Silvio
Seno Chibeni
> As acepções da palavra 'Espiritismo' e
a preservação doutrinária
Série: -> Questões acerca da natureza do Espiritismo
- I
A série de artigos
que ora se inicia reproduz, com algumas adaptações
formais e de conteúdo, entrevista concedida por mim ao GEAE
(Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na
divulgação do Espiritismo pela Internet. As questões
originaram-se em debates do Grupo, tendo sido reunidas por Carlos
Alberto Iglesia Bernardo.[1]
Os dois primeiros artigos
versam sobre certos problemas terminológicos, o terceiro
sobre a religião espírita e os quatro restantes sobre
vários aspectos das relações entre o Espiritismo
e a ciência. A exposição em forma de perguntas
e respostas será mantida, por motivos didáticos.
Questão:
Existe um problema de significado de palavras que tem gerado alguma
confusão até mesmo em meios espíritas. Trata-se
da interpretação da própria palavra ‘Espiritismo’.
Há os que interpretam a palavra em sentido amplo, como significando
o estudo dos fenômenos mediúnicos e das comunicações
com os Espíritos, sem referência necessária
à codificação de Kardec. Outros são
da opinião de que a palavra ‘Espiritismo’ refere-se
apenas à doutrina codificada por Allan Kardec, empregando-se
para outras noções expressões como ‘novo
espiritualismo’ ou ‘espiritualismo moderno’, ‘umbanda’,
‘candomblé’, etc. Neste caso, as expressões
‘Espiritismo kardecista’ e ‘Espiritismo cristão’
serviriam apenas para dar ênfase a idéias embutidas
na própria palavra ‘Espiritismo’, sendo pois
redundantes. Como vê essa questão?
Resposta:
A palavra ‘Espiritismo’ tem realmente sido utilizada
com acepções bastante diversas. Trata-se de um fato
comum em toda linguagem natural; somente em linguagens artificiais,
como certas linguagens da lógica e da matemática,
consegue-se evitar a polissemia.[2] As
palavras, quer escritas, quer faladas, são símbolos
com os quais representamos idéias ou conceitos. Essa relação
de representação é arbitrária, ou seja,
associamos tal palavra a tal idéia de forma inteiramente
livre e convencional.
A necessidade de comunicação, que constitui o principal
objetivo da linguagem, recomenda-nos, no entanto, entrarmos em acordo
com os outros integrantes de nossa comunidade lingüística
acerca dessas convenções, para se evitarem desentendimentos
semânticos. Nas linguagens ordinárias tal acordo estabelece-se
de forma natural e muitas vezes inconsciente, possibilitando um
razoável grau de comunicação, pelo menos quanto
às noções do dia-a-dia. Quando surgem noções
novas e complexas, porém, costuma ocorrer um período
de indefinição ou confusão, que pode se prolongar
muito, se não tomarmos as providências cabíveis,
para que todos utilizem as mesmas palavras para designá-las.
Quando Allan Kardec deu início a uma nova abordagem dos fenômenos
mediúnicos e anímicos – que sempre existiram,
naturalmente –, preocupou-se com esse ponto. Percebendo que
o desenvolvimento de uma nova teoria tipicamente envolve a criação
de novos conceitos, cunhou diversos termos, nos casos em que se
fazia absolutamente necessário, como ‘Espiritismo’,
‘espírita’, ‘perispírito’,
‘mediunidade’ e outros tantos, utilizados, por exemplo,
para designar diversas noções da teoria dos processos
mediúnicos. Fez isso de forma deliberada e explícita,
em diversas de suas obras. Além desses neologismos, a teoria
espírita exigiu a alteração dos significados
de muitas palavras já em uso, como é o caso de ‘Deus’,
‘anjo’, ‘demônio’, ‘céu’,
‘inferno’, ‘bem’, ‘mal’, etc.
Nesses casos também Kardec indicou claramente as novas acepções
dadas aos vocábulos.
Não obstante todas as precauções tomadas por
Kardec, é inegável que muitas das palavras cuja acepção
ele procurou fixar a bem da inteligibilidade vêm sofrendo
desvios de significado por vezes bastante grandes, como se ressalta
corretamente na questão, relativamente à própria
palavra ‘Espiritismo’. Fatos desse gênero ocorrem
também nas diversas disciplinas acadêmicas, porém
em menor escala, dadas as peculiaridades das correspondentes comunidades
lingüísticas, formadas por indivíduos que passaram
por longo e rigoroso (idealmente!) processo de formação.
No caso do Espiritismo, porém, não há e nem
deve haver uma formação oficial dos espíritas.
A preservação doutrinária e, por conseguinte,
lingüística, do Espiritismo fica, assim, na dependência
do empenho de cada pessoa e de cada instituição (centro,
federação, editora, associação) em estudar
profundamente os textos básicos, mantendo-os constantemente
como referência ou paradigma, ainda que complementações
e ajustes periféricos se façam eventualmente necessários.
[3]
Ora, é isso o que pouco se vê no movimento espírita
atualmente. Nem todos lêem; poucos estudam; raros compreendem.
Faltam reuniões de estudo de Espiritismo em muitos centros.
Editoras, revistas e jornais proliferam em grande número,
muitas vezes publicando sem critérios doutrinários
rigorosos. O resultado não poderia ser outro: confusões,
desorientações e disputas muito freqüentes.
O que fazer? Um pouco de reflexão mostra que os problemas
de linguagem do movimento espírita não podem ser resolvidos
com imposições deste ou daquele teor, ou de apelo
a dicionários. Os filósofos contemporâneos têm
ressaltado que o conteúdo semântico do vocabulário
de uma disciplina pode ser delimitado por meio de definições
explícitas, mas apenas parcial e preliminarmente. O que confere
significado completo e estável às palavras é
sua utilização em corpos teóricos coerentes
e com potencial elucidativo de uma determinada gama de fenômenos.
Considere-se, por comparação, as definições
de ‘massa’, ‘força impressa’, ‘inércia’,
etc. que Newton fez figurar no início de
sua monumental obra Princípios Matemáticos da
Filosofia Natural (1687). É claro que elas servem para
indicar algo, porém se forem isoladas da teoria mecânica
desenvolvida no restante do livro perderão inteligibilidade
e conteúdo cognitivo. Tomando agora um exemplo negativo,
analisem-se as propostas de investigação que surgiram
com a pretensão de substituir o Espiritismo, como a metapsíquica
e a parapsicologia. À falta de teorias completas e coerentes
– pois que não as têm – tais disciplinas
viram-se e ainda vêem-se a braços com notória
proliferação terminológica que, não
obstante sua complexidade, pouco parece contribuir para a veiculação
de conceitos inteligíveis, com conteúdo empírico
(isto é, que expressem a realidade dos fatos) e fertilidade
heurística (ou seja, que contribuam para o desenvolvimento
do conhecimento).
No caso do Espiritismo, Kardec e alguns dos seus continuadores mais
lúcidos trataram de desenvolver o arcabouço lingüístico
simultaneamente com uma teoria dotada de todas as principais características
de uma boa teoria científica, e na medida estrita da necessidade
de expressão simbólica dos conceitos envolvidos. Desse
modo, para o estudioso atento e esclarecido do Espiritismo não
há lugar para dúvidas e mal-entendidos acerca das
palavras, noções e princípios fundamentais.
As confusões que se notam nos meios espíritas ou semi-espíritas
não provêm de falhas estruturais ou conceituais no
programa de pesquisa espírita iniciado por Kardec, mas da
falta de preparo e de estudo sério, conforme já ressaltei.
O remédio é, pois, único e fácil de
encontrar, mas de difícil aplicação. Requer-se
uma mudança de atitude intelectual e prática, que
começa pelo reconhecimento do valor paradigmático
das realizações de Kardec, passa pela disposição
de colocar a doutrina acima de vaidosas concepções
pessoais e falsas necessidades de modernização, e
culmina com a instituição de uma política sistemática
e pertinaz de valorização do estudo e do rigor doutrinário.
(É justo registrar aqui que é ao longo dessas linhas
que se vem pautando a atuação de diversos indivíduos
e instituições respeitáveis no movimento espírita,
do tempo de Kardec aos nossos dias, cabendo destacar, por seu vulto
e ancianidade, as contribuições da Federação
Espírita Brasileira.)
Para finalizar, retomo de forma mais tópica a questão
formulada. O bom senso indica que se deve reservar a palavra ‘Espiritismo’
para designar aquilo para que foi cunhada, ou seja, a doutrina,
teoria, paradigma, ou programa de pesquisa iniciado por Kardec.
Devemos notar que já na primeira edição do
Livro dos Espíritos (1857) Kardec traça a distinção
clara entre o espiritualismo e a doutrina espiritualista específica
cujos fundamentos essa obra estava lançando – o Espiritismo.
Dada a importância do assunto, Kardec aborda-o já no
primeiro parágrafo da Introdução. Quando essa
Introdução é reformulada e ampliada, na segunda
edição (1860), o trecho em questão é
mantido quase sem alteração, figurando ainda no parágrafo
inicial do livro, valendo a pena ser relido:
Para se designarem coisas novas
são precisos termos novos. Assim o exige a clareza da linguagem,
para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos
das mesmas palavras. Os vocábulos espiritual, espiritualista,
espiritualismo têm acepção bem definida.
Dar-lhes outra, para aplicá-los à doutrina dos Espíritos,
fora multiplicar as causas já numerosas de anfibologia.
Com efeito, o espiritismo é o oposto do materialismo. Quem
quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria,
é espiritualista. Não se segue daí,
porém, que creia na existência dos Espíritos
ou em suas comunicações com o mundo visível.
Em vez das palavras espiritual, espiritualismo, empregamos,
para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos
espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem
e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem
de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo
espiritualismo a acepção que lhe é própria.
Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo
tem por princípio as relações do mundo material
com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os
adeptos do Espiritismo serão os espíritas,
ou, se quiserem, os espiritistas.
Essas considerações
são de uma clareza impressionante. Agora se outras pessoas
utilizam a palavra ‘Espiritismo’ com acepções
diversas da original, para designar, por exemplo, o espiritualismo
ou o “novo espiritualismo”, ou seitas mediunistas afro-brasileiras,
não podemos obrigá-las a empregar outras palavras,
dado o respeito que devemos ter pela liberdade de expressão.
Notando, porém, que existe uma dependência da preservação
semântica de uma teoria relativamente à integridade
do próprio conteúdo da teoria, vemos que a única
medida eficaz que podemos tomar é a de zelar pela preservação
da teoria espírita e insistir no uso original do termo ‘Espiritismo’
(e cognatos) em todas as ocasiões que se nos deparem, fazendo
ver as diferenças doutrinárias existentes entre as
abordagens.
Há, ou podem ser criadas, palavras em número suficiente
para designar sem ambigüidade todas as teorias, doutrinas ou
seitas. Não creio que devamos apelar para artifícios
aparentemente mais fáceis, como o de acrescentar adjetivos
diversos (‘kardecista’, ‘cristão’,
etc.) ao termo ‘Espiritismo’. Se descuidarmos da preservação
doutrinária nas instituições e publicações,
tais expressões sofrerão, a seu turno, desvios de
significado, que terão de ser corrigidos novamente com mais
acréscimos, num processo sem fim certo.
* * *
No próximo
artigo desta série será analisada criticamente a proposta
de revisão de certos termos utilizados no Espiritismo, que alguns
alegam ser necessária para a “modernização”
da doutrina ou para sua “adaptação” ao progresso
da ciência.
Referências:
CHAGAS, A. P. “Polissemias no
Espiritismo”, Revista Internacional de Espiritismo, setembro de
1996, p. 247-49.
CHIBENI, S. S. “Por que Allan Kardec?” Reformador, abril
1986, p. 102-3.
––. “A excelência metodológica do Espiritismo”,
Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.
––. “O paradigma espírita”, Reformador,
junho de 1994, p. 176-80.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a
ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira,
s.d.
XAVIER Jr., A. L. “Algumas considerações oportunas
sobre a relação Espiritismo-Ciência”, Reformador,
agosto de 1995, p. 244-46.
Notas
[1] A entrevista foi publicada no Boletim n. 300
(edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser
encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE
a anuência para o aproveitamento do material nesta série
de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier
Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por
haver reunido as relevantes e oportunas questões. Nas transcrições
de trechos das obras clássicas de Allan Kardec utilizei as excelentes
traduções publicadas pela Federação Espírita
Brasileira, confrontando-as com os originais franceses.
[2] Um termo polissêmico é aquele que possui mais de um
significado. Para um exame de alguns termos que têm sido empregados
polissemicamente em textos espíritas, com efeitos negativos,
ver o artigo de Aécio P. Chagas, “Polissemias no Espiritismo”.
Consulte-se também o artigo de Ademir L. Xavier Jr. citado na
lista de referências bibliográficas.
[3] Para uma análise da noção de paradigma e de
seu papel na ciência e no Espiritismo, veja-se o artigo “O
paradigma espírita”, citado na lista de referências
bibliográficas. A solidez científica e filosófica
dos fundamentos lançados por Kardec é abordada no texto
“A excelência metodológica do Espiritismo”.
Consulte-se também, a esse respeito, o artigo “Por que
Allan Kardec?”.
Artigo publicado em Reformador, julho de 1999, pp. 212-214.
Fonte: http://portalespirito.com/geeu/as-acepcoes-da-palavra.htm
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