Chrysanto de Brito
> As Origens da Questão Roustaing
O trabalho
que se vai ler foi-me enviado em 1981, quando eu estava concluindo
a preparação do livro “O Corpo Fluídico”.
Foi do saudoso amigo Francisco Klörs Werneck a gentileza
da remessa. Mas o meu livro estava já no prelo, de modo
que não pude aproveitá-lo, como de resto, a muitas
outras colaborações que recebi na época.
Dou-o ao seu conhecimento, agora, leitor, no momento em que
a segunda edição do “Corpo Fluídico”
está sendo lançada. Não sendo inédito,
este trabalho é, no entanto, totalmente desconhecido,
pois veio a público através da extinta “Revista
Espírita do Brasil”, em 1936. Revista e autor eram
do Rio de Janeiro. Após sua leitura, compreenderá
você a razão que me faz apresentá-lo aqui.
Wilson Garcia
Allan Kardec, escrevendo em 1866
na “Revue Spirite”, que dirigia, meramente urna noticia
bibliográfica sobre a obra mediúnica de J.B. Roustaing,
intitulada “Os Quatro Evangelhos” (Les
Quatre Evangéles, Paris, 1866), não poderia
imaginar o alvoroço que suas observações iriam
provocar entre os espiritas, ao ponto de criarem para o Espiritismo
urna grave questão, que ainda perdura e que trouxe incontestavelmente
uma cisão entre eles.
As discussões sobre ela foram em França e são
aqui sempre tão acerbas, que já fizeram dela um foco
de malquerenças. Era uma situação que convinha
acabar definitivamente. Os espíritas deviam procurar manter-se
sempre em condições tais que não se afastassem
dos preceitos da moral que rege o próprio Espiritismo.
Sabe-se que a questão Roustaing gira em tomo de uma opinião
de Allan Kardec sobre afirmativas de Roustaing a respeito da natureza
do corpo de Jesus. É preciso dizer que Allan Kardec não
condenou totalmente a obra de Roustaing. Ele achava que ao lado
das coisas duvidosas que continha, existia nela coisas boas e verdadeiras;
que era um trabalho que tinha o mérito de não estar
em contradição com os princípios de “O
Livro dos Espíritos” e de “O Livro dos Médiuns”.
O que não estava de acordo era a aplicação
que Roustaing fazia desses princípios à interpretação
de certos fatos. Assim, por exemplo, ele dava ao Cristo em vez dum
corpo carnal um corpo fluídico concretizado com todas as
aparências da materialização. Jesus não
seria, durante toda a vida, senão uma aparição
tangível, um agênere. Seu nascimento, sua morte e todos
os atos materiais de sua vida teriam sido apenas aparências.
Ainda que Allan Kardec não visse nisso um fato impossível,
para quem conhecesse as propriedades do fluido perispiritual, ele
não pronunciava sobre ele nem pró nem contra. Ele
alegava que era, pelo menos, um fato hipotético, que tinha
sido mesmo inoportuno aventá-lo, que a aceitá-lo ele
só poderia valer por uma opinião individual, sem fazer
parte integrante da doutrina espírita, desde que não
tivesse a sanção do controle universal dos Espíritos.
Eis principalmente o que encerrava a nota bibliográfica de
Allan Kardec. Ele não censurou, não injuriou. Expediu
a sua opinião fraternalmente.
Roustaing era natural procurasse responder a Allan Kardec. Não
se sabe, porém, ao certo, se a resposta foi publicada. Seus
discípulos muito tempo depois afirmaram que ele não
conseguiu publicá-la. Allan Kardec não consta tivesse
voltado à questão senão em 1868, quando deu
à estampa “A Gênese” segundo o Espiritismo,
discutindo-o objetivamente.
A questão Roustaing está hoje liquidada em França.
Tendo sido criada e debatida pelos discípulos franceses de
Roustaing, dela ficaram vestígios um pouco desonrosos para
o Espiritismo. De fato, eles vêm mostrar os inconvenientes
e os excessos a que chegaram os promotores da questão. É
desses vestígios que pretendo falar aqui. O que quero fazer
é antes expor os meios empregados pelos discípulos
de Roustaing para apresentarem suas ideias, que propriamente discutir
a questão em si. São principalmente suas origens que
procuro mostrar aqui. É necessário asseverar que não
tenho em mira, fazer reviver essa questão ainda tão
irritante, procurando provocar discussões, nem mesmo julgo
seja sua resolução indispensável ao nosso progresso
espiritual. Penso com Allan Kardec que essa questão surgiu
inoportunamente. Mas, já que isso se deu, pode-se continuar
a falar sobre ela, sem que se possa dizer que isso importa em provocação.
No interesse da verdade tudo se pode alegar, contanto que tudo se
alegue serenamente e com probidade.
QUESTÃO DE HONRA
Foi principalmente depois da morte
de Roustaing, estando, portanto, já Allan Kardec desencarnado,
que a questão tomou vulto. Seus discípulos não
puderam suportar que Allan Kardec não tivesse a mesma opinião
que seu mestre. Viram nas suas observações propósitos
que não estavam na sua intenção. A questão
da natureza do corpo de Jesus apareceu então como uma questão
de honra.
Foi dado a lume em 1882 uma brochura contendo uma memória
intitulada “Os Quatro Evangelhos de J.B. Roustaing. Resposta
a Seus Críticos e a Seus Adversários”(Les
Quatre Evangiles de J.B. Roustaing. Réponse à Ses
Critiques el à Ses Adversaires. Bordéus, 1882),
onde se procurava defender Roustaing de pretendidas injustiças
de Allan Kardec e onde se dizia, ao mesmo tempo, que a memória,
tal qual era publicada, tinha sido escrita em 1866 e legada em manuscrito
pelo próprio Roustaing, a fim de ser publicada após
sua morte, memória essa, entretanto, que não passa
de um arranjo de seus discípulos, que não é
integralmente da autoria de Roustaing.
Não é que nessa memória não se veja
certa resposta dada pelo autor d'Os Quatro Evangelhos a Allan Kardec,
mas não se deixa de ver também, com um exame detido,
que ela está enxertada e tem apêndices. Segundo me
informaram mediunicamente a resposta de Roustaing foi clara; não
tinha as acomodações que foram feitas pelos seus discípulos.
Assim, pretendendo prejudicar a honorabilidade de Allan Kardec,
os discípulos de Roustaing atribuíram também
a este sentimentos que não abrigou. Não havia em Allan
Kardec nenhuma má vontade com Roustaing, assim Roustaing
não lhe votava encarniçada inimizade. A brochura de
1882 teve o grande prejuízo de excitar extremamente os ânimos
dos espíritas em França, dando lugar a uma forte e
dura polêmica entre eles.
Vai-se ver agora, embora ligeiramente, em que consistiu a defesa
de Roustaing nessa brochura. Há, sobretudo, quatro temas
em que ela se apoia. São a negativa da concordância
universal como método de controle do Espiritismo, admitido
por Allan Kardec, a apresentação de Roustaing como
missionário de uma “fase teológica” no
Espiritismo, a fenomenologia espírita, principalmente as
materializações, como meio de prova na questão
da natureza do corpo de Jesus e a acusação contra
a aplicação da tese do Docetismo à mesma questão.
Há outros pontos secundários que foram tratados pelos
discípulos de Roustaing, que nada têm com a questão,
mas que foram analisados por eles para terem, parece, a oportunidade
de censurar Allan Kardec.
“Para falarmos afirmativamente nas questões, disse
Allan Kardec na nota bibliográfica de 1866, e estarmos de
acordo com a maioria, recolhemos documentos bastante numerosos nos
ensinos dados de todos os lados pelos Espíritos. Assim temos
procedido todas as vezes que se trata de formular um princípio
capital. Nosso critério, para as coisas que não podemos
controlar pelos nossos próprios olhos, está na concordância
universal corroborada por uma rigorosa lógica”. Já
anteriormente, em 1864, na introdução da “Imitação
do Evangelho segundo Espiritismo”, ele tinha definido esse
critério e ainda mais nas edições posteriores
da mesma obra, que se sucederam com o título apenas de “O
Evangelho Segundo o Espiritismo”.
“A garantia séria do ensino dos Espíritos está
na concordância que existe entre as revelações
feitas espontaneamente por intermédio de grande número
de médiuns estranhos uns aos outros e em diversas regiões”.
Era esse justamente o critério
que Allan Kardec tinha adotado, como se sabe, para formar os princípios
do Espiritismo, para preparar “O Livro dos Espíritos”
e “O Livro dos Médiuns”. Eis porque julgava que
no caso de ser admitida a tese da natureza do corpo de Jesus, como
o queria Roustaing, a ela devia ser aplicada a sanção
da concordância universal dos Espíritos. Agora, onde
está a prepotência, o monopólio da verdade,
a pretensão a infalibilidade, o sectarismo de Allan Kardec
nessa afirmativa, como insinuaram os discípulos de Roustaing?
O consensus omnium, isto é, o acordo de todos os homens sobre
certas proposições não é, em lógica,
um critério considerado como prova da verdade? Por que não
aplicá-lo também ao Espiritismo, como fez Allan Kardec?
Se não se pode dizer que seja um critério infalível,
pelo menos é lógico e que Allan Kardec tinha demais
a experiência.
CRITÉRIO DE AUTORIDADE
Roustaing e seus discípulos
insurgindo-se contra ele mostraram que se baseavam em Espiritismo,
exclusivamente, no critério de autoridade. Mas não
é também crité-rio falível, mais falível
ainda que o da concordância ou consentimento universal? Não
é preciso discuti-lo aqui. Roustaing firmou-se demasiadamente
na autoridade dos nomes que apareceram nas mensagens desde o começo
da obra, que podiam não ser dos próprios evangelistas,
pelo menos os nomes que revelaram a parte referente à natureza
do corpo de Jesus. Devia ter havido um controle particular, devendo
a identificação ser feita com interesse e cuidado,
assim como o exame das condições práticas determinadas.
Não seria melhor que tivesse havido também o controle
universal, de que falava Kardec, como outros elementos de prova?
A esse controle se opunha talvez em sua excessiva boa fé,
sua grande credulidade e ainda mais suas ideias preconcebidas sobre
a necessidade de ser aclarada a questão do corpo de Jesus,
quando a verdade é que não tinha chegado ainda o momento
para isso, conforme dizem certos Espíritos.
Outro erro dos discípulos de Roustaing foi quererem fazer
dele, por influência de Pezzani, sem que este tenha talvez
concorrido, de uma “fase teológica” que sua obra
viria a abrir. A. Pezzani, publicando em 1865, conforme se vê
da própria brochura em 1882, um ano antes de ser dada à
luz a obra de Roustaing, um livro intitulado “Les Bardes Druidiques,
Synthèsé Philosophique du Dixneuvième Siécle”
e referindo-se ao Espiritismo, emitiu opinião de que ele
tem três fases distintas: a fase material, a fase espiritual
e a fase teológica. Dizendo ainda que a fase material terminava
com a moral, a espiritual com a síntese filosófica,
ele afirmava que a fase teológica terminaria com a fusão
de todos os cultos e com a “constituição do
universalismo em religião”, o que é admissível
por evolução e não repentinamente por intermédio
de uma obra e muito menos de uma obra de comentários. Entretanto,
Roustaing entendia, com seus discípulos, que “Os Quatro
Evangelhos” começavam essa fase, porque a fase espiritual
tinha sido terminada pelo próprio Pezzani e a fase material
já tinha sido também fechada por Allan Kardec com
“O Livro dos Espíritos” e “O Livro dos
Médiuns”, o que quer dizer que Allan Kardec fora o
missionário apenas para esses dois livros. Não é
preciso mostrar aqui o erro da concepção de Pezzani,
nem a inanidade de Roustaing.
Tratando da fenomenologia espiritual a propósito da natureza
do corpo espiritual de Jesus, os discípulos de Roustaing
disseram que Allan Kardec não gostava das manifestações
físicas, e que “seus adeptos aprenderam com ela a lhes
ter um santo horror”. É uma imputação
inteiramente aérea. Não se encontra na sua obra nada
que prove isso. Ao contrário, ele falou delas largamente
n’O Livro dos Médiuns e na Gênese segundo o Espiritismo.
Fazendo, por exemplo, o estudo das aparições tangíveis
ou materializações, ele traçou uma teoria que
ainda está de acordo com os fatos, falando também
daqueles que se davam por intermédio de médiuns poderosos
como Home, que depois foi estudado por Crookes. Seu fim não
foi alongar-se no estudo dos fenômenos físicos nem
dos fenômenos intelectuais, mas estabelecer os fundamentos
de uma doutrina que ficasse experimentalmente baseada sobre eles.
Já se vê que ele estudou desses fenômenos o que
era suficiente para chegar aos seus fins, ficando, destarte, conhecendo
e aceitando todos eles. Por aceitar mesmo os fenômenos físicos
e conhecê-los, foi que Allan Kardec pôde dizer que admitindo-se
Jesus com um corpo nas condições em que o queria Roustaing,
era dar lugar a compará-lo com uma aparição
tangível, um agênere, como chamava. Não fez
o que fizeram os discípulos de Roustaing sofisticamente,
isto é, tomaram essas próprias aparições
tangíveis ou materializadas, principalmente as de Crookes,
como prova de que Jesus podia manter-se com um corpo nas condições
que alegavam.
Era certamente desconhecer-se o caráter dessas materializações,
o meio em que se formam, as condições especiais de
investigações em que se dão. Daí é
absurdo dizerem os discípulos de Roustaing que as revelações
sobre a natureza do corpo de Jesus estão de acordo com a
ciência moderna.
ALTERAÇÃO FRAUDULENTA
Allan Kardec, adotando a
mesma opinião que teve Pezzani, julgou que a concepção
do Docetismo podia ser comparada com a que teve Roustaing sobre
o corpo de Jesus. O Docetismo foi uma heresia dos primeiros séculos
da igreja, que ensinou justamente o que prega Roustaing, isto é,
que toda a vida material de Jesus, seu nascimento e sua morte não
foram senão aparentes. Não era dizendo que o Docetismo
é um erro, que Roustaing o conhecia ou que Allan Kardec o
desconhecia, que os discípulos de Roustaing podiam negar
a veracidade da comparação.
Mas não foi somente a publicação da brochura
em 1882 que veio agravar a questão Roustaing, foi a alteração
fraudulenta que fizeram os discípulos de Roustaing da edição
d'Os Quatro Evangelhos. O prefácio e a introdução,
contendo ao todo 108 páginas foram extraídos do primeiro
volume da obra, para serem substituídos em muitos exemplares
da mesma obra por outro prefácio e mais quatro partes da
brochura, no total de 88 páginas. Este prefácio não
é inteiramente novo, é o prefácio do volume
que se pode chamar de autêntico, reproduzido com omissões
e emendas contendo, além disso, pequenas interpolações.
Assim, sem que tenha havido uma nova edição, existem
da mesma obra exemplares com prefácios diferentes.
Para provar a fraude não é preciso mais que examinar
o frontispício do primeiro volume, vendo-se a data de sua
publicação, 1866, e depois vendo-se no fim das transcrições
das partes tiradas da brochura, uma página antes de começar
os comentários evangélicos, uma nota dizendo abertamente
que elas tinham sido extraídas da brochura publicada em 1882,
Como pode um livro publicado em 1866 conter fatos que se passaram
em 1882? Além do papel e dos tipos de letras diferentes há
ainda a errata que ficou no livro alterado e que não combina
absolutamente com as páginas substituídas. Eis até
onde chegaram as origens da questão Roustaing.
No Brasil, essa obra, assim alterada, passou como uma segunda edição
e foi traduzida, quando se sabe que dela nunca foi tirada nova edição.
Teria sido melhor fosse conservada a edição brasileira
que fora feita, há alguns anos, da obra autêntica de
Roustaing, tradução embora feita com menos elegância
que a outra mais recente. Pelo menos ela não contém
os males da obra adulterada.
Fonte:
Mensário espírita “Opinião E.”,
abril de 1995, ano I, nº 6 – Capivari-SP; editor e jornalista
responsável: Wilson Garcia. Os intertítulos foram acrescentados
para facilitar a leitura. A “Revista Espírita do Brasil”,
que publicou inicialmente este artigo em 1936, era o órgão
de divulgação da Liga Espírita do Brasil.
Nota do PENSE
- http://www.viasantos.com/pense/arquivo/1366.html
Chrysanto de Brito foi um antigo militante espírita,
funcionário do Governo. De origem cearense, radicado no Rio
de Janeiro, desencarnou sem deixar filhos. Era recluso, avesso aos
auditórios espíritas e pouco participou do movimento
espírita do início do século 20. Profundo conhecedor
do Espiritismo, escreveu o livro “Allan Kardec e o Espiritismo”,
lançado em 1935, reeditado em 1983, com edição
digital pelo PENSE em abril de 2010.
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