
Na tarde quente de fim de verão,
Contardo Calligaris está em casa. Sim, em meio ao encontro
de cerca de duas horas - um tempo exíguo com esse psicanalista
disposto à conversa -, ele, que nasceu na Itália e viveu
em Genebra, Paris, Nova York, São Paulo e mais alguns tantos
lugares, se dá conta de que o local onde fica o Tatini, restaurante
que escolheu para abrigar este encontro, é provavelmente o
código postal mais longevo que já teve. "Esse é
o endereço que eu tenho por mais tempo, incluindo a casa dos
meus pais; é de longe o endereço mais estável
na minha vida", conta. "São Paulo acabou tendo uma
função especial e este lugar - aliás, este restaurante
- já existia em 1986. Então é simbólico,
digamos assim, sem dúvida." No prédio anexo ao
restaurante está seu consultório e durante um bom tempo
também o lugar onde ele morou na capital paulista. Hoje, divide-se
entre Rio e São Paulo, por causa do casamento com a atriz Mônica
Torres.
O cardápio e o caloroso sotaque italiano de
Mário, o dono do Tatini, poderiam levar a uma leitura apressada
de que a escolha do local se deve ao fato de que o psicanalista é
um homem que busca manter suas raízes. Não é
tão simples. Se aos 4 anos ele pediu para falar inglês,
aos 14 fugiu para Londres atrás de uma canadense, mais tarde
se casou com uma americana e depois esteve em tantos lugares diferentes,
não foi, talvez, por acaso. "Meu pai era um resistente
antifascista, havia uma certa dificuldade, um conflito na minha relação
com a Itália, que quando eu nasci já não era
fascista, mas era um país que durante muitos anos tinha perseguido
o meu pai, tentado matá-lo. Nasci e cresci num conflito grande
com minha própria identidade nacional", lembra ele, que
ficou sem ir ao país natal por anos na década de 90
depois da morte dos pais.
A relação, porém, melhorou, não
sem alguma ajuda da ficção. Seu primeiro romance, "O
Conto do Amor", também não por acaso, é
quase todo passado em Florença e arredores. "Sim, sem
dúvida esse livro foi um dos efeitos - eu não sei, aliás,
qual é a causa, qual é o efeito -, mas ele certamente
é como a minha reconciliação com a Itália",
reconhece.
A ficção, diz ele, tem também esse propósito.
"Uma ficção se constrói a partir de pequenos
elementos da sua vida, sobretudo aqueles que você não
conseguiu costurar direito, porque a ficção serve para
isso. Você costura as coisas, de uma maneira ou outra, dá
um destino." E assim nasceu seu livro mais recente, "A Mulher
de Vermelho e Branco".
"Tinha coisas das quais eu estava a fim de falar, algumas experiências
suspensas, enigmáticas. Tive mesmo uma paciente que se vestia
de vermelho e branco e eu ficava me perguntando se era louca ou não
durante certo tempo - mas a história não tem nada a
ver [com a do livro]. Eu tive um paciente que foi assassinado e nessa
ocasião eu colaborei com a com a polícia. E também
tive, de fato, uma relação com uma refugiada vietnamita
nos anos 70, em Paris, então certamente aquela lembrança
me inspirou", conta o criador de Carlo Antonini, personagem central
e - mais uma vez: nenhum acaso aqui - psicanalista dos dois primeiros
romances publicados e de um terceiro que está sendo gestado.
"Será sobre a infância
dele, que servirá para falar da minha, que aconteceu em Milão",
diz. Nostalgia? Nesse caso, é uma consequência do processo,
mas sem traumas. "Fiz um trabalho de revisitar as locações
bastante detalhado, e esses lugares que eu revisito têm uma
dimensão de nostalgia, sim, mas que nesse sentido é
prazerosa, a nostalgia é um afeto muito legal." Foi nessa
infância italiana que seu gosto pela arte e pelas coisas "interessantes"
da vida começou a ser forjado. Com uma casa de veraneio em
Veneza e sendo o pai ligado à superintendência das Belas-Artes
da Lombardia, Calligaris passou a infância imerso nesse mundo.
"A relação com a arte?", retruca ele à
pergunta da repórter. "Perguntar isso a um italiano de
classe média alta é meio bizarro", brinca. Reconhecer
um móvel ou um quadro europeu, diz ele, pela escola ou o século,
é algo que ele não sabe como aprendeu. "Reconheço
um quadro, se é de escola sienesa, florentina ou veneziana
de maneira automática; se você me perguntar quem me ensinou,
eu não saberia dizer." Faz parte da bagagem.
Em meio a tantas viagens e domicílios
distintos, ele acabou se desfazendo das obras mais antigas e hoje
se dedica mais aos artistas brasileiros. "As coisas que eu tinha
mais antigas, até o século XIX, eu acabei vendendo.
O que tenho hoje são obras contemporâneas, quase todas
brasileiras", diz ele, que é um frequentador de galerias.
A contemporaneidade, aliás,
é algo, logo se percebe, caro ao psicanalista. Embora não
veja problemas em esbarrar num certo tipo de nostalgia, há
outros que podem ser menos inofensivos. Se o assunto são as
angústias e dilemas da sociedade atual, ele costuma se apressar
a dizer que "evita culpar os tempos". "Quando a gente
diz sinal dos tempos, está sempre sendo hipocritamente trágico,
como se falasse 'ah, meu deus, para onde fomos?'. Acho que fomos para
um lugar imensamente melhor que os lugares nos quais já estivemos
- e estou falando como espécie -; então, não
tenho nostalgia de um passado que não vivi nem do passado que
eu vivi. É muito melhor ter celular, internet."
Isso não quer dizer que não
tenhamos questões próprias de nossa época. A
medicalização da tristeza e das angústias, tema
já abordado pelo colunista, não estariam entre elas?
Porque os antidepressivos e ansiolíticos se tornaram tão
populares? "O aspecto pior da medicação talvez
não sejam os remédios em si, mas seja o fato de que
acabamos tendo uma leitura médica da experiência, tomando
ou não remédio. Que se medique a depressão não
teria problema nenhum, agora que a tristeza, o luto, a dor não
sejam mais experiências e consideradas como patologias, isso
eu acho uma loucura", afirma.
Mas no pano de fundo da questão está algo que aparece
no cerne desse mal-estar moderno e é o que Calligaris chama
de uma "herança de 200 anos de higienismo", algo
que pode ser mais poderoso até mesmo que crenças religiosas.
"A medicina se tornou a disciplina que nos diz como viver muito
mais que a religião ou qualquer outra coisa. Tem muito mais
pessoas que correm no Ibirapuera ou numa esteira a cada dia do que
pessoas que vão para a missa, pelo menos na classe A e B. É
a ideia de que você tem que perseguir a sua saúde e as
maneiras de fazer isso. O Ocidente inteiro está composto de
pessoas que se preocupam com o que comem, ou quantas vezes por dia
defecam, ou se preocupam com o 'check-up' anual. A medicina preventiva
também é uma forma de controle das vidas."
É, enfim, uma obsessão
em evitar a morte - essa também, aliás, outra ideia
higienista. "Essa é uma ideia absolutamente moderna, do
século XIX. Qualquer homem do século XVIII pensa que
os valores são aquelas coisas pelas quais vale a pena morrer.
Então, tem uma mudança: de repente qualquer coisa vale
a pena com a condição que nos permita sobreviver."
Embora visivelmente não seja adepto da introdução
de remédios nos tratamentos - ele não perde a oportunidade
de citar, por exemplo, que os antidepressivos têm uma eficácia
apenas em 38% dos casos, enquanto simples placebos funcionam em 18%
das vezes -, Calligaris descreve como quase infantil hoje a espécie
de militância que tinha, como jovem psicanalista, contra o uso
de psicotrópicos. Reconhece que muitos de seus pacientes se
medicam - porque querem se medicar - e nesses casos prefere ser colaborativo
e até indicar um psiquiatra que possa prescrever o que for
melhor para o caso. A questão, insiste, é que o uso
de remédios se torna uma espécie de emaranhado, no qual
se começa tomando uma fluoxetina, mas aí se fica sem
sono à noite, então se toma um ansiolítico, que
pode engordar, então se acrescenta algo para o apetite e daí
por diante até se chegar a um verdadeiro coquetel de medicamentos.
Não tenho a pretensão, ainda
menos como terapeuta,
de curar o que tem de existencial na neurose ou no sofrimento
Mas, ironia estranha, por que será
que justamente neste mundo em que a longevidade se torna um valor
tão primordial, não é raro que as pessoas se
refiram aos antidepressivos e aos ansiolíticos como remédios
que funcionam para aguentar a vida, ou a pressão, o estresse
que a vida moderna estaria embutindo no cotidiano? A vida moderna,
diz ele, não é a vilã, e os medicamentos não
serão a solução. "Se quer resolver mesmo
o problema da vida se drogando, então que se use uma droga
que funcione, heroína, crack, é melhor levar a sério
se o objetivo é 'aguentar' a vida com drogas. Há coisas
mais eficientes que fluoxetina." Ironia à parte, o antídoto
mesmo para a questão é outro: coragem. "Eu acho
que a gente deveria é ser mais corajoso. Em relação
às experiências em geral, se lançar mais. É
aquela coisa que a gente tenta ensinar às crianças:
que elas deveriam experimentar o que elas nunca comeram."
O que ele observa, porém, sobretudo
na experiência do consultório com jovens, é que
temos visto muito o contrário disso. Uma sensação
de que se sonha pequeno e de que o espírito de aventura diminuiu.
"Me acontece com frequência encontrar um adolescente de
15, 16 anos que, quando você questiona o que ele quer do futuro,
a resposta é 'tipo eu tava pensando em, sei lá, fazer
um concurso público da Receita Federal, o salário é
bom, tem aposentadoria garantida, estabilidade'. São preocupações
que seriam bizarras para um adolescente da minha geração.
Talvez a gente tivesse também sonhos totalmente fajutos que
não iam funcionar, mas a vida também é feita
de sonhos desse tipo: ser oficial na legião estrangeira, trabalhar
com leprosos, ou nem necessariamente o altruísmo, pode ser
qualquer coisa." E a vontade de arriscar pouco hoje não
se limita à profissão, abrange também os relacionamentos
desses jovens. "Eu fugi de casa porque me apaixonei. Os meus
pacientes adolescentes eu vejo que têm um problema em ter uma
namorada em Jundiaí [interior de São Paulo] porque é
complicado."
Calligaris não se arrisca
a uma discussão sobre as causas do que tem levado tanta gente
a um apetite menor pelas experiências e a tanto medo, ansiedade
e angústia. Mas admite que a liberdade que experimentamos pode
ter parte nisso. "O projeto da modernidade que nasceu no começo
do século XIX, depois de longa gestação, deu
à luz um projeto individualista, sendo muito claro, em negrito,
que individualista não significa egoísta nem nada moralmente
pejorativo, mas sim que somos uma das pouquíssimas culturas
dos últimos 200 anos para as quais o indivíduo é
um valor superior à comunidade, no sentido de que é
você quem vai decidir o que é certo ou errado no seu
íntimo e isso vem antes das tradições. É
o fato, por exemplo, de casar com alguém que escolhemos, em
vez de deixar que as famílias combinem segundo interesses.
Essa revolução implica um envolvimento subjetivo sofrido
o tempo inteiro."
Há quem atribua a toda essa liberdade o tédio
e a depressão que assombram os nossos tempos. "É
possível, mas quem disse que a experiência da liberdade
deveria ser hipomaníaca ou jocosa? Não. É também
uma experiência de perda, de separação, de uma
certa solidão quase existencial, isso faz parte da condição
humana. Não tenho a pretensão, ainda menos como terapeuta,
de curar o que tem de existencial na neurose ou no sofrimento."
Eu pratico com esforço,
no melhor sentido dessa palavra, a tentativa de não perder
a dimensão de prazer, inclusive sensorial, na vida de cada
dia
Já a busca obsessiva por um
estado de permanente felicidade, outra suspeita de sempre, não
ganha muito crédito nessa história. O psicanalista,
aliás, tem outra desconfiança, a de que essa obsessão
não exista de fato e seja mais um conceito vendido aos indivíduos
por indústrias como a cultural e a farmacêutica do que
algo que eles genuinamente almejam. "É raro receber alguém
no consultório que diga que veio me ver porque quer ser feliz.
Se alguém responde isso numa pesquisa, acho que grande parte
da resposta é produzida pela expectativa. O cara vai dizer
exatamente o que ele imagina que se quer ouvir. Não estou promovendo
isso como valor, mas acho mesmo que as pessoas querem ter uma vida
interessante, não querem ser felizes."
Se a busca da felicidade for uma espécie de mito, outro seria
a angústia de descobrir quais são os nossos reais desejos,
esta, sim, bastante comum como motivação da ida ao divã,
ele reconhece. A resposta, no entanto, pode decepcionar. "Eu
acho que não existe o que a gente realmente deseja, acho até
que a psicanálise involuntariamente vendeu essa ideia, mas
não está escrito em algum lugar occipital do seu cérebro,
em três neurônios, qual é o seu real desejo, aquele
que você precisaria encontrar para depois realizar. Tudo bem,
a gente recebe esse pedido, mas é totalmente fajuto. O que
existe é o exercício do desejo que se dá em situações
complexas na interação com o mundo. Então, dizer
'ah, eu me tornei jornalista, na verdade, porque tinha um amigo do
meu pai e poderia ter feito outra coisa, mas tive essa oportunidade'.
É assim mesmo, o desejo é assim que nasce; não
é: 'ai, meu deus, qual é o meu desejo?'"
Nas entrelinhas da conversa, a sensação
que sobressai é a de que ele não gosta de mitificações
ou de cobrir de glamour grandes questões e filosofias. Bandeiras
e moralismos não têm vez no seu discurso, que busca simplificar
mais e julgar menos. Ele não é de propor muitas discussões,
mas não escapa das perguntas, nas quais às vezes viaja
de um tema a outro e às vezes diz: "Bem, me perdi um pouco,
mas voltando".
Entre uma fatia e outra de vitelo, ele relaciona, a meu pedido, seus
prazeres, e começa pelo próprio prato. A lista segue
com lençóis de fio egípcio, as amizades, o sexo.
"Eu pratico com bastante esforço, no melhor sentido dessa
palavra, a tentativa de não perder a dimensão de prazer,
inclusive sensorial, na vida de cada dia. Me considero, e não
acho que seja palavrão, hedonista numa época muito pouco
assim. Acho que estamos num dos momentos menos hedonistas da história
do Ocidente", lamenta. "Não vou dizer que, ah é
legal, vamos todos voltar a fumar. Mas dizer tipo: hoje não
vou transar porque às 5h30 vou correr, porque mais tarde eu
vou trabalhar e... Isso é bizarro."
O sexo, esse prazer tão disponível, continua sendo um
tabu. Talvez não tenha sido à toa que uma das colunas
de maior repercussão do psicanalista saiu em 2006, quando explodiu
na internet o vídeo em que a modelo e apresentadora Daniela
Cicarelli transava na praia. O texto dele mostrava surpresa pela polêmica
com o que considerava cenas de amor, absolutamente normais. Afinal
quantas pessoas já não fizeram sexo na praia? O retorno
sobre essa visão bem dissonante do tom escandalizado com que
o vídeo foi tratado foi muito positivo e - como sempre, ele
revela - bem maior entre as leitoras. São episódios
como esse que revelam o quão diferente é a realidade
da sexualidade no Brasil da imagem que se tem dela.
Ele, que clinica em diferentes idiomas e países, vislumbra
diferenças nas angústias e visões de europeus
e americanos (do Sul e do Norte) que se manifestam também na
maneira de lidar com a sexualidade. "Na Europa, é muito
melhor nesse ponto de vista. No Brasil, tenho a impressão de
que o mito da sexualidade tem muito mais a ver com uma certa sensualidade
de movimento, da posição do corpo, talvez a cultura
de praia, mas isso não faz com que seja uma cultura erótica.
É uma cultura sensual, eventualmente, mas o erotismo começa
com fantasias e, se possível, com fantasias complexas. Então
tem muito mais erotismo no Bois de Boulogne à meia-noite do
que em toda Sapucaí durante os dois dias de Carnaval",
diz ele, ressaltando para si mesmo que essa é uma boa frase
para "colocar no Twitter". O microblog, conta, aumentou
muito a audiência - ou pelo menos a percepção
dela - das colunas semanais. Coisas dos tempos de hoje, que não
existiam na juventude do psicanalista, época em que teve aulas
com Jean Piaget e conviveu com Jacques Lacan e Roland Barthes (a quem
ele adorava). Diante de todo esse histórico de vivências
e convivências, é invejável o esforço de,
aos 63 anos, não cair na tentação de pensar que
bons tempos eram aqueles.
Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três
Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?',
com Maria Homem (Papirus)