Essa encruzilhada simples entre o certo
e o errado, entre o lado da vida e o da morte, só acontece
nos textos de lógica
ERA UM DEBATE sobre o aborto na TV. A questão
não era "ser a favor"ou "contra o aborto".
O que se buscava eram diretrizes éticas para se pensar sobre
o assunto.
Será que existe um princípio ético absoluto que
proíba todos os tipos de aborto? Ou será que o aborto
não pode ser pensado "em geral", tendo de ser pensado
"caso a caso"? Por exemplo: um feto sem cérebro.
É certo que ele morrerá ao nascer. Esse não seria
um caso para se permitir o aborto, para poupar a mulher do sofrimento
de gerar uma coisa morta por nove meses?
Um dos debatedores era um teólogo católico. Como se
sabe, a ética católica é a ética dos absolutos.
Ela não discrimina abortos. Todos os abortos são iguais.
Todos os abortos são assassinatos.
Terminando o debate, o teólogo concluiu com esta afirmação:
"Nós ficamos com a vida!"
O mais contundente nessa afirmação está não
naquilo que ela diz claramente, mas naquilo que ela diz sem dizer:
"Nós ficamos com a vida. Os outros, que não concordam
conosco, ficam com a morte..."
Mas eu não concordo com a posição teológica
da igreja - sou favorável, por razões de amor, ao aborto
de um feto sem cérebro - e sustento que o princípio
ético supremo é a reverência pela vida.
Lembrei-me do filme a "Escolha de Sofia". Sofia, mãe
com seus dois filhos, numa estação ferroviária
da Alemanha nazista. Um trem aguardava aqueles que nele seriam embarcados
para a morte nas câmaras de gás.
O guarda que fazia a separação olha para Sofia e lhe
diz: "Apenas um filho irá com você. O outro embarcará
nesse trem..." E apontou para o trem da morte.
Já me imaginei vivendo essa situação: meus dois
filhos - como os amo -, eu os seguro pela mão, seus olhos nos
meus. A alternativa à minha frente é: ou morre um ou
morrem os dois. Tenho de tomar a decisão. Se eu me recusasse
a decidir pela morte de um, alegando que eu fico com a vida, os dois
seriam embarcados no trem da morte... Qual deles escolherei para morrer?
Acho que a ética do teólogo católico não
ajudaria Sofia.
Você é médico, diretor de uma UTI que, naquele
momento, está lotada, todos os leitos tomados, todos os recursos
esgotados. Chega um acidentado grave que deve ser socorrido imediatamente
para não morrer. Para aceitá-lo, um paciente deverá
ser desligado das máquinas que o mantém vivo. Qual seria
a sua decisão? Qual princípio ético o ajudaria
na sua decisão? Qualquer que fosse a sua decisão, por
causa dela uma pessoa morreria.
Lembro-me do incêndio do edifício Joelma. Na janela de
um andar alto, via-se uma pessoa presa entre as chamas que se aproximavam
e o vazio à sua frente. Em poucos minutos as chamas a transformariam
numa fogueira. Para ela, o que significa dizer "eu fico com a
vida"? Ela ficou com a vida: lançou-se para a morte.
Ah! Como seria simples se as situações da vida pudessem
ser assim colocadas com tanta simplicidade: de um lado a vida e do
outro a morte. Se assim fosse, seria fácil optar pela vida.
Mas essa encruzilhada simples entre o certo e o errado só acontece
nos textos de lógica. O escritor sagrado tinha consciência
das armadilhas da justiça em excesso e escreveu: "Não
sejas demasiado justo porque te destruirás a ti mesmo..."