a presidência da FEB.
De 1º a 3 de outubro de 1904,
a FEB comemorou o centenário de nascimento de Allan Kardec
e Cirne considera que a parte mais importante foi a reunião
de representantes de instituições dos estados, oportunidade
em que foi aprovado o documento “Bases de organização
espírita”, formulado pela diretoria da Federação,
e “o primeiro grande passo para a unificação
dos espíritas, dentro dos largos moldes de autonomia das
agremiações, consoante o sistema federativo, todas
vinculadas entre si e à Federação pela unidade
de vistas na difusão e cultivo da doutrina”, incluindo
várias recomendações. Outro destaque foi a
inauguração, no dia 10 de dezembro 1911, da sede da
FEB à Avenida Passos, no Rio de Janeiro. O autor faz interessante
apreciação: “o segredo da prosperidade incoercível
da Federação Espírita Brasileira, no período
de que nos estamos ocupando, abstração feita da poderosa
e benfazeja ação oculta, que foi a sua causa principal,
residiu no espírito de solidariedade e de fraternidade em
que se inspiraram, durante cerca de três lustros, os seus
diretores, estremes da mais leve sombra de personalismo.”
Em seguida aponta vários
problemas: a Escola de Médiuns, um desafio para a época
e que era visada pelos adversários espirituais; questiona
algumas mensagens atribuídas a Allan Kardec com colocações
que teriam infuências do médium; registra a “inexperiência
de alguns novos membros da diretoria”, ficando mais expostos
às sugestões do Espírito das trevas, “que
não podia tolerar por mais tempo o crescimento expansivo
da Federação”. Essas dissensões culminaram
na assembleia geral da FEB, no começo de 1914: “sucederam
as interpelações acerca da admissibilidade, sustentada
por uns, combatida por outros, das procurações que,
em número considerável, se encontravam em poder do
grupo dissidente, e logo a deflagração do tumulto,
o vozerio contraditório e exaltado, com a formação
de um molesto, intolerável ambiente, em que sentiam-se, campeando
dominadoras, as tenebrosas infuências do invisível.
(...) final do pleito, cujo resultado foi o que era de esperar-se.
A manobra reacionária reconstituída
com exclusão do antigo presidente e dos companheiros com
ele solidários na orientação doutrinária
que vinha imprimindo aos trabalhos da Sociedade. (...) Até
aos dois anos precedentes, ou melhor, enquanto a Federação
foi uma sociedade pequenina e pobre, como tal modestamente instalada,
a eleição anual de sua diretoria era uma formalidade
sumaríssima, perfeitamente nos moldes das comunidades cristãs.”
Leopoldo Cirne se refere ao seu alijamento da presidência
da FEB e se manteve afastado da entidade até sua desencarnação,
mantendo palestras em outras instituições e redação
de livros.
Distanciado da FEB, mas atento,
Cirne se refere a um fato posterior: “a criação
de uma assembleia deliberativa composta de 25 membros eleitos, de
três em três anos, pela assembleia geral dos sócios,
ficando a cargo daquele reduzido colégio eleitoral a nomeação
da diretoria. Uma espécie de eleição do papa
pelo sacro colégio dos cardeais (...) são, na aparência,
eleitos, mas de fato apenas aprovados pelos sócios da Federação,
que se limitam a homologar a escolha dos 25 nomes previamente feita
pela diretoria em exercício.”
O ex-presidente critica a apatia
da Federação, que se omite em muitas questões
sociais, inclusive durante a reforma parcial da Constituição
do Brasil, quando se discutia o ensino leigo e nas comemorações
alusivas ao centenário da independência do Brasil:
“alheia a sua missão de orientadora e coordenadora
das atividades militantes no Brasil e expondo-se a alienar simpatias
e ver desfavoravelmente interpretado o seu mutismo (...).”
Por essas razões surgiu em 1926 o movimento da “Constituinte
Espírita Nacional” – que também não
contou com o apoio de Cirne –, criando-se a Liga Espírita
do Brasil.
Leopoldo Cirne chama a atenção
de que havia “entre os espíritas uma dupla corrente
de opiniões, que se veem de há muito acentuando, a
propósito da revelação, contemporânea
de Allan Kardec, recebida, igualmente na França (...)”
(J. B. Roustaing). Sobre esta obra opina: “Tese arrojada,
porventura desenvolvida com excessiva abundância de pormenores
que, em certos casos, a tornam aparentemente inverossímil
e, a poder de repetições fastidiosas, tem suscitado,
como dizemos, apologistas e opositores, nem sempre dotados da conveniente
serenidade para evitar antagonismos radicais (...) reconhecendo
embora a profundeza de muitos de seus ensinamentos, a par da magnitude
do plano, verdadeiramente original, em que foi plasmada, não
temos dúvida em admitir que a forma expositiva, recheada
de fatigantes repetições, denuncia uma suspeita colaboração
oculta.
Que há de admirar em que
verdades provindas da transmissão mediúnica, a ousada
e não percebida in?uência do Anticristo, empenhado
sempre em deturpá-las?” Lembra que entre os membros
da novel Liga Espírita, a referida obra não é
aceita. Sobre esse cenário opina: “não têm
infelizmente entendido os orientadores da Federação,
em sua nova fase.”
O ex-presidente da FEB discorda
da criação em Paris de uma Federação
Espírita Internacional, com o apoio da FEB. Cirne defende
a ideia de uma Federação Universal “sempre que
reunidos os representantes daquelas em assembleias ou congressos
internacionais, para troca de ideias e adoção de medidas
tendentes ao desenvolvimento da doutrina e consolidação
dos laços de fraternidade entre todos.”
Nos últimos capítulos
do livro Anticristo. Senhor do Mundo, comenta as obras de Allan
Kardec, os cuidados do Codificador, e considera “admirável
trilogia didática um monumento de sabedoria próprio
a orientar” o conjunto das obras O Livro dos Espíritos,
O Livro dos Médiuns e O Evangelho Segundo o
Espiritismo. Em seguida, defendendo os princípios espíritas,
analisa a Teosofia e o Esoterismo.
Entre outras considerações
finais: “Exageramos? – Percorrei a história de
todos os séculos e nos sucessos, coletivos e individuais,
em que haja violação do preceito básico formulado
pelo Cristo – ‘amai-vos uns aos outros’ –
encontrareis a intervenção reacionária do Anticristo.
(...) Quanto tempo será necessário à consumação
dessa gloriosa metamorfose? O milênio, de que nos fala o Apocalipse?
– Não importa o prazo. (...) a nossa humanidade, liberta
finalmente do poder das trevas, raiará cedo ou tarde a aurora
de sua definitiva redenção.”
Tela do pintor Napoleão Figueiredo,
gentilmente cedida por Oceano Vieira de Melo,
retrata o ex-presidente da FEB Leopoldo Cirne
Sobre Leopoldo Cirne
Leopoldo Cirne foi vice-presidente da FEB (1898-1900) na gestão
de Bezerra de Menezes, sucedendo-o como presidente (1900-1914).
Renovou os Estatutos da FEB (1902) instituindo o estudo das obras
completas de Allan Kardec como referência básica da
instituição. Em 1904 promoveu o I Congresso Espírita,
evocativo do centenário do nascimento de Kardec, com a participação
de mais de duas mil pessoas. Esforçou-se para implantar a
“Escola de Médiuns”; iniciou a promoção
do Esperanto na FEB e junto ao movimento espírita (1909);
em sua gestão foi construída e inaugurada a sede própria
da FEB (1911). Em virtude de resistências dentro da FEB, principalmente
do setor de “Assistência aos Necessitados”, que
não concordavam com as inovações propostas,
Cirne perdeu a eleição para a presidência em
1914, retirando-se da instituição.
Foi conferencista; autor de livros: Memórias históricas
do Espiritismo; Doutrina e Prática do Espiritismo;
Anticristo, Senhor do Mundo; A personalidade de Jesus
(publicação post mortem pela FEB). Tradutor das obras
de Léon Denis: No invisível e Cristianismo e Espiritismo.
Há várias mensagens do espírito Leopoldo Cirne,
em obras editadas pela FEB, pelo médium Chico Xavier: Instruções
psicofônicas; um dos personagens em Voltei, ao lado de Bezerra
de Menezes, Inácio Bittencourt e Antônio Luís
Sayão e, pela psicografia de Waldo Vieira, na obra Seareiros
de volta.