Galeno
Amorim
> A barracoteca do Otávio
Até hoje Otávio carrega a estranha sensação
de que é o que é na vida graças ao futebol.
Ou, para ser mais específico ainda, a uma pelada disputada
no subúrbio da qual, na verdade, ele jamais participou.
Não que ele tenha se tornado um craque dos gramados. Ou
ganho alguns trocos como profissional da bola, envergando a camisa
de algum clube no Brasil ou no estrangeiro. Nada disso.
Mas é certo afirmar que a história do Otávio
começou de fato num campinho na várzea. E justo naquele
dia em que ele fora deixado de fora da brincadeira pelos meninos
mais velhos da favela, que se sentiam os verdadeiros donos da bola
e, por que não dizer, do mundo naquelas bandas.
O menino, então, não tinha mais do que oito anos.
Como quem tem juízo obedece, o jeito foi arrumar alguma outra
coisa para fazer. Pronto!
Enquanto remexia num latão de lixo, o moleque encontrou
alguns brinquedos velhos e... um livro.
Como nunca custava nada, acabou levando aquele livro pra casa.
Era Don Gatton, um conto espanhol, até hoje Otávio
não se esquece.
A tantas da tarde, ainda sem ter o que fazer, acabou a luz elétrica.
Com a tevê em branco e preto fora de combate e nada mais divertido
pra se ocupar, o jeito foi recorrer ao livro. Ele nem dava grande
coisa para aquilo. Mas o caso é que simplesmente adorou aquela
experiência.
Começava ali uma vida de paixão e dedicação
à causa da leitura - primeiro, com ele próprio se
descobrindo como leitor; depois, fazendo uma descoberta ainda mais
avassaladora. Percebeu que a vida reservara a ele um nobre papel:
sair por aí apregoando para crianças pobres, como
ele, como é que os livros poderiam, afinal, mudar suas vidas.
Para chegar lá, Otávio teve que pegar firme nos estudos.
É verdade que, às vezes, ele deixava a mãe
danada por matar aulas - mas a causa era justa, ele tentava se explicar:
se escondia na biblioteca para poder ler livros de literatura.
Mais tarde, Otávio receberia algumas bolsas de estudo e
faria um curso atrás do outro. Fez teatro, cinema e, por
fim, se encantou com uma ocupação que até então
nem sequer imaginava que existisse: a contação de
histórias.
Otávio virou ator, depois produtor cultural. E achou que
já era hora de devolver um pouco o muito que os livros já
tinham feito por ele. Com o acervo que ganhou do Ministério
da Cultura mais os exemplares que amealhou nos dez anos de peregrinações
mambembes do seu circo literário pelo subúrbio carioca,
abriu uma biblioteca comunitária.
A Barracoteca Hans Christian Andersen funciona no Morro do Caracol,
no recém-pacificado Complexo da Penha e do Alemão,
que reúne 13 favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro. Está
instalada num sobradinho de dois andares, onde existia um salão
de forró e quer irradiar a leitura entre os 400 mil habitantes
do entorno. É um desafio e tanto.
O que Otávio mais curte é ler para as crianças:
- Quero que elas ampliem seus horizontes
- ele diz, com brilho nos olhos.
Pelo visto, já começa a surtir efeito. Dia desses
a menina Gabriely Estevão, oito anos, podia ser vista brincando
de médica em plena Rua Nova, nos arredores da biblioteca.
Segura de si, ela anunciava:
- Eu quero ser doutora! A gente tem que ler para ser alguma coisa
na vida...
A aventura onírica de Otávio começou com um
tapete emprestado da mãe. Mais uma mala velha vermelha achada
no lixo. Com ela, Otávio chegou a transportar uma centena
de livros e ia de casa em casa contar histórias.
Hoje sonha com o dia em que haverá uma biblioteca em cada
esquina da favela. Sua história já foi parar na tevê
e ele é reconhecido aonde vai. Em pouco tempo, tornou-se
uma das figuras mais populares do pedaço, que até
pouco tempo atrás era uma área conflagrada pelo tráfico
e considerada uma das zonas mais violentas da cidade.
No lugar dos tiros e das mortes, Otávio
Junior, o livreiro do Alemão, levou para lá livros.
E a perspectiva de uma nova vida.
LEIA MAIS
Livreiro do Alemão cria "barracoteca"
na favela
Otávio Júnior, 27, idealizou
e construiu biblioteca em comunidade no Rio
Ele também escreveu seu primeiro
livro enquanto os traficantes trocavam tiros com policiais e militares
Enquanto traficantes do Comando Vermelho
em fuga trocavam tiros com a polícia e soldados do Exército
durante a ocupação dos complexos da Penha e do Alemão,
em novembro de 2010, Otávio Júnior, 27, escrevia.
Sem poder sair de casa, finalizava "O Livreiro do Alemão"
-seu ingresso no mundo dos escritores-e preparava-se para instalar
a primeira biblioteca do conjunto de 13 favelas na zona norte do
Rio com quase 400 mil pessoas.
"Quando os confrontos eram muito acirrados,
eu produzia muito. Escrevia enquanto as balas "comiam"
para cima e pra baixo."
Biblioteca?
Na verdade, trata-se da "Barracoteca Hans Christian
Andersen" -corrige Otávio. O nome é
uma homenagem ao escritor dinamarquês autor de contos como "A
Pequena Sereia" e "A Roupa Nova do Rei".
O local - um antigo salão de forró- no morro do Caracol,
Complexo da Penha, funciona desde maio e será inaugurado oficialmente
em 22 de agosto, dia do Folclore.
Parte dos livros é doação do Ministério
da Cultura, o resto foi amealhado por Otávio durante os dez
anos em que andou por todo o Complexo da Penha e do Alemão,
com uma mala na mão, oferecendo livros emprestados aos moradores.
O investimento foi de R$ 7.000. Como não tinha nem a décima
parte desse valor, a solução foi apelar a conhecidos
e desconhecidos. "Passei o chapéu, mas passei o chapéu
virtual", diz.
No blog Ler é 10 - Leia Favela (leredezleiafavela.blogspot.com),
o jovem anunciou a barracoteca. Em três meses reuniu a quantia
necessária.
Filho de pedreiro, chamou o pai para reformar o local.
Otávio narra em "O Livreiro do Alemão" (Panda
Books) como seu amor à literatura se deu quase por acaso. Aos
oito anos, saía de casa todo dia para ver as peladas no campo
de terra da comunidade.
"Naquele dia, passei em frente a um lixão e havia
uma caixa com brinquedos velhos e um livro", conta. "À
tarde faltou luz e como não podíamos assistir a televisão
preto e branco, lembrei do livro."...
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3107201111.htm
Otávio Júnior ganhou o Prêmio
Jabuti 2020 na categoria Livro Infantil

Isabella Garcia
Colaboração para Ecoa, de São Paulo
07/01/2021
O menino que um dia descobriu seu
primeiro livro em um lixão venceu o maior prêmio literário
do Brasil. Quem faturou a categoria livro infantil, do Prêmio
Jabuti 2020, foi Otávio Júnior com a obra "Da Minha
Janela" (Companhia das Letras). A história mostra um garoto,
morador de uma favela do Rio de Janeiro, que ao abrir a sua janela
enxerga alegria, pluralidade, bichos, cores e a realidade dos seus
semelhantes. A narrativa é pintada com sensibilidade e vem
embalada pelas cores e movimentos das ilustrações de
Vanina Starkoff. -
A janela do garoto do livro tem uma
enorme conexão com a janela de seu autor. A Favela do Caracol,
no Complexo da Penha, é o local onde Otávio é
"nascido e criado", como gosta de afirmar. O ambiente colorido
e repleto de alegria que o escritor descreve no livro é o mesmo
de sua infância, marcada por brincadeiras comuns para crianças
das favelas como empinar pipa, rodar pião e jogar futebol.
Filho de pai pedreiro e de mãe
dona de casa, Júnior conta que o universo cultural não
fazia parte do seu cotidiano. Aos 8 anos, encontrou no lixão
o livro infantil "Dom Gatão" (Ebal), o primeiro da
coleção Peteleco. Esse foi um objeto transformador da
sua vida. A partir desse momento, passou a se interessar mais por
arte, literatura e o universo criativo. A paixão foi ampliada
em idas a bibliotecas públicas, exposições, peças
teatrais e oficinas de escrita. Vivências que o fizeram escritor,
ator, contador de histórias e produtor teatral.
Conforme entendia os processos criativos,
Otávio se dava conta de que era necessário democratizar
a literatura, principalmente para as crianças da favela que
são majoritariamente pretas e pardas, mas, também, nordestinas
e indígenas. Ele via que os jovens tinham uma curiosidade muito
grande de saber o que é a favela, pois na cabeça deles
tudo se resumia à pobreza e à violência. "A
partir da literatura infantil eu coloco personagens moradores de favela
em posição de destaque e também mostro que existem
questões de violência. Que esse é um território
que não tem investimentos [nas] questões de saneamento
básico, arquitetura e iniciativas voltadas ao meio ambiente",
conta Otávio.
Ver os amigos do velho bairro sem
interesse em ler motivou Otávio Júnior a criar a primeira
biblioteca nas favelas do Complexo do Alemão e do Complexo
da Penha. Além disso, ele criou o "Ler é 10",
um projeto itinerante que levava livros para outros pontos da Penha
e do Alemão. E mais: criou a "Barracoteca", um espaço
de leitura no morro do Caracol e o projeto "Favela Lúdica",
como pesquisador na área de educação.
"Eu sou um ativista da literatura.
A minha figura é bem importante para pensar em estratégias
para democratizar os livros nas favelas. Não adianta eu pensar
em muitas histórias e ganhar prêmios, se as pessoas da
minha família e da minha comunidade não tiverem acesso
ao que eu escrevo, aos clássicos nacionais, americanos e universais.
O propósito de implementar esses projetos em favelas vizinhas
foi o de compartilhar histórias. ".
Apesar de ter promovido mudanças
e comunicar uma outra perspectiva de favela, o autor reflete que isso
ainda não é uma vitória. "É muito
comum ouvir artistas usando sua trajetória pessoal para definir
o coletivo. A favela não venceu por causa do Otávio
Júnior e está muito longe de vencer. Ainda hoje existem
muitas situações desagradáveis que acontecem
como a violência contra criança, a mulher e o racismo.
Existe muita precariedade ligada à geração de
renda, à educação, à primeira infância
e à cultura. Estamos falando de um território que não
tem investimento. A sociedade não está comprometida
com as nossas pautas, então, por mais que um prêmio seja
muito significativo, é impossível comemorar a vitória
da favela.".
O escritor carrega até hoje
o livro "Dom Gatão" como um amuleto incentivador.
A obra encontrada no lixão mudou a sua vida e consequentemente
transformou o mundo de muita gente. Graças às suas narrativas,
crianças pretas e faveladas, que provavelmente não irão
se deparar com muitos príncipes e princesas nos livros infantis
tradicionais, conseguem enxergar-se como protagonistas. A identificação
pode fazer toda a diferença na vida desses jovens; eles podem
sonhar.
"Eu acredito na força
na literatura, da arte e da educação como uma ferramenta
de transformação. Essa é a forma que eu encontrei
para incentivar os jovens a buscarem, persistirem e insistirem nos
seus sonhos. Eu quero olhar lá na frente e ver a favela vencendo
através da minha arte e da minha perseverança. Eu quero
ver uma favela plural, [uma favela] conectada com a cultura, [uma
favela] tecnológica. Conectada ao empreendedorismo e ao desenvolvimento",
sonha Otávio como sonham os meninos e meninas pretas ao lerem
seus livros.
Fonte: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/01/07/quero-ver-a-favela-vencendo-atraves-da-minha-arte-diz-livreiro-do-alemao.htm
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