Espiritualidade e Sociedade





Litza Amorim

>   A letra mata e o espírito vivifica – a história do cristianismo ontem e hoje

Artigos, teses e publicações

Litza Amorim
>   A letra mata e o espírito vivifica – a história do cristianismo ontem e hoje

 

 

 

Diversos fatores nos indicam a relevância de conhecermos melhor a história do cristianismo, hoje analisada e interpretada no mundo todo por pesquisadores sem compromisso declarado com as narrativas estabelecidas pelas religiões tradicionais. Os estudos historiográficos passaram a questionar, por exemplo, a autoria de algumas cartas de Paulo e variantes do Novo Testamento, entre outros elementos que reforçam a conclusão bastante difundida entre pesquisadores de que a ortodoxia cristã foi forjada através do poder e da violência, assim como o poder e a violência mataram Jesus.

O cristianismo é uma religião nascida a partir dos estratos inferiores da hierarquia social do mundo antigo que se tornou a doutrina oficial do Império Romano. Entender como isso se deu pode ser muito revelador sobre as relações entre cultura, religião e política em determinado contexto histórico, desvendando uma série de estratégias e táticas de domínio e resistência culturais.

O processo histórico do desenvolvimento do cristianismo também pode ser lido a partir de paralelos relevantes com a contemporaneidade, tendo em vista os diversos aspectos da cultura de nosso tempo, relacionados, herdados e apropriados do passado. As milhares de estátuas do imperador Augusto espalhadas pelo império romano no início do século I, por exemplo, revelam um mesmo princípio de comunicação entre liderança e povo que estabeleceu o louvor aos líderes totalitários no século XX.

Uma segunda razão para se revisitar e repensar o cristianismo é que as palavras contidas nos livros sagrados cristãos – e as interpretações que delas se fazem – continuam sendo de enorme impacto social na contemporaneidade. A antropóloga e ativista feminista Chelsea Shields, uma mórmon liberal dos Estados Unidos, por exemplo, relata os suicídios de jovens homossexuais em sua comunidade cristã, a mesma comunidade que, segundo a pesquisadora, levantou 22 milhões de dólares ao lutar contra o casamento homossexual na Califórnia. Obviamente, uma das bases desse engajamento político são os textos da Bíblia, alguns inclusive do apóstolo Paulo. No Brasil, quando um pastor destrói estátuas de Maria, está se apoiando em textos da Bíblia para legitimar sua ojeriza à “idolatria”.

No caso brasileiro, não podemos deixar de citar a menina candomblecista atacada por uma pedra em 2015, bem como os centros espíritas escondidos, perseguidos por policiais nas décadas de 60 e 70. As proibições do Velho Testamento — quanto à consulta de mágicos, adivinhos, e de pessoas que interpretam sonhos ou interrogam os mortos para saber a verdade — reverberam ainda hoje, quando um médium chega a um centro espírita ocultando-se da família.

Não é sem motivo que Kardec dedicou, no século XIX, um capítulo de O Céu e o Inferno para falar sobre a proibição atribuída a Moisés de que se evocassem os mortos, expressa nos livros Levítico e Deuteronômio do Velho Testamento, e sempre reiterada pelas Igrejas cristãs tradicionais. Também a compreensão de que o credo católico romano – a Trindade, a natureza Divina de Cristo, etc. – foi um entre vários modos de seguir a Jesus na Antiguidade é especialmente importante para os espíritas, que têm o seu reconhecimento como cristãos negado por católicos e evangélicos.

Se, por um lado, não faltam motivos para criticar a intolerância, o dogmatismo e o autoritarismo das religiões institucionalizadas; por outro lado, valores e virtudes centrais para a conservação e o aprimoramento das relações humanas, bem como para transformações políticas, são herdados das tradições religiosas. Se nos atemos à tradição cristã, podemos lembrar dos seguidores de John Wicliff ou dos cristãos hussitas da antiga Morávia e suas tendências anti-autoritárias e pacifistas, que fortemente influenciaram um pensador clássico da educação como Jan Amos Comenius.

Considerando a ideologia – entendida como pensamento instrumentalizado para a dominação social – como um atributo não exclusivo das doutrinas espiritualistas (assim afirma Terry Eagleton em seu livro Marx), é evidente também que o espiritualismo pode ser politicamente progressista. De um ponto de vista filosófico, entendemos que as virtudes se tornam mais razoadas quando relacionadas a uma cosmovisão espiritualista. Isso é o que advertia Kardec: valores e virtudes como a fraternidade, a igualdade, a coragem, a honestidade e o desapego se tornam muito mais razoáveis, e não contraditórios ao amor a si mesmo, quando compõem uma perspectiva de vida interexistencial.

Ora, se essa vida é tudo que temos, então pode ser belo e nobre o altruísmo, mas ele é contraditório ao amor a si. Se tudo que somos é instinto e desejo, por conseguinte o altruísmo é uma negação da essência humana. Se o senso coletivo que mantém as sociedades integradas não se prende à natureza humana, então nunca superaremos o mal estar da civilização, que era aliás a tese de Freud.

Como entendia Kardec, é muito importante criticar as religiões, retirar delas conteúdos dogmáticos, separatistas, mercadológicos e hierarquizantes, pois só assim pode-se salvar sua essência, oferecendo uma visão espiritual do sentido da vida às novas gerações, fortalecendo-as, assim, para o desenvolvimento de sua essência comunitária, gregária, fraterna, e para a construção de uma sociedade melhor. Analisar e criticar a história do cristianismo – para nós, herdeiros da chamada “civilização ocidental” – é uma forma de desenvolver em nós mesmos e de transmitir às próximas gerações, uma visão mais realista e equilibrada da história, da cultura e da religião. O pensamento dicotômico ou simplificado é uma fonte abundante de separatismo e violência — assim entendemos.

Conhecendo, revisando e criticando o cristianismo histórico, pretendemos aprender com os enganos e acertos das gerações passadas. Os conhecimentos historiográfico, sociológico e psicológico podem nos ajudar a reler a tradição cristã e resgatar seu espírito original, de libertação e fraternidade, recuperando a inspiração de figuras históricas como Jesus e Paulo, e valorizando o legado que recebemos, construído à custa de suor e sangue.

* Texto revisado do que foi originalmente publicado no Boletim da ABPE do primeiro semestre de 2016, produzido para os associados.

 

 

Fonte: https://blogabpe.org/2018/05/05/a-letra-mata-e-o-espirito-vivifica-a-historia-do-cristianismo-ontem-e-hoje/

 



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