Algum tempo atrás, o escritor
espírita Sérgio Aleixo
fez o favor de compartilhar, nas redes sociais, uma curiosa comparação
entre o comentário de São Luís, guia espiritual
da Sociedade Espírita Parisiense, na Revista Espírita
de junho de 1858, sobre o caso do Suicida da Samaritana, e a postura
de Kardec sobre o suicídio. São Luís afirmava,
na revista, que qualquer espírito suicida ficaria ligado
ao corpo até o término daquela que seria sua vida
natural:
Allan Kardec: Tal estado sobrevêm
sempre ao suicídio?
São Luis: O espírito do suicida
fica ligado ao corpo até o termo dessa vida. A morte natural
é a libertação da vida: o suicídio
a rompe por completo.
Entretanto, no livro O Céu e o Inferno,
de 1865 (parte II capítulo V), Kardec aparece explicando
que não existe regra absoluta e uniforme nos meios de “punição”
para os suicidas:
A sensação dos vermes e da
decomposição do corpo não é privativa
dos suicidas: sobrevem igualmente aos que viveram mais da matéria
que do espírito. Em tese, não há falta isenta
de penalidades, mas também não há
regra absoluta e uniforme nos meios de punição.
Uma primeira coisa que chama a atenção
nesse caso é a naturalidade com que Kardec reformulou suas
ideias, através da observação. Existem vários
casos desse tipo: O pesquisador Alexander Moreira Almeida,
professor da UFJF, também destacou, em uma de suas palestras
na Liga dos Pesquisadores do Espiritismo, que no Livro dos Médiuns
afirma-se que não existe o fenômeno de obsessão
através da possessão de um outro espírito pelo
corpo de um encarnado. Em A Gênese, por outro lado,
Kardec diz que existe, sim, o fenômeno da possessão.
A chave para a compreensão do problema está na Revista
Espírita, onde Kardec coloca que a afirmação
anterior teria sido prematura, e que mais observações
no grupo mediúnico conduziram a outra conclusão.
Esses casos explicitam a dimensão aberta da filosofia
espírita desenvolvida por Kardec. Existe uma grande diferença
entre achar que sua proposta foi uma mera filosofia dos espíritos,
copiada num caderno, e entender que ela foi, de fato, uma filosofia
em diálogo com os espíritos, que podiam inclusive
ser contestados. Mais do que a naturalidade de revisar
suas próprias posições, o caso com São
Luís destaca que Kardec revisava, relativizava e não
aceitava o argumento de autoridade nem mesmo do guia espiritual
da própria sociedade espírita da qual fazia parte.
E quando pensamos em quem foi São Luís em vida, um
rei cristão que fez a única cruzada contra outros
cristãos, os cátaros, podemos com mais segurança
quebrar a ideia fixa de que os espíritos com os quais nos
comunicamos mediunicamente são sábios incontestáveis.
Como num diálogo com qualquer pessoa, na mediunidade devemos
ouvir o outro que se manifesta, buscando um olhar compreensivo,
empático, mas também crítico. E isso ainda
temos que construir em nossa mentalidade espírita. Curiosamente,
não levamos a sério instruções do Livro
dos Espíritos de que a riqueza deve ser acumulada coletiva
e não individualmente, e (felizmente) ignoramos instruções
ultrapassadas de uma senhora simpática de Nosso Lar que critica
as mulheres que escolhem trabalhar fora de casa; entretanto, absolutizamos
conceitos de Kardec como o de punição nas reencarnações,
ideia incompatível com a concepção geral de
espíritos simples e ignorantes em vivências reencarnatórias
educacionais que propiciam a evolução. Se não
revisarmos a ideia de que Deus pune, temos que assumir um Deus pior
que uma mãe mediana na Terra, ao punir um filho que está
com dificuldade de aprender algo.
Além disso, ainda hoje no século XXI pensamos em termos
de níveis de evolução moral totalmente individuais,
descolados da coletividade, ignorando todo o acúmulo da psicologia
e da sociologia que nos mostram como somos enraizados em lógicas
e práticas econômicas, educacionais, culturais em geral,
injustas e opressoras, sem que ao menos nos demos conta disso. Como
diria Drummond, somos os inocentes do Leblon, cúmplices de
um sistema social nada inocente, que produz, em certa medida, as
distorções morais que são os roubos, assassinatos,
abusos e etc., que criticamos como fruto da pura maldade individual
dos criminosos.
Para piorar, há casos em que noções como a
de mérito individual e bônus-hora, recursos pedagógicos
de uma coletividade de espíritos descrita no livro Nosso
Lar, são consideradas por alguns espíritas como
Leis Universais! Se os espíritos de Nosso Lar, ou
os espíritas brasileiros do século XXI, pudessem ler
o que disse Pestalozzi sobre a moralidade no século XVIII,
teriam atualizado suas teorias ao perceber que a verdadeira moralidade
não se radica nas regras sociais com suas recompensas e punições,
e que, por isso, barganhas na educação são
no mínimo, neutras, e, provavelmente, prejudiciais ao desenvolvimento
moral. Pessoas que desenvolvem uma ética do tipo punição
e recompensa tendem a acomodar-se em sistemas sociais prontos e
fechados, ao invés de desenvolver a moralidade de forma criativa
e autônoma, e são mais propensas a se venderem com
base no cálculo de utilidade, o que, do ponto de vista da
coletividade, é desastroso.
Afinal, pessoas como Jan Hus, Kardec, e, extrapolando, Jesus, não
são personalidades que buscaram caminhos de recompensas materiais
ou sociais na Terra. Pelo contrário, romperam com padrões
sociais e tinham plena consciência de que enfrentariam punições,
mas sua moralidade se radicava em ideais acima de recompensas e
punições geradas por leis ou mecanismos de sanção
social ou de mercado. É preciso reconhecer que o sistema
de bônus-hora de Nosso Lar, bem como nossas práticas
educacionais atuais, precisam ampliar-se para o desenvolvimento
de uma moralidade de princípios, não meramente utilitarista.
É preciso reconhecer também que o próprio Kardec
dialogou com os avanços teóricos de seu tempo, e previa
a abertura do espiritismo a isso. Vamos aplicar seu método
aos seus próprios textos, e às obras mediúnicas
que vieram depois?