Espiritualidade e Sociedade





Litza Amorim

>   O que é ser religioso? Quakers e espiritualistas progressistas nos EUA do século XIX


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Litza Amorim
>  O que é ser religioso? Quakers e espiritualistas progressistas nos EUA do século XIX.

 

Publicado em 3 de fevereiro de 2019

 


Margaret Fox (1833? -1893), Catherine Fox (1839 -1892) e Leah Fox Fish (1818?-1890)

 

Para Amy e Isaac Post, quakers abolicionistas em Rochester, Nova York, em 1848, os rumores sobre barulhos misteriosos em Hydesville pareceriam apenas algo como as velhas histórias bruxas de Salem…Se eles não fossem tão próximos das famílias das meninas Kate e Margaret Fox, de 12 e 14 anos, respectivamente, envolvidas na produção dos estranhos ruídos.

Os incidentes ocorridos na residência da família Fox – aparentemente “inteligentes” batidas nas paredes e mobílias em uma antiga casa rural, ocorridas na presença de Kate e Margaret, convenceram a família e os vizinhos de que o espírito de um pedinte enterrado no porão era o autor das pancadas.

A pressão social em torno dos acontecimentos fez a família Fox decidir deixar a sua casa, em busca de paz. Kate e Margaret foram levadas para viver em Rochester com a irmã mais velha, Ann Leah Fish, mas lá continuaram a fazer sessões mediúnicas, fonte de contato com o além para Amy, Isaac e outros companheiros seus, como o casal Abigail e Henry Bush, também ativistas do abolicionismo da escravidão negra nos Estados Unidos. A casa dos Posts, que já era local de hospedagem de escravizados fugitivos e de preleções abolicionistas, se tornou também um centro de reunião espiritualista.


Amy Kirby Post (1802-1889) e Isaac Post (1798-1872), quakers abolicionistas de Rochester,
primeiros apoiadores as irmãs Fox e partidários do Espiritualismo estadunidense.  
•  Abigail Bush foi abolicionista e presidente da Rochester Women’s Rights Convention em 1848, uma das visitantes das sessões das irmãs Fox.

 

Muitos dos primeiros “investigadores” – assim se autodenominavam os frequentadores das sessões mediúnicas – do espiritualismo estadunidense eram, assim como os Isaac e Amy Posts, quakers que não mais participavam da Society of Friends, grupo oficial dessa denominação protestante.

A ruptura de muitos quakers com a instituição central da religião tinha raízes em sua própria doutrina. A teologia quaker ensinava que o espírito de Deus residia em cada indivíduo e que essa “luz interior” era o veículo primordial da verdade religiosa. A doutrina da luz interior, entretanto, se tornou fonte de permanente tensão no quakerismo. Se, por um lado, se encorajava um estilo de vida simples e eram designadas autoridades nas reuniões religiosas do grupo para zelar pelo cumprimento dos preceitos religiosos quakers, por outro lado, essas autoridades e a própria reunião eram enfraquecidas e deslegitimadas pelo preceito religioso que encorajava qualquer um que se sentisse impelido pelo espírito a falar livremente nas reuniões, reconhecendo a autoridade da luz interior. “Durante o período anterior à guerra, Amigos [quakers] que se sentiram impelidos a testemunhar contra a injustiça de comprar e vender seres humanos foram silenciados por uma crescentemente rígida estrutura disciplinar. A obediência à consciência colidia com a obediência aos membros mais velhos e à autoridade das reuniões”, explica Ann Braude, na obra Radical Spirits: Spiritualism and Women´s Rights in nineteenth-century America, publicado em 1989.

Em 1827, seguidores de Elias Hicks, um primo de Amy Post, retiraram-se da Sociedade dos Amigos para formar uma reunião separada, acusando o grupo quaker anterior de excessivo formalismo, restrição à liberdade individual, mistura indevida com instituições e confortos mundanos, sendo a tolerância à escravidão a principal evidência desses equívocos. Assim, a maioria dos Quakers abolicionistas passaram ao grupo Hicksites.

Entretanto, novamente Amy e Isaac foram censurados pelos Hicksites, por participarem de sociedades abolicionistas com membros não-quakers. Assim, o casal Post se retirou e formou um outro grupo, o Congregational Friends, em Waterloo. O termo congregação implicava no fato de que a reunião de Waterloo não reconhecia a autoridade da hierarquia quaker.

O grupo Waterloo Congregational Friends baseava suas crenças no princípio Quaker de que as leis de Deus eram escritas em toda alma humana, e todo ser humano era uma transcrição do Perfeito Arquiteto, embora as manifestações de tal transcrição pudessem ser mais ou menos perfeitas. O grupo postulava também que existia uma cadeia inquebrantável de comunicação entre o Infinito e todos os seres. Na medida em que a imagem de Deus residia em cada indivíduo, qualquer limitação à absoluta liberdade de consciência era vista como impedimento à vontade divina.

Muitos membros do Waterloo Congregational Friends aceitaram a ideia da origem espiritual das batidas ocorridas na presença das irmãs Fox. A comunicação com os espíritos aparecia a muitos quakers reformistas como uma continuação da doutrina da luz interior. Através de trocas de cartas nas redes de afinidade e amizade, notícias das batidas dos espíritos espalharam-se por comunidades quakers em Long Island, Nantucket, Filadélfia e pelo estado de Nova York.

Entre as lideranças abolicionistas que visitaram Leah Fox em Nova York para participar das sessões mediúnicas, estão Abigail Kelly, William Lloyd Garrison e seu parceiro de trabalho Henry C. Wright. Na ocasião da sessão da qual William Lloyd Garrison participou, o espírito de um pioneiro abolicionista teria dito que “o espiritualismo fará milagres pela causa da reforma”. Com o passar do tempo, embora o interesse pelas irmãs Fox tenha declinado, outras manifestações mediúnicas mais complexas, como a escrita, incrementaram o movimento espiritualista.


William Lloyd Garrison (1805-1879), fundador da American Anti-Slavery Society,
abolicionista radical e ativista pelos direitos das mulheres, causa que dividia o movimento abolicionista.
• Abby Kelley Foster (1811-1887), ativista da American Anti-Slavery Society,
influenciada por Angelina Grimké e William Garrison, defendia o abolicionismo,
a igualdade civil entre negros e brancos, e posicionava-se contra toda a coerção governamental,
o que significava não servir a juri, junta militar ou votar, o que dialoga com a posição anarquista cristã de Tolstoi.

 

Espalhado para além dos grupos quakers, o total de espiritualistas filiados formalmente a alguma organização do gênero é contabilizado em 45 mil pessoas em 1890, enquanto as estimativas incluindo espiritualistas não afiliados – não havia encorajamento, ao contrário, certo desprezo e desconfiança por parte da cultura espiritualista por formalidades e organizações – varia entre algumas centenas de milhares a 11 milhões, numa população total de 25 milhões de estadunidenses à época.

O espiritualismo encontrou ressonância nas crenças africanas da população escravizada no sul, com sua ênfase na comunicação dos espíritos e no vínculo com os familiares antepassados. Alguns dos médiuns reconhecidos do espiritualismo estadunidense eram negros, embora esse grupo não fizesse parte significativa da massa de adeptos até o século XX. Entretanto, como nenhuma igreja evangélica branca jamais fez, igrejas negras em Washington D.C. chegaram a receber a médium Cora Hatch em seus púlpitos.

No norte do país, as líderes negras da seita shaker (uma variante do quakerismo) Rebecca Jackson e Rebecca Perot tornaram-se médiuns e atendiam em sessões regulares na Filadélfia. Outros participantes do movimento espiritualista foram Mr. Anderson, “a colored gentleman of Battle Creek”, que participou da Convenção Espiritualista de Michigan em 1866, o historiador e abolicionista negro William Cooper Nell, e Sojourner Truth, abolicionista afro-americana e ativista dos direitos das mulheres. A forte associação do espiritualismo com abolicionismo gerou bastante antagonismo da parte do movimento espiritualista descendente de europeus no sul dos Estados Unidos. Alguns religiosos reclamavam, via cartas, quando as revistas espiritualistas defendiam a abolição. Entretanto, em geral, tanto abolicionistas quando militantes pelos direitos das mulheres tiveram ampla entrada e visibilidade nos encontros espiritualistas, ajudando, assim, a divulgar a causa.


William Cooper Nell (1816 – 1874): Filho de William Guion Nell, importante nome do movimento abolicionista dos Estados Unidos,
William Cooper Nell foi jornalista, editor, escritor, autor dos primeiros estudos sobre os negros estadunidenses e considerado o primeiro funcionário público federal negro de seu país.
• Sojourner Truth (1797 – 1883), militante abolicionista, nasceu na escravidão, fugiu com sua filha caçula e, ao demandar seu filho judicialmente,
tornou-se a primeira mulher negra a vencer um caso na corte contra um homem branco.
Também escritora e ativista pelos direitos das mulheres, é autora do famoso discurso “Ain´t I a woman?”, proferido na Convenção dos Direitos da Mulher em Akron, Ohio, em maio de 1851.

 

Anne Braude relata que toda notável família progressista dos Estados Unidos do século XIX incluía um partidário do espiritualismo, algumas delas mais de um. Em 1854, treze mil pessoas assinaram uma petição pedindo ao senado estadunidense que designasse um comitê para investigar a possível comunicação dos espíritos.

O século XIX nos Estados Unidos foi marcado por uma rejeição às doutrinas protestantes mais dramáticas sobre as penas eternas, por parte de religiosos, intelectuais, e também das mulheres fora da escravidão. Mães vistas socialmente como a “base espiritual” do lar diante do “mundo corrompido dos negócios” se tornaram mulheres que não mais podiam aceitar que suas crianças mortas na infância fossem banidas do céu por Deus. O pano de fundo de otimismo iluminista e romantização do lar e do papel das mães, marca desse século, impulsionou o espiritualismo, na medida em que aliviava o peso do medo, da sensação de fracasso e do luto, cujas formalidades exteriores – cor da roupa, restrição da vida social, etc – eram muito mais castradoras e tétricas para as mulheres que para os homens. A rainha Vitória, emblema moral da época, havia decretado luto permanente após a morte de seu marido.

O Espiritualismo incorporou diversas visões liberais sobre religião que já estavam presentes em outras denominações protestantes da época, como Unitaristas, Quakers e Universalistas. Ideias como a negação da origem puramente Divina da Bíblia, da condenação eterna, e mesmo a defesa da doutrina da salvação universal já eram uma tendência da época. As ideias espiritualistas de valorização do indivíduo e de sua relação com a natureza, também popularizaram temas que estavam presentes no Transcendentalismo de Emerson e Thoreau. A obra Principles of Nature, de Andrew Jackson Davis, místico influenciado pelo sueco Swedenborg, tornou-se o livro mais influente como síntese da teologia espiritualista.


O sermão “Pecadores nas mãos de um Deus bravo”, de Jonathan Edwards,1741,
grande referência para os líderes protestantes ortodoxos dos Estados Unidos do século XIX.

 

O aspecto central da teologia espiritualista era a ideia de que a verdade divina era diretamente acessível a todos os seres humanos através da comunicação com os espíritos, o que tornava essa crença uma alternativa que apoiava a perspectiva individualista, sobre temas sociais e políticos, dos radicais antes da Guerra de Secessão dos Estados Unidos. Os espiritualistas acreditavam ainda que a comunicação dos espíritos inaugurava uma nova era, que seria caracterizada pela realização de um amplo programa de reformas sociais progressistas. Assim, apoiaram ativamente causas como socialismo, reforma trabalhista, vegetarianismo, reforma na saúde, reforma nos códigos de vestuário e anti-sabatismo, entre outras.

Enquanto parte do movimento abolicionista considerava a questão da mulher menos importante e não prioritária, mesmo após o fim da guerra Civil, o movimento espiritualista deu visibilidade à liderança e às causas femininas, como direito a divórcio, direito à propriedade (como, por exemplo, gerenciar uma conta no banco) e guarda dos filhos em caso de separação. Por outro lado, algumas militantes brancas pelos direitos das mulheres consideravam a sua própria escravidão a pior de todas, e assim, ironicamente, ambos os grupos ignoravam a dupla opressão das mulheres negras.

De todo modo, Ann Braude destaca que o espiritualismo se tornou um dos maiores, senão o maior movimento de disseminação de ideias sobre os direitos da mulheres nos Estados Unidos na metade do século XIX. O trabalho de Beryl Satter sobre o movimento religioso de mulheres New Thought Movement, que percorre o intervalo entre 1875 e 1920 nos Estados Unidos, é a referência usada por Braude para afirmar que ainda no início do século XX “visões religiosas radicais continuavam a inspirar e apoiar novas formas de feminismo” (BRAUDE, 2001, p. 21, tradução nossa).

O argumento mais audacioso da obra Radical Spirits seria, segundo a própria autora, que as médiuns formaram o primeiro grupo numeroso de mulheres estadunidenses a falar em público ou exercer liderança religiosa sobre homens e mulheres, sendo que seu próprio trabalho documenta aproximadamente duzentas mulheres cujas carreiras como “trance speakers” durante as décadas de 1850 e 1860 podem ser acompanhadas através da imprensa espiritualista. Essas médiuns, algumas bem acanhadas, outras mais emancipadas, recebiam do “mundo espiritual” incentivo para exercer uma liderança religiosa que, a princípio, parecia a todos impensável.

De modo geral, os pesquisadores reconhecem a tendência de que as mulheres exerçam de modo mais frequente a liderança religiosa quando essa é calcada no contato ou experiência espiritual individual diretas, em comparação com movimentos onde a liderança é oriunda de cargo burocrático, treinamento ou posição. O espiritualismo estadunidense produziu um caso extremo dessas condições.

Como podemos ver, tanto no caso Quaker, quanto na rejeição de muitas pessoas às raízes protestantes mais dramáticas da teologia americana, toda teologia deve ser observada considerando também suas implicações psicológicas e políticas na vida humana. Teologias que valorizam o indivíduo e o enxergam de forma otimista, sem forjar hierarquias artificiais sobre quem está mais próximo de Deus, favorecem que as pessoas adotem posturas críticas, autônomas e engajadas em suas próprias vidas, e, eventualmente, na vida social. Evidentemente a vida religiosa não é o único fator determinante da postura existencial ou política de um indivíduo, mas seu potencial mobilizador de subjetividades nos convoca a nos debruçarmos sobre esse tema.

 

Conheça o livro:

 



Braude, Ann. Radical Spirits: Spiritualism and Women´s Rights in Nineteenth-Century America. 2nd ed. Indiana University Press, 2001

 

Fonte: https://blogabpe.org/2019/02/03/o-que-e-ser-religioso-quakers-e-espiritualistas-progressistas-nos-eua-do-seculo-xix/

 

 



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