Apesar de o espiritismo ter se afirmado
publicamente, enquanto doutrina, na França de 1857, é
no Brasil, a partir de 1919, que o lema “Fora da caridade
não há salvação” passou a se
traduzir em um intenso movimento de criação de instituições
que visavam acolher, na modalidade de abrigo, a infância
dita “desvalida”. É claro que antes de 1919,
ainda nos primeiros anos do século XIX, os brasileiros
presenciam uma significativa obra de amparo à infância
desenvolvida no Estado de São Paulo por Anália Franco.
Entretanto, a espírita Anália Franco, à frente
da Associação Feminina Beneficente e Instrutiva
do Estado de São Paulo, não desenvolve, em nosso
entendimento, uma obra social propriamente espírita. Por
isso, preferimos adotar o ano de fundação, na cidade
do Rio de Janeiro, da instituição denominada Abrigo
Teresa de Jesus como o marco inicial do período que interessa
a esse trabalho.
O final do nosso percurso se remete ao ano de 1955, escolhido
por se tratar do ano em que um ilustre personagem da imprensa
espírita portuguesa vem ao Brasil com a intenção
de apresentar a seus leitores uma crônica a respeito da
grande obra que, segundo ele, estava sendo desenvolvida pelos
espíritas no Brasil. Essa crônica, na verdade, já
vinha há muito sendo escrita através da imprensa
luso-brasileira, mas a viagem teve uma intenção
e/ou efeito de realçar ainda mais as virtudes de uma obra
que passou a ser motivo de orgulho e, por isso, deveria ser conhecida
por todos.
Sabe-se que a situação dos espíritas em Portugal
não era nada boa nos idos de 1955, em plena ditadura de
Salazar. Com o patrimônio de inúmeras de suas instituições
confiscado e com seus direitos de reunião e associação
limitados, os espíritas portugueses, dispersos, tinham
como um dos poucos meios de aproximação a revista
“Estudos Psíquicos”, de Lisboa, fundada e dirigida
Isidoro Duarte Santos desde 1940. Esse português, a convite
dos brasileiros, atravessa o Atlântico e em 18 de abril
chega à capital brasileira, onde começa sua jornada
pelo Brasil, narrada nos dois volumes do livro “O Espiritismo
no Brasil (ecos de uma viagem)”.
Da capital do Brasil, ele parte para outras cidades nos estados
do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Nesse percurso,
boa parte de seu tempo é utilizada para visitar instituições
que se dedicavam à assistência social. Dentre elas,
inúmeros abrigos de crianças, tais como a Casa de
Luciá, no Rio de Janeiro-DF; o Lar de Jesus, em Nova Iguaçu-RJ;
o Orfanato Dr. March, em Niterói-RJ; o Lar de Maria, em
Macaé-RJ; Escola Jesus-Cristo, em Campos- RJ; Casa da Criança
Abandonada, em Cachoeira Paulista-SP; Lar Manuel Pessoa de Campos,
em Três Rios-RJ; Instituto Jesus e Instituto Maria, em Juiz
de Fora-MG; e Abrigo Jesus, em Belo Horizonte-MG. Em verdade,
conforme prenunciamos acima, uma boa parte das cidades e instituições
visitadas já vinham sendo noticiadas freqüentemente
nas páginas da revista “Estudos Psíquicos”.
Eram assunto, também, de periódicos brasileiros
como a revista “Reformador”, órgão da
Federação Espírita Brasileira fundado em
1883, e a Revista Espírita do Brasil, da Liga Espírita
do Brasil, que circulou entre os anos de 1929 e 1950.
Os abrigos e demais instituições de assistência
social espíritas, visitados por Isidoro Duarte Santos,
são apresentados como verdadeiros monumentos, os quais,
evidentemente, angariavam reconhecimento social para aquele movimento
duramente combatido desde o início, numa sociedade onde
o catolicismo era predominante. Os espíritas, conforme
verificamos nos periódicos e livros que serviram de fonte
a esta pesquisa, acima citados, vão adquirindo cada vez
mais consciência do papel que tais instituições
realizavam no sentido da legitimação social de seu
movimento. Tal consciência, de alguma forma, incentivou
ainda mais a criação de novas instituições,
principalmente a partir da década dos 40, após a
consolidação das primeiras iniciativas. Por outro
lado, apesar dessa consciência, pudemos verificar que os
abrigos espíritas para a infância e demais instituições
de cunho assistencial fundadas e mantidas por aquele movimento
nunca se tornaram elemento central da divulgação
doutrinária, até porque a virtude da caridade cristã,
tão propalada nos seus ensinos, não podia nem devia,
segundo a compreensão dos adeptos, ser utilizada para se
fazer proselitismo.
Concluímos, então, procurando responder à
questão formulada no título do presente trabalho,
que os abrigos espíritas para a infância não
deixam de ser, contraditoriamente, além de uma afirmação
da caridade enquanto princípio básico do espiritismo,
e neste sentido devem ser escondidos, preservados do orgulho e
da vaidade, imperfeições que mereciam vigoroso combate;
também se apresentam como algo a ser mostrado, já
que “a fé sem obras é morta”, “a
boa árvore deve dar bons frutos” e, além do
mais, os espíritas precisavam se afirmar diante de si e
dos outros, construindo uma identidade capaz de enfrentar os largos
preconceitos vigentes na sociedade de então.