14/02/2007
Quem quer ser padre nos dias de hoje?
A Igreja Católica Apostólica
Romana está ficando sem candidatos a padre. Quem quer ser padre
nos dias de hoje e nesta era? Uma visita ao Seminário Saint Georgen,
em Frankfurt
Annette Bruhns
Der Spiegel
Uma passagem escura conduz ao Seminário Saint Georgen, da Igreja
Católica, uma estrutura arredondada de concreto exposto que poderia
abrigar uma sala de cinema 3-D. O corredor é azul-marinho e se
estreita à medida que se aproxima da igreja. No meio do caminho
há uma pesada porta de vidro dotada de uma grande maçaneta,
uma cruz de metal frio que precisa ser manipulada por todos que ali
ingressam.
São pouco mais de 18h. Os devotos chegam
para a missa da noite, uns poucos padres e freiras idosos, assim como
a mulher pequenina que toca o órgão. A congregação
é quase que inteiramente composta de seminaristas.
Os jovens candidatos ao sacerdócio passam pelo corredor em silêncio.
No que diz respeito à aparência, eles são iguais
aos rapazes leigos.
Os candidatos usam calças jeans baggy pretas
ou cáqui e camisas pólo ou blusas de moletom, com ou sem
logomarcas. Alguns têm o cabelo curtíssimo, outros trazem
a franja à altura dos cílios. Correntes e anéis
cintilam em alguns dos rapazes. Um deles usa uma pulseira de tecido
verde. Vários trazem no rosto a marca da barba que, feita pela
manhã, volta a crescer. E alguns exageraram na dose de colônia
pós-barba. Um odor de Hugo Boss toma conta do corredor.
A porta da igreja se abre à esquerda, mas os
homens fazem uma breve pausa antes de entrarem a fim de tocar a testa
com a mão molhada em água-benta. Com uma ligeira inclinação
em sinal de respeito em direção ao altar, cada um deles
pega um hinário vermelho em uma pilha e senta-se em um dos assentos
cinzas.
Essa igreja pequena e alongada foi construída
para homens como esses. Homens que renunciam a uma vida mundana com
o propósito de disseminar os Evangelhos. E que juraram levar
uma vida celibatária -passada em completa abstinência sexual.
Pouquíssima gente acredita que tais pessoas ainda
existam, mesmo na Igreja. Os católicos alemães estão
enfrentando uma escassez de rapazes com vocação para o
sacerdócio. Ser padre se tornou para eles a antítese do
moderno.
Faz frio na igreja. A organista entoa a liturgia com
uma voz clara como cristal. Um padre visitante da Polônia usando
uma casula verde celebra a missa. Para os 16 novos seminaristas que
vêm de toda a Alemanha, esta é apenas a segunda celebração
do gênero aqui em Frankfurt. A homilia gira em torno de São
Paulo, que escreveu à sua congregação: "Mas
quando quis Deus, que me separou do útero da minha mãe
e me chamou por meio da sua graça para revelar o seu Filho em
mim, que eu pregasse a sua existência entre os gentios, eu não
confabulei imediatamente com a carne e o sangue". Esses homens
foram escolhidos? Como é que eles sabem quem lhes fez o "chamado"?
Como sabem quais são as vozes que têm ouvido? No fim das
contas, será que eles apenas têm problemas de ordem sexual?
Nesta manhã de outono, um cheiro de terra invade
o quarto de Nils Schellhaas através da janela aberta do seu quarto.
O Seminário Saint Georgen situa-se em um amplo parque ao sul
do Rio Main. Além do seminário para os 37 aspirantes a
padre, o complexo conta com uma comunidade jesuíta e uma Universidade
de Filosofia e Teologia freqüentada por 430 alunos.
O homem de 24 anos de óculos de aros de chifre
e que tem covinhas no queixo e na face é um ex-protestante que
se converteu ao catolicismo. Quando Schellhaas dirigiu o seu carro até
aqui no início de setembro, os seus sentimentos eram confusos.
Será que o que o esperava era um nicho de homossexuais? Um clube
gay disfarçado, possivelmente envolvendo pedófilos -tal
como o Saint Pölten, na Áustria, onde um escândalo
levou ao fechamento temporário do seminário?
Uma cela com uma pia
Atualmente faz quatro meses que ele está aqui.
Ele tem calos nas mãos devido a todo o trabalho feito. Juntamente
com os outros recém-chegados, Schellhaas espalhou cascalho em
uma estrada e pintou uma casa de madeira. Juntos eles suaram e xingaram.
E os seus temores desapareceram. "Embora nenhum deles pareça
ter estado algum dia em um relacionamento, não há um só
que dê a impressão de ser gay".
Schellhaas, um homem de expressão honesta e dono
de uma voz alta e clara, deixou uma vida boa para trás. Estudante
universitário, ele morava em um apartamento de dois quartos em
Kiel, com uma vista para o Báltico - até recentemente,
com a namorada. Ele sente saudade do espaço. A sua atual residência,
"uma cela com uma pia", tem apenas 9,3 metros quadrados. Ele
não sente saudade da namorada.
"Ela me abandonou porque eu estava dedicando tempo
demais à minha fé e muito pouco tempo ao nosso relacionamento",
explica o aluno de teologia. A separação mudou a sua vida.
"Certa noite eu ia de bicicleta para casa e mal podia esperar para
ver se me sentiria sozinho no apartamento sem ela". Quando abriu
a porta, aconteceu um milagre. Ele se sentiu menos sozinho do que antes.
Schellhaas passa a mão pela barba rala e loura
no queixo. "Ter uma parceira é algo que exige tempo e devoção.
Sou uma pessoa que prospera na devoção a Deus, e se me
dedico a uma namorada, fico sem tempo para receber esse amor de Deus".
Vindo deste jovem devoto, tal raciocínio parece verossímil.
"Definitivamente sem celibato"
Schellhaas não herdou esse fervor religioso.
Os seus pais deixaram a igreja. Esse rapaz do Estado de Hesse encontrou
a primeira vez o Salvador quando, ainda garoto, viu crucifixos durante
uma viagem à Itália. O garoto de sete anos observou fascinado
as pessoas se ajoelhando diante das imagens de um homem pregado a uma
cruz.
Mais tarde, as manhãs de domingo em casa se tornaram estressantes:
ele queria assistir a programas religiosos na televisão, enquanto
o irmão preferia desenhos animados. Schellhaas obteve a sua primeira
bíblia em uma lixeira.
Na sétima série, ele ouviu o seu chamado.
"Até então, eu queria ser jornalista, um repórter
de televisão ou algo do gênero. Mas após uma discussão
com os meus pais, essa idéia surgiu subitamente na minha cabeça:
serei padre. À época, eu sequer sabia o significado disso".
Os seus pais - o pai de Schellhaas é vendedor
de programas de computação - esperavam que o filho acabasse
superando essa fase com a idade. Mas no segundo grau Schellhaas escolheu
latim como língua estrangeira e começou a freqüentar
a igreja. "Eles disseram que estava tudo bem, mas só se
eu me tornasse protestante. Assim, a coisa soaria menos estranha para
eles".
O protestantismo se revelou uma escolha conveniente.
"Embora eu nunca tenha gostado do atos excessivamente intelectualizado
e anti-ritualista da Igreja Luterana, naquela época eu definitivamente
não queria levar uma vida celibatária."
Ele decidiu se tornar um pastor luterano de cultura
católica. Já no seu primeiro semestre como estudante de
teologia na Universidade de Frankfurt ele rezava todas as noites com
os monges capuchinhos. Schellhaas mudou-se para a Universidade de Kiel
para ficar perto da namorada.
A decisão de se converter veio no verão
passado, em Erfurt. Schellhaas tinha ido ao monastério agostiniano
para desfiar o rosário. Quando deixava a capela, ele percebeu
a existência de um sinal na porta comemorando o dia em que Martinho
Lutero entrara neste mesmo monastério: 17 de julho de 1505 -
"500 anos atrás neste dia". Um sinal do céu:
era hora de colocar um fim à farsa, hora de o rebelde da igreja
dar meia-volta - e se dedicar ao catolicismo.
Assim que concluir a sua graduação em
teologia, Schellhaas participará de um seminário em Hamburgo
para o curso subsequente de um ano em práticas pastorais - e
a seguir será ordenado diácono. Se tudo correr bem, após
mais um ano ele será padre na Arquidiocese de Hamburgo.
Os pais de Schellhaas também parecem ter se tornado
religiosos. Originalmente casados apenas no civil, eles agora renovaram
os seus votos na igreja para celebrarem as bodas de prata. Durante a
viagem subsequente da família à Itália, Schellhaas
espiou secretamente a sua mãe acendendo uma vela em Assis, e
o seu pai fazendo o sinal da cruz.
Faz mais de um ano que Schellhaas não beija uma
mulher. Esse organista devoto diz: "Estou feliz por já ter
tido namoradas. Caso contrário, talvez algum dia procurasse saber
se alguém gostaria de ficar comigo".
Mas Schellhaas não jura que jamais voltará
a se apaixonar - e ele não é o único. Aqui, todos
dizem o mesmo, até mesmo o padre católico Stephan Kessler,
de 47 anos, o reitor do Seminário Saint Georgen - um homem grande
que usa uma uma camisa de flanela sem forma definida e que tem uma expressão
facial que lembra Mr. Bean. O escritório de Kessler é
espaçoso e confortável. Há ícones nas paredes
e um aroma de café fresco e de biscoitos se espalha pelo ar.
O reitor é famoso pelos seus biscoitos.
Kessler é um homem tagarela cuja linguagem é
temperada por mais que latinismos. "É claro que os padres
também se apaixonam", diz o jesuíta. "Essa foi
a causa efficiens para diversos seminaristas para os quais eu mostrei
a porta da rua - e que às vezes foram recebidos de volta de braços
abertos".
Segundo Kessler, todos eles precisam aprender a "integrar"
a sexualidade e as emoções com o modo de vida celibatário.
Ele próprio também já se apaixonou, quando era
um capelão com pouco mais de 30 anos. Atualmente o ex-objeto
dos seus desejos secretos é uma mãe de três filhos.
Kessler é amigo dela e do marido.
Resistindo à tentação
A abstinência é um sacrifício que
uma pessoa faz a Deus, assim como Jesus Cristo morrendo na cruz para
salvar a humanidade? O padre repele rapidamente tal idéia. "Ninguém
vai muito longe com uma mentalidade de sacrifício. Este modo
de vida não significa um sacrifício maior do que a interação
responsável com um parceiro em um relacionamento. A pessoa casada
às vezes também se apaixona, e ela precisa resistir à
tentação."
Todos os alunos do Seminário Saint Georgen ouviram
essa argumentação - de que o celibato não é
mais difícil que a fidelidade conjugal. Kessler fala enquanto
as mesas são limpas após a refeição comunitária.
A sala de jantar é um local convidativo para as reuniões.
Mais do que um mero refeitório, ela tem mais em comum com uma
cafeteria de um albergue da juventude. Os estudantes em volta prestam
atenção a cada palavra de Kessler. O padre diz como, recentemente,
a sua fé na ressurreição o abandonou após
30 dias de um retiro em silêncio. Ele pensou: "O.k. É
isso. É hora de procurar um novo emprego". Durante meses
ele lutou com a sua consciência - e foi então que conheceu
um monge que o ajudou a superar as dúvidas.
Um rapaz muito jovem e bonito se destaca no grupo. Um
pouco antes ele estava reclamando de que os corredores longos e altos
do seminário, nos quais cada passo ecoa, fazem com que sinta
que está na Escola Hogwarts, de Harry Potter. Tendo Albus Dumbledore
como reitor. Agora o rapaz está mais perto, os seus ombros inclinados
para frente, os olhos verdes luminosos ardendo em concentração.
Lapsos de fé, questões referentes ao celibato - esses
são assuntos intrigantes!
Seria esse o caminho certo para alguém como ele,
que sempre se enxergou como um "homem de família?".
O rapaz de 20 anos veio de um ambiente protegido. Ele foi criado como
católico e tem dois irmãos. Estudante talentoso, o rapaz
decidiu se tornar professor de religião. Mas quando confessou
ao pai, um carpinteiro, que o que realmente queria ser era padre, foi
surpreendido pela resposta: "Sempre soube disso", disse o
pai.
Todas as árvores no Seminário Saint Georgen
têm placas com nomes em alemão e latim. Christian Fahl
aguarda do lado de fora, entre carvalhos, freixos e faias. O rapaz de
28 anos está radiante. Na sua blusa de moletom branco há
a inscrição "Champion". A pele de Fahl tem a
mesma tonalidade da camisa, e não lhe confere uma aparência
saudável. Mas todo o estudo deu resultado: o seminarista foi
aprovado na prova de história da igreja com menção
honrosa.
Sempre ser feliz
"Agora posso começar o meu quarto semestre",
diz Fahl. "E ficarei muito feliz por isto!". O rapaz está
exultante, com um sorriso de orelha a orelha. Ele tem sido feliz durante
toda a vida. Fosse como membro do coral infantil, como estudante ou
como caixa de banco. Fahl sempre foi feliz.
O trabalho com a juventude o atrai sobremaneira. "Me
conscientizei da minha vocação porque muitos jovens me
procuravam com questões", conta ele.
Mas talvez ele não tivesse outra escolha. Fahl
foi presidente da classe na escola, porta-voz da juventude no conselho
paroquial, diretor regional da Organização da Juventude
Católica Hochtaunus. Ele integrou o comitê diocesano, o
conselho editorial do jornal da paróquia, o comitê religioso
Uma Palavra e o "Círculo da Casa Carismática".
Fahl ingressou no Seminário Saint Georgen sem
ser seminarista. Após trabalhar cinco anos como caixa de banco,
ele quis primeiro dar o próximo passo para testar o seu sentido
de vocação. Além do mais, ele percebeu que, com
o seu grau de comprometimento com a comunidade e a igreja, restava-lhe
pouco tempo para uma namorada. "A contemplação era
algo muito importante", diz Fahl apressadamente. Para ele a reza
era a única forma de encontrar as respostas para as questões
que importavam: "O que Deus quer? Onde reside o Espírito
Santo?".
Fahl não precisa parar para pensar. Ele enumera
as suas impressões de vida como se fossem contas em um colar
que o conecta a Deus: começando pela sua avó, que - graças
à intervenção divina - sobreviveu a uma febre enquanto
dava a luz à mãe de Fahl durante um bombardeio aéreo,
e tendo continuidade com os seus professores devotos da escola de segundo
grau e o patrão no banco, que o apoiaram na sua escolha.
Pessoas como Fahl não se constituem em uma surpresa
em um local como o Seminário Saint Georgen. A surpresa é
o fato de Fahl não parecer ser a regra, mas a exceção.
Por outro lado, todos aqui são uma exceção, cada
um ao seu modo. O mais jovem seminarista tem 20 anos, o mais velho 42.
Alguns vieram diretamente da escola. Muitos já
trabalharam - como enfermeiros geriátricos, advogados, biólogos.
Eles têm histórias diferentes. Lares intactos e destroçados.
Famílias cristãs e atéias. Alguns cresceram em
mansões, outros em orfanatos.
Astronauta ou padre?
Ao contrário de Fahl, a maioria deles entende
a surpresa de quem está de fora com a escolha de vida que fizeram.
Talvez porque eles próprios ainda estejam surpresos.
Vejamos por exemplo Mathias Mütel, um seminarista
de 23 anos de Blankanese, um elegante subúrbio de Hamburgo à
beira-rio. Aos 14 anos, ele decidiu provar ao seu professor de religião
que Deus não existia. Até então, o adolescente
se definira sucessivamente como anarquista, marxista e niilista.
"Mas não foi fácil como eu achava
que seria", diz o rapaz de ombros largos e expressão circunspecta.
Os seus pais, ambos arquitetos, não gostaram quando ouviram que
ele queria estudar teologia. "Em Hamburgo é melhor você
dizer que quer ser astronauta do que padre".
Hendrik Klentze, 35, precisou fazer duas tentativas
até se acostumar ao seminário. Da primeira vez, cinco
anos atrás, ele nutria altas expectativas. Mas os seminaristas
sempre estavam brigando, havia pelejas da mesma forma que em qualquer
outro lugar. E como recém-convertido ao catolicismo, muita coisa
era completamente incompreensível: por exemplo, as horas passadas
rezando ante o hostiário. A rodela de pão sem fermento
lhe lembrava o biscoito usado para fazer o Lebküchen alemão.
"Eu não parava de pensar: 'Eles estão idolatrando
um biscoito'".
Mas Klentze mostrou-se obstinado. Ele abandonara a carreira
de arqueólogo e se separara da namorada. Os seus pais - o pai
era ginecologista e a mãe psicoterapeuta - criaram-no segundo
o espírito anti-autoritário de 1968, e acharam que ele
estava maluco. Naquela época, Klentze se esquivou da questão
indo estudar teologia em Münster. Agora ele sente-se pronto para
o Seminário Saint Georgen.
O seminarista polonês Michal Swiatkowski está
se preparando para ser padre em uma diocese alemã. O rapaz de
26 anos de olhos hipnóticos freqüentou anteriormente um
seminário polonês. Ele permaneceu naquele seminário
por dois anos antes de se tornar jornalista. Mas tarde arranjou também
uma namorada. A falta de padres na Alemanha lhe permitiu retomar a rota
sacerdotal aqui. "Há candidatos suficientes na Polônia.
Não dá para tirar uma licença em meio aos estudos".
O candidato a padre acredita que o celibato seja importante,
embora saiba que será algo difícil de praticar. A certeza
de saber que venceu esse desafio poderá vir muito tarde, conforme
um velho padre lhe revelou certa vez: no leito de morte.
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