
Professor francês Hippolyte
Léon Denizard Rivail, de 53 anos, usou pseudônimo
Allan Kardec para assinar "O Livro dos Espíritos"
Paris, 1857. O professor francês Hippolyte
Léon Denizard Rivail, de 53 anos, estava prestes a colocar
um ponto final em seu mais novo livro quando se viu tomado por
uma dúvida: usar seu nome de batismo ou recorrer a um pseudônimo?
Sua mais nova publicação, "O Livro dos Espíritos",
nada tinha a ver com os mais de 20 livros didáticos, de
física, química e matemática, que ele já
tinha escrito e eram adotados em escolas e universidades. Foi
quando Rivail se lembrou de que, em uma das muitas sessões
mediúnicas de que participou, um "amigo espiritual
de vidas passadas" de nome Zéfiro havia dito que,
na época do imperador Júlio César, entre
58 e 44 antes de Cristo, ele tinha sido um líder druida
na sociedade celta. Seu nome? Allan Kardec.
"O recurso do pseudônimo tinha a vantagem de não
expor Rivail numa época em que, embora a heterodoxia religiosa
fosse tolerada, sempre se corria riscos", explica Mary Del
Priore, doutora em História Social pela Universidade de
São Paulo (USP) e autora de "Do Outro Lado - A
História do Sobrenatural e do Espiritismo" (Planeta,
2014). "Era também uma forma de proteger sua carreira
editorial, sem dar chance de retaliação por parte
de instituições de ensino religioso que tivessem
adotado seus manuais".
Kardec levou quase dois anos para concluir "O Livro dos
Espíritos". Em momento algum, se considerou o
"autor" da obra. Na melhor das hipóteses, era
apenas seu organizador. Não por acaso, a folha de rosto
da primeira edição estampava a frase: "Escrito
e publicado conforme o ditado e a ordem de espíritos superiores".
Para realizar as "entrevistas com o além", Kardec
conheceu e fez amizade com mais de dez médiuns - termo
criado por ele para designar os "intermediários"
entre os vivos e os mortos. Suas mais assíduas "colaboradoras"
eram as irmãs Julie e Caroline Baudin, de 14 e 16 anos,
e Ruth Japhet, de 19.
Quanto aos "amigos invisíveis", eram incontáveis:
o filósofo grego Sócrates, o apóstolo e evangelista
João, o cientista americano Benjamin Franklin... "Por
ser inaugural, considero 'O Livro dos Espíritos', no formato
de perguntas e respostas, a mais importante obra de Kardec. As
perguntas correspondem ao papel dele na publicação.
Já as respostas são atribuídas a 'espíritos
superiores'.
Para os adeptos de Kardec, o livro é, literalmente, 'dos
espíritos'", explica Emerson Giumbelli, doutor em
Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisador do Núcleo de Estudos da Religião
(NER) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
"O Livro dos Espíritos" foi lançado no
dia 18 de abril de 1857 e, em apenas dois meses, vendeu todos
os 1.500 exemplares da primeira tiragem. Três anos depois,
uma segunda edição, revista e ampliada de 501 perguntas
e respostas para 1.019, chegou às livrarias. Logo, a doutrina
espírita despertou a ira da Igreja Católica que
considerava a necromancia, a suposta arte de adivinhar o futuro
por intermédio dos mortos, um pecado mortal.
Por essa e outras razões, jovens médiuns eram internadas
em hospícios e adeptos do espiritismo ameaçados
de excomunhão. No dia 9 de outubro de 1861, a intolerância
chegou ao ponto de o bispo de Barcelona, Antônio Palau y
Termens, ordenar que 300 exemplares da obra fossem queimados em
praça pública.
Mas, apesar dos pesares, Kardec procurava não se abater.
Encontrava consolo no relato de leitores do mundo inteiro que
atribuíam a seu trabalho o fato de não terem tirado
suas vidas em momentos de desespero. "Afirmavam que só
desistiram do suicídio por terem lido "O Livro dos
Espíritos" e entendido que a vida continua através
dos tempos.
E mais: que cada existência seria uma chance de evolução.
Uma chance que não deveríamos desperdiçar",
afirma o jornalista Marcel Souto Maior, autor de "Kardec
- A Biografia" (Record, 2013), que deu origem ao filme
homônimo, escrito por L.G. Bayão e dirigido por Wagner
de Assis. Com Leonardo Medeiros no papel-título, Kardec
tem estreia confirmada no dia 16 de maio de 2019.
Espiritismo à brasileira
Filho de pais católicos - o juiz Jean-Baptiste e a dona
de casa Jeanne -, Rivail começou a se interessar pelo assunto
por acaso. Ouviu falar do fenômeno das mesas girantes e,
movido por curiosidade e desconfiança, resolveu investigar.
Estava convencido de que, por trás das mesas que se erguiam
do chão e se moviam em todas as direções,
encontraria fios, ímãs ou roldanas. "Só
acreditarei se me provarem que uma mesa tem cérebro para
pensar e nervos para sentir", fez troça.
Em maio de 1855, Rivail saiu da casa de uma senhora chamada De
Plainemaison completamente atordoado. Não conseguira desvendar,
por meio de truques secretos ou traquitanas escondidas, o sobe
e desce das mesas. Mesmo assim, não desistiu. Passou a
investigar outro fenômeno, ainda mais intrigante: os cestos
escreventes. Encaixado no fundo do cesto, com a ponta virada para
baixo, um lápis "respondia" às perguntas
formuladas pelos convidados em folhas de papel.
"Numa dessas sessões, em 30 de abril de 1856, a cesta
se voltou para Rivail e, como se apontasse o dedo para ele, o
lápis escreveu uma mensagem enigmática: 'És
o obreiro que reconstrói o que foi demolido'", relata
Marcel. Era a deixa para Rivail começar a organizar o que
viria a ser "O Livro dos Espíritos".
Não demorou muito para o espiritismo kardecista cruzar
o Atlântico e desembarcar no Brasil. Por aqui, Kardec conquistou
inúmeros "aliados". Dois dos mais importantes
são o educador francês Casimir Lieutaud, que traduziu
para a língua portuguesa, em 1860, Os Tempos São
Chegados, a primeira obra espírita impressa no Brasil,
e o jornalista brasileiro Teles de Menezes, que fundou, em Salvador,
o primeiro centro espírita do Brasil, o Grupo Familiar
do Espiritismo, em 17 de setembro de 1865, e o primeiro periódico
espírita do país, o Eco do Além Túmulo,
em 8 de março de 1869.
"Por sua inteligência aguda, bom senso extraordinário
e alma caridosa, quem merece o título de 'Allan Kardec
brasileiro' é o Bezerra de Menezes", aponta Marta
Antunes Moura, vice-presidente da Federação Espírita
Brasileira (FEB), referindo-se ao "médico dos pobres"
que, reza a lenda, teria doado seu anel de formatura a uma mãe
para ela comprar remédios para o filho adoentado.
Outro nome de destaque na consolidação do espiritismo
no Brasil é Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier.
Em 1932, aos 22 anos, lançou seu primeiro livro, "Parnaso
de Além-Túmulo", antologia de 259 poemas assinados
por nomes como Castro Alves, Olavo Bilac e Augusto dos Anjos.
Até 2002, quando morreu aos 92 anos, psicografou 459 títulos
- e doou os direitos autorais de todos eles, com registro em cartório,
para obras assistenciais - e 10 mil cartas - algumas delas chegaram
a ser aceitas como prova em tribunais.
"Inspirado na noção de santidade católica,
Chico Xavier adotou votos monásticos como modelo de conduta
e espiritualidade. Assim, ele se tornou referência moral
não só para médiuns, como também para
os demais adeptos da doutrina. Essa construção do
estilo brasileiro de ser espírita, marcadamente católico,
é o que chamo de espiritismo à brasileira",
explica Sandra Stoll, doutora em Antropologia Social pela Universidade
de São Paulo (USP).
O rastro de perseguição que a doutrina de Kardec
sofrera na Europa logo chegou ao Brasil. Já em 1874, o
Jornal do Comércio acusava o espiritismo de produzir loucos:
"Uma epidemia pior que a febre amarela", dizia um artigo
da época. Em 1881, o bispo do Rio de Janeiro, Pedro Maria
de Lacerda, publicou um manifesto em que chamava os seguidores
de Kardec de "possessos, dementes e alucinados".
"Naquela época, o Brasil vivia sob os ditames do Império,
que tinha o catolicismo como religião oficial. Mas, mesmo
com o advento da República, a partir de 1889, a perseguição
não cessou", relata o sociólogo e advogado
Maury Rodrigues da Cruz, presidente da Sociedade Brasileira de
Estudos Espíritas (SBEE). "Os ataques sofridos não
arrefeceram o movimento espírita brasileiro. Pelo contrário.
Fortaleceram a união de seus membros em torno da defesa
da liberdade de culto e da consolidação do espiritismo
no país".
Mais vivo que nunca
No mês em que espíritas comemoram
os 150 anos da morte, ou melhor, do "desencarne" de
Allan Kardec, sua doutrina tem hoje, segundo dados do Pew Research
Center de 2015, 13 milhões de adeptos no mundo inteiro.
Só no Brasil, são 3,8 milhões. Isso significa
que, a cada três seguidores de Kardec, um é brasileiro.
Com isso, o maior país católico do mundo, com 123,4
milhões de fiéis, segundo o Censo de 2010, passou
a ostentar outro título: o de maior nação
espírita do planeta.
"O túmulo do Kardec no Père-Lachaise, em Paris,
é, sem dúvida, dos mais visitados. A qualquer dia
e horário, há sempre um brasileiro acendendo velas
ou depositando flores no mausoléu", afirma Reginaldo
Prandi, doutor em Sociologia da Universidade de São Paulo
(USP) e autor de "Os Mortos e Os Vivos" (Três
Estrelas, 2012), referindo-se ao cemitério francês
onde estão sepultados, entre outras celebridades, o escritor
Oscar Wilde, o músico Frédéric Chopin e o
roqueiro Jim Morrison.
"A prática da caridade ajudou o espiritismo a ganhar
força no Brasil. Ainda hoje, centros espíritas organizam
bazares, recebem doações de alimentos e distribuem
agasalhos no inverno".
O sucesso do espiritismo no Brasil, onde tem mais seguidores do
que na França, pode ser explicado, ainda, pelo processo
de "religiosificação" da doutrina no país.
Essa é a opinião de Célia Arribas, doutora
em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professora
do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF). Se, na terra natal de Kardec, o espiritismo
tinha caráter majoritariamente científico ou filosófico;
no Brasil, ganhou status de religião.
"Ao reforçar o caráter religioso do espiritismo,
seus primeiros adeptos, oriundos de grupos socialmente privilegiados,
como médicos, políticos e advogados, viram nisso
uma forma de legitimar sua existência em solo brasileiro
e escapar do Código Penal de 1890, que estabelecia punições,
como multa e detenção, para quem praticasse o espiritismo",
explica a socióloga.
Dados do último Censo apontam que, entre 2000 e 2010, o
número de espíritas no Brasil cresceu 65%, passando
de 2,3 milhões, algo em torno de 1,3% da população,
para 3,8 milhões, cerca de 2%. Mas, se o número
de fiéis é de 3,8 milhões, o de simpatizantes,
segundo a Federação Espírita Brasileira (FEB),
pode chegar a 30 milhões. "Muitos não se assumem
como espíritas porque são católicos ou porque
não enxergam o espiritismo como religião",
explica Célia Arribas, da UFJF.
"Há também aqueles que vão aos centros
atrás de alívio para alguma aflição
pontual. É o que chamamos na sociologia de 'religião
de clientela', um tipo de religiosidade de serviço que
não cria vínculos".
Mesmo tendo crescido tanto, o espiritismo continua a ser uma confissão
minoritária no país. Em número de adeptos,
está atrás de católicos (64%) e evangélicos
(22%). "São a maioria da minoria", define o sociólogo
Reginaldo Prandi, da USP. "A doutrina espírita não
está preocupada em fazer proselitismo ou converter ninguém.
Está interessada apenas em fazer o bem e praticar a caridade".