"A.2 Perguntei,
no capítulo anterior, sobre o princípio da inércia.
Ele é central na mecânica de Newton, e se encontra
formulado como "axioma ou lei", juntamente com dois outros,
em sua obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica
(1687)
"Todo corpo continua num estado de repouso ou de movimento
uniforme em uma linha reta, a menos que seja compelido a mudar tal
estado por forças exercidas sobre ele."
Todo mundo já experimentou este princípio: quem levou
um tombo num ônibus que parou repentinamente, ou caiu para
frente ao descer de um veículo em movimento, ou viu um veículo
colidir com outro, muito embora os freios estivessem aplicados até
o fim. Ou num filme sobre viagens interplanetárias, em que
o astronauta sai da nave e, para espanto, não é deixado
para trás pelo veículo que viaja a uma velocidade
de milhares de quilômetros por hora; o astronauta fica ali
flutuando, como se estivesse numa piscina em que tudo está
parado. Que todos tenhamos experimentado o princípio é
um fato. O problema são as suas credenciais. Pode ele ser
falsificado? Sob que condições?
Imaginemos o corpo A, em movimento retilíneo uniforme, inercial
portanto, e que se desloca segundo a linha pontilhada, na direção
indicada. Se ele mudar de direção sem a interferência
de qualquer força, o princípio estará falsificado.
Imaginemos que isto venha realmente a acontecer. Como se comportariam
os cientistas? Será que um deles se atreveria a escrever
um artigo dizendo possuir provas de que o princípio da inércia
está errado? Ou não seria muito mais simples explicar
a mudança de direção postulando a existência
de uma força qualquer, necessária para elucidar o
ocorrido? Desta forma o princípio seria preservado, o fenômeno
"desviante" seria interpretado segundo as exigências
do princípio, e o cientista evitaria cair em ridículo
– o que é muito importante.
Volto a perguntar: sob que condições
a falsificação do princípio da inércia
se daria?
A.3 Um outro exemplo interessante vem da cristalografia
e é sugerido por Polanyi. Vou transcrever suas palavras:
"Desde os tempos mais remotos os homens se sentiram fascinados
por pedras de distintas formas. A regularidade é uma das
características distintivas que agradam os olhos e estimulam
a imaginação. Pedras, limitadas em muitos lados por
superfícies planas que se encontravam em quinas regulares,
atraíam a atenção, especialmente se, além
disso, tivessem belas cores (...) Este primeiro fascínio
sugeria uma significação maior e ainda oculta, que
a mente primitiva expressou ao atribuir às gemas um poder
mágico. Posteriormente, estimulou o estudo científico
dos cristais, e estabeleceu e elaborou, em termos formais, todos
os sistemas de avaliação que são inerentes
a qualquer apreciação inteligente dos cristais. Tal
sistema, em primeiro lugar, estabelece um ideal de forma, por meio
do qual classifica os corpos sólidos em dois tipos: primeiro,
aqueles que tendem a incorporar tal ideal e, por último,
os outros nos quais nenhuma forma deste tipo é aparente.
Os primeiros são os cristais, os últimos constituem
os não cristais destituídos de forma, amorfos, como
o vidro. A seguir, cada cristal individual é tomado como
representante de um ideal de regularidade, sendo que todos os desvios
do mesmo são considerados como imperfeições.
(...) A cada tipo de cristal é, assim, atribuído um
poliedro ideal diferente."
E é justamente aqui que Polanyi pergunta: que fatos poderiam
falsificar tal critério de organização dos
cristais? "Nenhum evento possível poderia falsificar
esta teoria", pois cada contraprova não é considerada
uma contraprova mas antes uma imperfeição –
não do ideal geométrico – mas do corpo em questão.
"Os fatos que não são descritos pela teoria não
lhe criam dificuldade alguma, pois ela os considera irrelevantes
para si mesma." Assim, estamos frente a declarações
que circulam na ciência, declarações estas de
enorme importância, que não possuem as credenciais
de falsificabilidade. (Ver Polanyi,
op. cit., p. 43-8). "Pode-se dizer da teoria cristalográfica
que ela transcende a experiência a que ela se aplica. Mas
esta transcendência, que torna uma teoria empírica
irrefutável pela experiência, está presente
em todas as formas de idealização. A teoria dos gases
ideais não pode ser falsificada por meio de desvios observados
em relação a ela..." (Idem,
p. 47-8).
A.4 Declarações muito importantes
no mundo da ciência e da vida prática são aquelas
que exprimem relações probabilísticas. O que
é uma relação probabilística? Se alguém
saltar por uma janela, pode estar absolutamente certo de que cairá.
Se alguém jogar um fósforo aceso num tambor de gasolina
pode estar absolutamente certo de que o líquido
pegará fogo. Mas se você girar a roleta, ou lançar
um dado, ou puxar o gatilho de um revólver com uma bala apenas
no tambor, não lhe será possível ter certeza
do resultado.
Aqui surge a possibilidade do jogo e da aposta. Ninguém aposta
que a gasolina pegará fogo, mas há pessoas que jogam
roleta, dados e mesmo roleta russa. Quando não se tem certeza,
é possível tomar riscos e fazer apostas.
Como é que se faz o cálculo das probabilidades? É
simples. Tome um dado. Que chances há de que o 3 fique para
cima em um lance? São seis as faces que podem ficar para
cima, sendo que apenas uma, dentre elas, efetivamente se mostrará
nesta posição. Sendo o 3 uma delas, dizemos que existe
uma probabilidade de 1/6 de que o 3 apareça.
Imaginemos agora uma situação estranha. Lancei o dado
1.000 vezes. O 3 não apareceu nem uma única vez. É
evidente que, neste caso, os fatos não confirmam as predições
da teoria. Na verdade, um jogador que tivesse feito apostas no 3,
confiado na teoria, teria perdido todo o seu dinheiro.
Será que, em decorrência disto, a previsão probabilística
fica falsificada? A teoria será contestada como resultado
dos dados empíricos obtidos nestes 1.000 lançamentos?
Não. De forma alguma. O jogador não questionará
nem os matemáticos, nem suas previsões. Mas ficará
certo de que o dado é viciado.
Pergunto: que evento ou eventos poderiam falsificar as relações
probabilísticas?
A.5 E aí poderemos nos perguntar se é
verdade que a falsificabilidade de uma declaração
é precondição para que ela circule nos corredores
da ciência. É possível que a história
nos revele coisas que não coincidem com os critérios
que inventamos."