
Margaret Fox (1833? -1893), Catherine Fox (1839
-1892) e Leah Fox Fish (1818?-1890)
Para Amy e Isaac Post, quakers abolicionistas
em Rochester, Nova York, em 1848, os rumores sobre barulhos misteriosos
em Hydesville pareceriam apenas algo como as velhas histórias
bruxas de Salem…Se eles não fossem tão próximos
das famílias das meninas Kate e Margaret Fox, de 12 e 14
anos, respectivamente, envolvidas na produção dos
estranhos ruídos.
Os incidentes ocorridos na residência da família
Fox – aparentemente “inteligentes” batidas nas
paredes e mobílias em uma antiga casa rural, ocorridas na
presença de Kate e Margaret, convenceram a família
e os vizinhos de que o espírito de um pedinte enterrado no
porão era o autor das pancadas.
A pressão social em torno dos acontecimentos
fez a família Fox decidir deixar a sua casa, em busca de
paz. Kate e Margaret foram levadas para viver em Rochester com a
irmã mais velha, Ann Leah Fish, mas lá continuaram
a fazer sessões mediúnicas, fonte de contato com o
além para Amy, Isaac e outros companheiros seus, como o casal
Abigail e Henry Bush, também ativistas do abolicionismo da
escravidão negra nos Estados Unidos. A casa dos Posts, que
já era local de hospedagem de escravizados fugitivos e de
preleções abolicionistas, se tornou também
um centro de reunião espiritualista.
Amy Kirby Post (1802-1889) e Isaac Post (1798-1872),
quakers abolicionistas de Rochester,
primeiros apoiadores as irmãs Fox e partidários do
Espiritualismo estadunidense.
• Abigail Bush foi abolicionista e presidente da Rochester
Women’s Rights Convention em 1848, uma das visitantes das
sessões das irmãs Fox.
Muitos dos primeiros “investigadores”
– assim se autodenominavam os frequentadores das sessões
mediúnicas – do espiritualismo estadunidense eram,
assim como os Isaac e Amy Posts, quakers que não mais participavam
da Society of Friends, grupo oficial dessa denominação
protestante.
A ruptura de muitos quakers com a instituição central
da religião tinha raízes em sua própria doutrina.
A teologia quaker ensinava que o espírito de Deus residia
em cada indivíduo e que essa “luz interior” era
o veículo primordial da verdade religiosa. A doutrina da
luz interior, entretanto, se tornou fonte de permanente tensão
no quakerismo. Se, por um lado, se encorajava um estilo de vida
simples e eram designadas autoridades nas reuniões religiosas
do grupo para zelar pelo cumprimento dos preceitos religiosos quakers,
por outro lado, essas autoridades e a própria reunião
eram enfraquecidas e deslegitimadas pelo preceito religioso que
encorajava qualquer um que se sentisse impelido pelo espírito
a falar livremente nas reuniões, reconhecendo a autoridade
da luz interior. “Durante o período anterior à
guerra, Amigos [quakers] que se sentiram impelidos a testemunhar
contra a injustiça de comprar e vender seres humanos foram
silenciados por uma crescentemente rígida estrutura disciplinar.
A obediência à consciência colidia com a obediência
aos membros mais velhos e à autoridade das reuniões”,
explica Ann Braude, na obra Radical Spirits: Spiritualism
and Women´s Rights in nineteenth-century America,
publicado em 1989.
Em 1827, seguidores de Elias Hicks, um primo de Amy Post, retiraram-se
da Sociedade dos Amigos para formar uma reunião separada,
acusando o grupo quaker anterior de excessivo formalismo, restrição
à liberdade individual, mistura indevida com instituições
e confortos mundanos, sendo a tolerância à escravidão
a principal evidência desses equívocos. Assim, a maioria
dos Quakers abolicionistas passaram ao grupo Hicksites.
Entretanto, novamente Amy e Isaac foram censurados pelos Hicksites,
por participarem de sociedades abolicionistas com membros não-quakers.
Assim, o casal Post se retirou e formou um outro grupo, o Congregational
Friends, em Waterloo. O termo congregação implicava
no fato de que a reunião de Waterloo não reconhecia
a autoridade da hierarquia quaker.
O grupo Waterloo Congregational Friends baseava suas crenças
no princípio Quaker de que as leis de Deus eram escritas
em toda alma humana, e todo ser humano era uma transcrição
do Perfeito Arquiteto, embora as manifestações de
tal transcrição pudessem ser mais ou menos perfeitas.
O grupo postulava também que existia uma cadeia inquebrantável
de comunicação entre o Infinito e todos os seres.
Na medida em que a imagem de Deus residia em cada indivíduo,
qualquer limitação à absoluta liberdade de
consciência era vista como impedimento à vontade divina.
Muitos membros do Waterloo Congregational Friends aceitaram a ideia
da origem espiritual das batidas ocorridas na presença das
irmãs Fox. A comunicação com os espíritos
aparecia a muitos quakers reformistas como uma continuação
da doutrina da luz interior. Através de trocas de cartas
nas redes de afinidade e amizade, notícias das batidas dos
espíritos espalharam-se por comunidades quakers em Long Island,
Nantucket, Filadélfia e pelo estado de Nova York.
Entre as lideranças abolicionistas que visitaram Leah Fox
em Nova York para participar das sessões mediúnicas,
estão Abigail Kelly, William Lloyd Garrison e seu parceiro
de trabalho Henry C. Wright. Na ocasião da sessão
da qual William Lloyd Garrison participou, o espírito de
um pioneiro abolicionista teria dito que “o espiritualismo
fará milagres pela causa da reforma”. Com o passar
do tempo, embora o interesse pelas irmãs Fox tenha declinado,
outras manifestações mediúnicas mais complexas,
como a escrita, incrementaram o movimento espiritualista.
William Lloyd Garrison (1805-1879), fundador
da American Anti-Slavery Society,
abolicionista radical e ativista pelos direitos das mulheres, causa
que dividia o movimento abolicionista.
• Abby Kelley Foster (1811-1887), ativista da American Anti-Slavery
Society,
influenciada por Angelina Grimké e William Garrison, defendia
o abolicionismo,
a igualdade civil entre negros e brancos, e posicionava-se contra
toda a coerção governamental,
o que significava não servir a juri, junta militar ou votar,
o que dialoga com a posição anarquista cristã
de Tolstoi.
Espalhado para além dos grupos
quakers, o total de espiritualistas filiados formalmente a alguma
organização do gênero é contabilizado
em 45 mil pessoas em 1890, enquanto as estimativas incluindo espiritualistas
não afiliados – não havia encorajamento, ao
contrário, certo desprezo e desconfiança por parte
da cultura espiritualista por formalidades e organizações
– varia entre algumas centenas de milhares a 11 milhões,
numa população total de 25 milhões de estadunidenses
à época.
O espiritualismo encontrou ressonância nas crenças
africanas da população escravizada no sul, com sua
ênfase na comunicação dos espíritos e
no vínculo com os familiares antepassados. Alguns dos médiuns
reconhecidos do espiritualismo estadunidense eram negros, embora
esse grupo não fizesse parte significativa da massa de adeptos
até o século XX. Entretanto, como nenhuma igreja evangélica
branca jamais fez, igrejas negras em Washington D.C. chegaram a
receber a médium Cora Hatch em seus púlpitos.
No norte do país, as líderes negras da seita shaker
(uma variante do quakerismo) Rebecca Jackson e Rebecca Perot tornaram-se
médiuns e atendiam em sessões regulares na Filadélfia.
Outros participantes do movimento espiritualista foram Mr. Anderson,
“a colored gentleman of Battle Creek”, que
participou da Convenção Espiritualista de Michigan
em 1866, o historiador e abolicionista negro William Cooper Nell,
e Sojourner Truth, abolicionista afro-americana e ativista dos direitos
das mulheres. A forte associação do espiritualismo
com abolicionismo gerou bastante antagonismo da parte do movimento
espiritualista descendente de europeus no sul dos Estados Unidos.
Alguns religiosos reclamavam, via cartas, quando as revistas espiritualistas
defendiam a abolição. Entretanto, em geral, tanto
abolicionistas quando militantes pelos direitos das mulheres tiveram
ampla entrada e visibilidade nos encontros espiritualistas, ajudando,
assim, a divulgar a causa.

William Cooper Nell (1816 – 1874): Filho
de William Guion Nell, importante nome do movimento abolicionista
dos Estados Unidos,
William Cooper Nell foi jornalista, editor, escritor, autor dos
primeiros estudos sobre os negros estadunidenses e considerado o
primeiro funcionário público federal negro de seu
país.
• Sojourner Truth (1797 – 1883), militante abolicionista,
nasceu na escravidão, fugiu com sua filha caçula e,
ao demandar seu filho judicialmente,
tornou-se a primeira mulher negra a vencer um caso na corte contra
um homem branco.
Também escritora e ativista pelos direitos das mulheres,
é autora do famoso discurso “Ain´t I a woman?”,
proferido na Convenção dos Direitos da Mulher em Akron,
Ohio, em maio de 1851.
Anne Braude relata que toda notável
família progressista dos Estados Unidos do século
XIX incluía um partidário do espiritualismo, algumas
delas mais de um. Em 1854, treze mil pessoas assinaram uma petição
pedindo ao senado estadunidense que designasse um comitê para
investigar a possível comunicação dos espíritos.
O século XIX nos Estados Unidos foi marcado por uma rejeição
às doutrinas protestantes mais dramáticas sobre as
penas eternas, por parte de religiosos, intelectuais, e também
das mulheres fora da escravidão. Mães vistas socialmente
como a “base espiritual” do lar diante do “mundo
corrompido dos negócios” se tornaram mulheres que não
mais podiam aceitar que suas crianças mortas na infância
fossem banidas do céu por Deus. O pano de fundo de otimismo
iluminista e romantização do lar e do papel das mães,
marca desse século, impulsionou o espiritualismo, na medida
em que aliviava o peso do medo, da sensação de fracasso
e do luto, cujas formalidades exteriores – cor da roupa, restrição
da vida social, etc – eram muito mais castradoras e tétricas
para as mulheres que para os homens. A rainha Vitória, emblema
moral da época, havia decretado luto permanente após
a morte de seu marido.
O Espiritualismo incorporou diversas visões liberais sobre
religião que já estavam presentes em outras denominações
protestantes da época, como Unitaristas, Quakers e Universalistas.
Ideias como a negação da origem puramente Divina da
Bíblia, da condenação eterna, e mesmo a defesa
da doutrina da salvação universal já eram uma
tendência da época. As ideias espiritualistas de valorização
do indivíduo e de sua relação com a natureza,
também popularizaram temas que estavam presentes no Transcendentalismo
de Emerson e Thoreau. A obra Principles of Nature, de Andrew
Jackson Davis, místico influenciado pelo sueco Swedenborg,
tornou-se o livro mais influente como síntese da teologia
espiritualista.
O sermão “Pecadores nas mãos
de um Deus bravo”, de Jonathan Edwards,1741,
grande referência para os líderes protestantes ortodoxos
dos Estados Unidos do século XIX.
O aspecto central da teologia espiritualista
era a ideia de que a verdade divina era diretamente acessível
a todos os seres humanos através da comunicação
com os espíritos, o que tornava essa crença uma alternativa
que apoiava a perspectiva individualista, sobre temas sociais e
políticos, dos radicais antes da Guerra de Secessão
dos Estados Unidos. Os espiritualistas acreditavam ainda que a comunicação
dos espíritos inaugurava uma nova era, que seria caracterizada
pela realização de um amplo programa de reformas sociais
progressistas. Assim, apoiaram ativamente causas como socialismo,
reforma trabalhista, vegetarianismo, reforma na saúde, reforma
nos códigos de vestuário e anti-sabatismo, entre outras.
Enquanto parte do movimento abolicionista considerava a questão
da mulher menos importante e não prioritária, mesmo
após o fim da guerra Civil, o movimento espiritualista deu
visibilidade à liderança e às causas femininas,
como direito a divórcio, direito à propriedade (como,
por exemplo, gerenciar uma conta no banco) e guarda dos filhos em
caso de separação. Por outro lado, algumas militantes
brancas pelos direitos das mulheres consideravam a sua própria
escravidão a pior de todas, e assim, ironicamente, ambos
os grupos ignoravam a dupla opressão das mulheres negras.
De todo modo, Ann Braude destaca que o espiritualismo se tornou
um dos maiores, senão o maior movimento de disseminação
de ideias sobre os direitos da mulheres nos Estados Unidos na metade
do século XIX. O trabalho de Beryl Satter sobre o movimento
religioso de mulheres New Thought Movement, que percorre
o intervalo entre 1875 e 1920 nos Estados Unidos, é a referência
usada por Braude para afirmar que ainda no início do século
XX “visões religiosas radicais continuavam a inspirar
e apoiar novas formas de feminismo”
(BRAUDE, 2001, p. 21, tradução nossa).
O argumento mais audacioso da obra Radical Spirits seria, segundo
a própria autora, que as médiuns formaram o primeiro
grupo numeroso de mulheres estadunidenses a falar em público
ou exercer liderança religiosa sobre homens e mulheres, sendo
que seu próprio trabalho documenta aproximadamente duzentas
mulheres cujas carreiras como “trance speakers” durante
as décadas de 1850 e 1860 podem ser acompanhadas através
da imprensa espiritualista. Essas médiuns, algumas bem acanhadas,
outras mais emancipadas, recebiam do “mundo espiritual”
incentivo para exercer uma liderança religiosa que, a princípio,
parecia a todos impensável.
De modo geral, os pesquisadores reconhecem a tendência de
que as mulheres exerçam de modo mais frequente a liderança
religiosa quando essa é calcada no contato ou experiência
espiritual individual diretas, em comparação com movimentos
onde a liderança é oriunda de cargo burocrático,
treinamento ou posição. O espiritualismo estadunidense
produziu um caso extremo dessas condições.
Como podemos ver, tanto no caso Quaker, quanto na rejeição
de muitas pessoas às raízes protestantes mais dramáticas
da teologia americana, toda teologia deve ser observada considerando
também suas implicações psicológicas
e políticas na vida humana. Teologias que valorizam o indivíduo
e o enxergam de forma otimista, sem forjar hierarquias artificiais
sobre quem está mais próximo de Deus, favorecem que
as pessoas adotem posturas críticas, autônomas e engajadas
em suas próprias vidas, e, eventualmente, na vida social.
Evidentemente a vida religiosa não é o único
fator determinante da postura existencial ou política de
um indivíduo, mas seu potencial mobilizador de subjetividades
nos convoca a nos debruçarmos sobre esse tema.
Conheça o livro:

Braude, Ann. Radical Spirits: Spiritualism
and Women´s Rights in Nineteenth-Century America. 2nd ed.
Indiana University Press, 2001