
Diversos fatores nos indicam a relevância
de conhecermos melhor a história do cristianismo, hoje analisada
e interpretada no mundo todo por pesquisadores sem compromisso declarado
com as narrativas estabelecidas pelas religiões tradicionais.
Os estudos historiográficos passaram a questionar, por exemplo,
a autoria de algumas cartas de Paulo e variantes do Novo Testamento,
entre outros elementos que reforçam a conclusão bastante
difundida entre pesquisadores de que a ortodoxia cristã foi
forjada através do poder e da violência, assim como
o poder e a violência mataram Jesus.
O cristianismo é uma religião
nascida a partir dos estratos inferiores da hierarquia social do
mundo antigo que se tornou a doutrina oficial do Império
Romano. Entender como isso se deu pode ser muito revelador sobre
as relações entre cultura, religião e política
em determinado contexto histórico, desvendando uma série
de estratégias e táticas de domínio e resistência
culturais.
O processo histórico do desenvolvimento
do cristianismo também pode ser lido a partir de paralelos
relevantes com a contemporaneidade, tendo em vista os diversos aspectos
da cultura de nosso tempo, relacionados, herdados e apropriados
do passado. As milhares de estátuas do imperador Augusto
espalhadas pelo império romano no início do século
I, por exemplo, revelam um mesmo princípio de comunicação
entre liderança e povo que estabeleceu o louvor aos líderes
totalitários no século XX.
Uma segunda razão para se
revisitar e repensar o cristianismo é que as palavras contidas
nos livros sagrados cristãos – e as interpretações
que delas se fazem – continuam sendo de enorme impacto social
na contemporaneidade. A antropóloga e ativista feminista
Chelsea Shields,
uma mórmon liberal dos Estados Unidos, por exemplo, relata
os suicídios de jovens homossexuais em sua comunidade cristã,
a mesma comunidade que, segundo a pesquisadora, levantou 22 milhões
de dólares ao lutar contra o casamento homossexual na Califórnia.
Obviamente, uma das bases desse engajamento político são
os textos da Bíblia, alguns inclusive do apóstolo
Paulo. No Brasil, quando um pastor destrói estátuas
de Maria, está se apoiando em textos da Bíblia para
legitimar sua ojeriza à “idolatria”.
No caso brasileiro, não podemos
deixar de citar a menina candomblecista atacada por uma pedra em
2015, bem como os centros espíritas escondidos, perseguidos
por policiais nas décadas de 60 e 70. As proibições
do Velho Testamento — quanto à consulta de mágicos,
adivinhos, e de pessoas que interpretam sonhos ou interrogam os
mortos para saber a verdade — reverberam ainda hoje, quando
um médium chega a um centro espírita ocultando-se
da família.
Não é sem motivo que
Kardec dedicou, no século XIX, um capítulo de O Céu
e o Inferno para falar sobre a proibição atribuída
a Moisés de que se evocassem os mortos, expressa nos livros
Levítico e Deuteronômio do Velho Testamento, e sempre
reiterada pelas Igrejas cristãs tradicionais. Também
a compreensão de que o credo católico romano –
a Trindade, a natureza Divina de Cristo, etc. – foi um entre
vários modos de seguir a Jesus na Antiguidade é especialmente
importante para os espíritas, que têm o seu reconhecimento
como cristãos negado por católicos e evangélicos.
Se, por um lado, não faltam
motivos para criticar a intolerância, o dogmatismo e o autoritarismo
das religiões institucionalizadas; por outro lado, valores
e virtudes centrais para a conservação e o aprimoramento
das relações humanas, bem como para transformações
políticas, são herdados das tradições
religiosas. Se nos atemos à tradição cristã,
podemos lembrar dos seguidores de John Wicliff ou dos cristãos
hussitas da antiga Morávia e suas tendências anti-autoritárias
e pacifistas, que fortemente influenciaram um pensador clássico
da educação como Jan Amos Comenius.
Considerando a ideologia –
entendida como pensamento instrumentalizado para a dominação
social – como um atributo não exclusivo das doutrinas
espiritualistas (assim afirma Terry Eagleton em seu livro Marx),
é evidente também que o espiritualismo pode ser politicamente
progressista. De um ponto de vista filosófico, entendemos
que as virtudes se tornam mais razoadas quando relacionadas a uma
cosmovisão espiritualista. Isso é o que advertia Kardec:
valores e virtudes como a fraternidade, a igualdade, a coragem,
a honestidade e o desapego se tornam muito mais razoáveis,
e não contraditórios ao amor a si mesmo, quando compõem
uma perspectiva de vida interexistencial.
Ora, se essa vida é tudo
que temos, então pode ser belo e nobre o altruísmo,
mas ele é contraditório ao amor a si. Se tudo que
somos é instinto e desejo, por conseguinte o altruísmo
é uma negação da essência humana. Se
o senso coletivo que mantém as sociedades integradas não
se prende à natureza humana, então nunca superaremos
o mal estar da civilização, que era aliás a
tese de Freud.
Como entendia Kardec, é muito
importante criticar as religiões, retirar delas conteúdos
dogmáticos, separatistas, mercadológicos e hierarquizantes,
pois só assim pode-se salvar sua essência, oferecendo
uma visão espiritual do sentido da vida às novas gerações,
fortalecendo-as, assim, para o desenvolvimento de sua essência
comunitária, gregária, fraterna, e para a construção
de uma sociedade melhor. Analisar e criticar a história do
cristianismo – para nós, herdeiros da chamada “civilização
ocidental” – é uma forma de desenvolver em nós
mesmos e de transmitir às próximas gerações,
uma visão mais realista e equilibrada da história,
da cultura e da religião. O pensamento dicotômico ou
simplificado é uma fonte abundante de separatismo e violência
— assim entendemos.
Conhecendo, revisando e criticando
o cristianismo histórico, pretendemos aprender com os enganos
e acertos das gerações passadas. Os conhecimentos
historiográfico, sociológico e psicológico
podem nos ajudar a reler a tradição cristã
e resgatar seu espírito original, de libertação
e fraternidade, recuperando a inspiração de figuras
históricas como Jesus e Paulo, e valorizando o legado que
recebemos, construído à custa de suor e sangue.
* Texto revisado do que foi originalmente
publicado no Boletim da ABPE do primeiro semestre de 2016, produzido
para os associados.