Espiritualidade e Sociedade



Marco A. B. de Almeida

>   As Solidariedades do Povo do Santo

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Marco A. B. de Almeida
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Este artigo é parte integrante do trabalho de pós-graduação do autor, Marco A. B. de Almeida, em Sociologia Urbana da UERJ, sob a orientação da professora Lená Medeiros de Menezes, do Departamento de História da UERJ.

 

O Rio de Janeiro do início do século XX apresenta-se numa conjuntura de transformações e metamorfoses na vida político, social e urbana do país, marcadas por contexto de continuidades e permanências onde a identificação dos indivíduos com uma cultura de grupo, como no caso dos grupos praticantes das religiões afro-brasileiras, integrantes do carnaval, participantes de sociedades anônimas diversas, subempregados e biscateiros de todas as espécies são participantes de uma lógica subalternizada de mundo, legitima a nova cultura em formação que cria uma identidade coletiva construída num ambiente onde a solidariedade era a chave para sobrevivência.

Nessa cidade de integração e choque entre culturas e etnias, da busca por representações no meio social e urbano através da religião, dos cultos Afro-Brasileiros, como no caso dos Candomblés (1) e da Umbanda, novo culto surgido da miscigenação e sincretismo de várias religiões, que através de suas visões míticas da realidade com idéias de ancestralidade, natureza e comunidade constituíram um modelo religioso com uma lógica particular de sociedade, cultura e economia.

Logo, é na esteira da modernização do início do século XX, com todas as suas mudanças e modificações, não só a nível das novas tecnologias, mas de toda uma mentalidade, que o advento da multidão e a acentuação das individualidades na sociedade transformam as novas solidariedades e a permanência das antigas em um fator agregador dos grupos e dos diversos elementos afins que deles participam.

‘‘Os terreiros de candomblé e os centros umbandistas são casas de ajuda ao próximo. Essa ajuda pode ser material ou espiritual, variando segundo a necessidade daqueles que compõem ou procuram essas comunidades. É absolutamente introjetado no pensamento das pessoas que aí circulam a noção de coletivo. A comida é os que chegam; além de existir uma verdadeira agencia informal de empregos para aqueles que necessitam de uma ocupação”. (2)


Logo, é a partir das relações de solidariedades desenvolvidas e implementadas no conjunto dos elementos que integram os Cultos Afro-Brasileiros, que o mesmo elemento participante desses cultos as reproduz no meio em que vive como um elemento inerente a sua formação social e a sua cultura como uma forma de integralizar-se no conjunto desta sociedade, na afirmação de sua identidade de culto e, por conseguinte da sua vida no meio urbano.

‘‘Consultar os búzios através dos conhecimentos iniciáticos do Oluwo, ou mesmo pôr diferentes maneiras intuitivas, marca, quase sempre, a chegada do indivíduo no terreiro, sendo de certa maneira a primeira relação entre o homem e o sagrado. Os diferentes temas como saúde, amor, trabalho, família, entre outros, são tratados numa vertente onde se busca solidariedade dos deuses, dos antepassados e da própria comunidade do terreiro. O jogo de búzios é também um ato solidário, um ato de humanidade, de relação profunda como sagrado”. (3)


A história das casas de Candomblé, na cidade do Rio de Janeiro remonta a mudança do tráfico para a costa da mina e a vinda de negros Sudaneses para o Brasil, não só com toda uma bagagem de símbolos, ritos e identidade, mas também com uma tradição “de cultura elaborada e um forte sentimento nacional... prontos a se organizar separados, diversos, e da resistência cultural partir para revolta armada”.(4)

Logo, com as guerras santas islâmicas as Jihád, que no início do século XIX, fornecem escravos para Salvador, que trazem para o Brasil seu espírito guerreiro, sua capacidade de liderança e articulação, e a ideologia islâmica dos negros Haussas e Malês, que vieram junto com os seus adversários na África, os Iôrubas e os Jejes.
Com isso, desenvolve-se uma nova movimentação cultural em Salvador, na organização de cultos religiosos e sociedades secretas. Sendo assim, fica explicitada na composição social do negro baiano a idéia como as dos negros islâmicos de que a função do Estado é servir a lei divina, “implicando a conversão num projeto político de tomada de governo”.(5)

“repelidos pêlos fulás, os negros haussas caíram sobre o grande e poderoso reino central de Ioruba e destruíram-lhe a capital Oyó. No reinado de Arogamgam Ioruba perdeu, em 1807, a província Ilorim, cujo governador Afunjá, sobrinho do Rei, serviu-se dos haussas para torna-se independente. Os maometanos em 1825. Queimaram vivo o Afunjá e desde de então um rei ou governo muçulmano, Ilorim. Tornou-se pôr este modo um centro de propaganda do islamismo nos povos Iorubanos ou nagôs”.(6)


Contudo, Haussas e Nagôs, adversários comuns na África, mas reunidos no Brasil sob a mesma condição escrava, vão organizar uma revolta em 1809. Na expansão deste movimento, em 1835, aconteceria a união de “oito nações contra o poder colonial”(7). É a revolta Malê na Bahia.

“se a liderança guerreira era dos Haussas islâmicos, a vida religiosa nas cidades é redefinida com a chegada das grandes religiões dos Iorubas, seus Orixás conquistando os terreiros que batiam tarde da noite, disfarçados em meras reuniões festivas, mesmo nas casas dos Bantos, os Orixás e Iorubas passam a descer junto com as suas entidades, expressão das identidades e compatibilidades entre mística dos diversos africanos”.(8)


Verifica-se também que o culto Malê no Brasil, desenvolve-se a partir da existência das sociedades secretas, Nagôs Ogboni, Gueledê e Egungun, importantes segmentos organizados de mobilização política e cultural.

A partir da fundação do Candomblé do Iyá Omi Axé Airá Ontile, nas imediações da igreja da Boa Morte, situada no Bairro da Barroquinha - BA, onde ingressam no culto Iyá Nasô, que mais tarde torna-se Yalorixá, chefe de terreiro que, então, dá nome a uma nova casa o Ilê Iyá Nasô, de orientação Ioruba-Nagô, situando-se mais tarde no Engenho Velho, tornando-se assim um dos pilares da religião afro no Brasil e da sua resistência.

Depois da segunda metade do século XIX, com as sucessões e as cisões após a morte do chefe do terreiro, prática ancestral, fundar-se-iam outros Candomblés, como no caso do Ilê Iyá Nasô que vai originar o Iyá Omi Axé Iyá Massê no Rio Vermelho e mais tarde o Ilê Axé de Opô Afonja “...na sucessão de Mãe Ursolina, que Aninha filha do Bambochê lidera”.(9)

Logo, no Brasil a identidade dos grupos negros, alicerçada a partir das relações interétnicas e sociais, construídas no conjunto das representações conseguidas no cotidiano das irmandades religiosas e de cultos de todas as origens, configuram-se como elementos de integração e institucionalização desses cultos. Segundo a fonte do ISER(10):

Modelo Religioso
Nação
Texto Falado em Língua
Oração
Candomblé
Nagô/ Ketu
Yoruba
Oriki
Candomblé
Jeje-Nagô
Yoruba Ewe
Oriki
Candomblé
Angola
Banto
Ingorossi
Candomblé
Caboclo Banto
Banto / Português
Ingorossi Reza
Umbanda
-
Português
Reza


Logo, como podemos observar no quadro acima, a integração dos cultos e de suas variações, apesar das diferenças de nação ou mesmo das línguas faladas nos cultos, revelam sempre um caráter agregador dessas religiões africanas e afro-brasileiras.

Sendo assim, essas formas de núcleo vem reinventar as referências familiares e muitas vezes o próprio laço familiar, como na própria forma de tratamento Pai, Mãe e Filha de Santos, funcionando todavia como uma fórmula de vínculo social com uma lógica de organização do cotidiano na construção de uma vida em comunidade, e na reinvenção de formas, práticas de existência e resistênci a cultural e social, contra os padrões de comportamento impostos pelo Estado, nas palavras de Kátia Matoso:

“O negro deve abdicar de certas formas de seu mundo anterior, mas sua vida nova, se ela se integra bem pode oferecer-lhe outras riquezas e ganhos libertadores por serem criadores de um modo novo de pensar e, sobretudo novos laços afetivos”.(11)


Com isso, a partir desse redimensionamento das relações pessoais, cria-se no meio urbano em Salvador, não só novos cultos e novas formas religiosas, mas também um espaço de participação, memória e cultura, na medida em que esses povos trazem na bagagem suas crenças, símbolos, ritos e tradições além de sua visão mítica e a sua própria História. “Sendo, portanto centrais na história subalterna do Brasil”.(12)

Existiam também outros candomblés, como o Alaketo, o Olê Ogunja e outros com raízes de Angola, já praticados pelos grupos Bantos, chamados Candomblés de caboclos, que já constituíam-se com um caráter mais sincrético e da anterior miscigenação que sofrera o culto com a influência católica, sendo assim:

“O fenômeno do sincretismo é gerado pela repressão que se abatia sobre o negro e sua cultura, no Brasil esse processo se caracteriza pelo fato de que, para superarem a repressão religiosa, e a opressão catequética os diversos cultos negros foram introduzindo imagens de santos católicos capazes de fazer passar ao repressor, que era o culto a santos católicos que ali se processava...” (13)


O cenário urbano carioca dos subúrbios, além dos cortiços e favelas do centro da cidade, propiciam a instalação desses grupos de uma maneira semelhante a que tinham em Salvador, como no bairro do Engenho Velho, com todas as suas práticas e vivências cotidianas como na pequena África aonde os recém chegados na cidade recebiam a solidariedade dos já instalados.

Através de seus ritos, cultos e festas, que celebram a identidade do povo do santo e suas particularidades na forma de organização social, podemos destacar que os elementos do culto em geral, estavam instalados em cortiços e favelas, onde era prática comum oferecer estadia aos que chegavam. Os problemas com a Inspetoria Geral de Higiene eram constantes, por causa do problema da insalubridade, e com a polícia pela qual era exercido no meio urbano o controle social a essas “classes perigosas”, que são na sua maioria transeuntes e circulantes no meio urbano carioca com suas tradições e incorporações de novos elementos, a partir do cotidiano das ruas e dos cortiços.

Muitos habitavam a zona portuária, no bairro da Pedra do Sal, Saúde, Gamboa, Santana, Cidade Nova, onde a maioria estava ligado ao trabalho no porto, na estiva, no trapiche, e no comércio ambulante. As mulheres, em geral as tias baianas trabalhavam em atividades domésticas. Eram: lavadeiras, doceiras, costureiras “que transformavam as habitações coletivas em verdadeiras unidades administrativas (14)’’ e etc. capitalizando assim, várias dessas atividades, já que os empregos formais, em geral e as oportunidades eram oferecidos a sociedade branca que já estava estabelecida.

Dentro desse contexto, principalmente a partir do séc. XIX com o desenvolvimento da cultura do café, na região sudeste, o afluxo de negros para o Rio de Janeiro, e o aumento dos libertos, com a vinda da corrente migratória baiana, com intuito de tentar a vida na capital, foi criado um novo cenário na cidade e esse processo intensificou-se com a reforma urbana que sofreu a cidade no início do século XX. É onde o desejo de integração e a vontade de começar nova vida confundem-se e alimentam-se nessa cidade “Oásis” chamada Rio de Janeiro.

Tinha na Pedra do Sal, lá na Saúde, ali que era uma casa de baianos e africanos, quando chegavam da África ou da Bahia. Da casa dele se via o navio, aí já tinha o sinal que vinha chegando gente de lá.(...) Era uma bandeira branca, sinal de Oxalá avisando que vinha chegando gente. A casa era no morro era de um Africano, ele chamava Tia Dadá e ele Tio Ossum, eles davam agasalho, davam tudo até a pessoa se aprumar. (...) Tinha a primeira classe, era gente graúda, a baianada veio de qualquer maneira, a gente veio com a nossa roupa de pobre, e cada um juntou sua trouxa: “vamos embora para o Rio, porque lá no Rio agente vai ganhar um dinheiro, lá vai ser um lugar muito bom”.(...) Era barato a passagem, minha filha, quando não tinha, as irmãs inteiravam para ajudar na passagem. (15)
(Depoimento de Carmem Teixeira da Conceição, Arquivo Corisco Filmes)


Devido ao grande fluxo da corrente migratória baiana no Rio de Janeiro, no final do séc. XIX, início do século XX, e a integração desses grupos migratórios às populações pobres já existentes na cidade, com o seu sistema simbólico de crenças e valores, mudam a já em mutação paisagem urbana carioca.

No Rio de Janeiro os principais candomblés são o da casa de João Alabá, continuidade do candomblé-nagô “Quimbambochê ou Bambochê, iniciado na Saúde, e que ficava na rua S.Félix” (16). Tia Ciata de Oxum personagem conhecido do mundo carioca é iniciada na Bahia pôr Bambochê.

Com a sucessão de Mãe Sussu, do Ilê Axé Nasô, em dissidência na casa, funda-se em São Gonçalo do Retiro (Ba) o candomblé Ilê Axé de Opô Afonja que mais tarde abre uma casa no Rio de Janeiro, segundo depoimento de Dona Carmem citada pôr Roberto Moura: ‘‘esse terreiro teria sido visitado diversas vezes pôr João Alabá na Bahia", o que torna legítimo ser Ciata e sua gente baiana no Rio ligada ao tronco mais tradicional do candomblé nagô de Salvador”.(17)

Com isso, podemos perceber as redes de relações e laços de solidariedade que se articulam em torno do povo do santo, ou seja, no tocante a busca de uma maior participação social e inserção no meio urbano, “o candomblé pela suficiência de conteúdo sobre os ancestrais, deuses e homens, estes transitam em humanizadas relações em âmbito religioso, não se isolando do social, do político do econômico, do moral e do ético”.(18)

Nesse contexto, o que vemos é uma interação étnica e também religiosa dos diversos grupos das camadas populares, decorrente de uma verdadeira solidarização na miséria, buscando soluções próprias frente ao mundo de dificuldades, na qual as condições de vida e de trabalho tornam-se cada dia mais difíceis, pois na construção do novo espaço urbano e a criação de uma novo padrão estético, acrescido do adensamento habitacional e do crescimento urbano-industrial amparam um ideal de progresso construído a partir dos descaso das políticas públicas. Esses fatores são responsáveis por essa institucionalização das solidariedades na miséria na criação de leis próprias contra esse falta de enternece do poder público.

Luiz Edmundo nos conta de uma casa de culto na travessa do morro do Castelo. Segundo ele, a casa de ‘’João Gambá de Loanda’’, diz ser o culto de orientação Jeje-nago, mas na verdade pela descrição feita, já se trata de um culto miscigenado e mesclado com elementos católicos, logo pode nos servir de exemplo dessa transformação:

‘’Quando penetramos a sala principal onde a mesma se pratica já a encontramos a transbordar de gente... Lembrando o altar o de uma liturgia católica, junto à parede acaliçada e triste do terreiro”(19).


Já o cronista João do Rio, nos fala do culto malê e da religião dos Alufás, no Rio de Janeiro no seu livro As religiões do Rio, em uma série de reportagens publicadas em 1904:

‘’Os alufás... são maometanos com o fundo de misticismo. Quase todos dão para estudar a religião... Logo depois do suma ou batismo e da circuncisão ou Kola, os alufás habilitam-se à leitura do Alcorão. A sua obrigação é o Kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr do sol. Eu os vi retintos, com a cara reluzente entre as barbas brancas, fazendo alguma gariba, quando o crescente lunar aparecia no céu. Para essas preces, vestem abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram na cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o Kissium continua, sentados eles em pele de carneiro ou tigre...
Essas criaturas contam a noite o rosário de Teesubá, tem o preceito de não comer carne de porco, escrevem as orações numas tábuas, as Ato com tinta feita de arroz queimado e jejum com os Judeus, quarenta dias a fio.... tanto sua administração religiosa como a Judiciária estão pôr inteiro independentes da terra em que vivem.... Os Alufás não gostam de gente de Santo, a que chamam Adoxu; a gente do Santo desprezam os bichos que não comem porco, tratando-os de Malês. Mas acham–se todos relacionados pela língua, com costumes exteriores mias ou menos idênticos e vivendo de feitiçaria. (20)


Com isso, podemos enfim constatar esse elemento de representação popular no imaginário dessas populações, que são estereotipadas pela boa sociedade ou de gosto aburguesado, acrescidos dos problemas do subemprego e dos "desocupados" e vadios, numa associação à vadiagem àqueles que se identificam com esses grupos e culturas.

Logo, o candomblé e outras religiões afro-brasileiras como frutos dessa integração e miscigenação dos cultos, especificadamente a Umbanda que mistura elementos da religião ancestral, como candomblé, elementos do espiritualismo Kardecista, elementos de religiões orientais, e enfim configura-se como signo dessas transformações.

Sendo assim, como todas as representações de populares no meio urbano, as religiões, em forma de batuques e Afoxés, que são extensões dos Candomblés, eram sempre associados à idéia de desqualificação social desses indivíduos, partindo-se do pretexto das diferenças étnicas e culturais para a desqualificação dos mesmos frente à sociedade.

Para tanto, a mentalidade da elite letrada acerca da idealização do fenômeno das “classes perigosas” se configura num misto de medo, preconceito e opressão criando assim um imaginário de desqualificação, que é incessantemente veiculado pelas diversas instâncias da sociedade civil como nas revistas e jornais, reproduzindo assim as teorias dos intelectuais da época, como Lombroso, Ferri e Gobinou, através das representações da antropologia criminal e medicina legal, que ganha um espaço no meio intelectual brasileiro repercutindo nas instâncias de poder judiciário, onde Nina Rodrigues, maior teórico no Brasil desse pensamento, celebriza-se com suas teorias sobre a “hierarquia das raças” e “degenerescência da mestiçagem”.
Nas palavras do próprio Nina:

“A raça negra no Brasil, pôr maior que tenham sido seus incontestáveis serviços a nossa nação, pôr mais justificadas que sejam... de que cercou um revoltante abuso da escravidão... Há de se constituir num dos fatores de nossa inferioridade como povo”.(21)


Sendo assim, na continuidade desse processo de consolidação da República, onde a primeira constituição do regime de texto federalista, promulgado a 24 de fevereiro de 1891, nos tempos em que assume o governo em meio à crise, Floriano Peixoto o “Marechal de Ferro” com a repressão nas ruas, mais tarde a mesma repressão com Prudente de Morais, que aniquila o "mau exemplo" Canudos, mostra-nos mais uma vez, que esse governo deveria ser uma "coisa pública", ou seja, que essa administração do país atendesse aos interesses coletivos e não de grupos privilegiados, o que não se configura, pois esses governos sempre tenderam a beneficiar os interesses de grupos particulares, como na celebre frase de Campos Sales : “É de lá [dos estados ] que se governa a República, pôr cima das multidões, que tumultuam, agitadas, as ruas da capital e da União.’’

Nesse contexto, institualiza-se uma república onde a participação política e social é marcada pelos não direitos e a cidadania é privilégio de poucos e o problema de muitos, pois lutas e manifestações, sejam essas de cunho trabalhista ou popular, eram tratados como “caso de polícia”. De fato, a exclusão-marginalização social e política do povo tendem a gerar uma série de conflitos no meio urbano devido a uma política de não participação dos grupos populares. Logo, o Estado cria uma série de decretos, que tentam alijar os mesmos de uma vida pública participativa, como na capital da República, centro político, administrativo, econômico e cultural do país:

‘‘Os decretos promulgados pelo prefeito, sobretudo na fase inicial de seu governo, quando pode legislar ditatorialmente, atingiram os mais variados domínios da existência social e cultural da população, práticas do cotidiano popular e costumes profundamente arraigados foram considerados indignos de figurarem no contexto de cidade saneada e civilizada. Nessa perspectiva podem ser encaradas perseguição sistemática ao candomblé e aos cultos religiosos de origem africana.”(22)


Conquanto, através do afastamento sistemático desses populares do centro urbano, local de legítimo desfrute burguês, a avenida, os bulevares o teatro e etc, que o isolamento dessas “classes perigosas”, procura, sobretudo o disciplinamento, segundo um “discurso moralizador e autoritário ao extremo, segundo o qual o Estado discriminatóriamente deveria reformar os hábitos e a mentalidade dos “homens rudes do povo”.(23)

‘‘Não era de se esperar, igualmente, que essa sociedade tivesse tolerância para com as formas de cultura e religiosidade populares. Afinal, a luta contra a “caturrice”, “a doença”, o “atraso” e a “preguiça” era também uma luta contra as trevas... os cerceamentos a festa da Glória e o combate policial a todas as formas de religiosidade popular... as autoridades zelam na perseguição aos Candomblés, enquanto João Luso nas crônicas dominicais do jornal do Comércio manifesta o seu desassossego com a popularização crescente desse culto, inclusive dentre as camadas urbanizadas.”(24)


Enfim, esses elementos integrantes dos cultos são constantemente presos pela polícia no exercício de suas manifestações culturais e religiosas, não só na via pública, como também nos cortiços, local freqüente dos cultos. Logo, esses elementos são também enquadrados no código penal, responsabilizados e processados criminalmente, sendo então encaminhados pela polícia ou mesmo pela guarda municipal para as Pretorias Criminais e podendo ser levados a cumprir pena na Casa de Detenção ou nas Colônias Correcionais. Eram participantes de um mesmo conjunto de perseguidos e observados pelas autoridades segundo as práticas do controle social urbano. Nesse contexto, são atores de um mesmo processo histórico e político. Sendo assim, o Código Penal nos traduz as preocupações das autoridades político-jurídicas, e mesmo na sociedade civil refletia uma mentalidade de permanente vigilância aos setores constitutivos dos movimentos populares, vide o número de artigos que tratam da questão religiosa, art. 158, curandeirismo; art. 185, cultos religiosos: ultrajar objetos; art. 186: impedimento e etc. Além de serem freqüentemente enquadrados por algazarra, desordem e também por vadiagem, já que por definição o “vadio” era todo aquele que ocupasse a via pública, considerado suspeito pela tipologia policial e que não estivesse desenvolvendo uma atividade lícita, ou seja, um emprego reconhecido e que também, comprovasse domicílio certo, o que quase sempre não era de intenção dos policiais comprovarem.

“dessa forma a polícia tem nas mãos instrumentos de disciplinarização do conjunto das camadas populares que lhe permitem demarcar regras de comportamento no espaço urbano – ainda que precariamente. Empregando-as “estafadas chapas” de identificação como gatunos conhecidos, desordeiros ou vagabundos, é possível a polícia punir, mesmo fora do âmbito processual, aqueles que criam problemas para a vida na cidade”.(25)


Dessa forma, as manifestações populares serão vistas como um perigo eminente que habita o espaço urbano e onde a polícia através de uma série de ações rotinizadas procura exercer um controle social como nas festas populares: no caso a festa da Penha: “A festa da Penha, talvez a mais importante na época, provocava inquietação e planos com alguma antecedência”.(26)

Enfim, são nessas festas tomadas pelos costumes negros, que passam a ser no meio urbano espaços de representação social para camadas populares, e uma construção simbólica que reverberiza no imaginário carioca, e passa a construir a sua modernidade e identidade cultural, no âmbito das reinvenções e práticas transculturais na dimensão da sua ótica de cotidianidade como, no caso dos compositores populares que lançavam as suas músicas na festa da Penha, antes do advento do rádio. E era o acontecimento.

Contudo, percebemos os mecanismos excludentes que integram a arregimentação de normas, regras e práticas no combate as populações estereotipadas e marginalizadas, num processo bem marcado pelas tensões e conflitos que permeiam as representatividades no espaço urbano e que ocupa cotidianamente a construção de um ethos simbólico, marcado por um paradoxal conflito de tensão e integração.

 

NOTAS

1- CANDONBLÉ. sm . 1. Tradição religiosa de culto aos orixás jeje-nagô. 2. Celebração, festa desta tradição; 3. Comunidade terreira onde se realizam estas festas. De origem banta mas de étimo controverso. Para A . G Cunha é híbrido de candomblé * mais o iorubá ile, casa .Nascentes dá apenas a origem africana. Raymundo da ka + ndombe, com eptense do l . E Yeda P. de Castro aponta a seguinte evolução: ‘’ O termo candomblé (...) vem étimo banto ‘’ Kà – n – dómb – id – é > Kà – n – dómb – éd – é > Kà – n – dómb – el – é ‘’, derivado do verbal de‘’ Ku – lombo – à > Kù – dómb – à ”, louvar, rezar invocar, analisar a partir do protobanto “ Kò – n – dómb – éd – à ”, pedir pele intercessão de. Logo, candomblé é a culto, louvor, reza, invocação sendo o grupo consonantal - bl – uma forma brasileira, de vez que não existe nenhum grupo consonantal (CC) em banto. (Castro, 1983: 83-84), Vocabulário Banto do Brasil ( 1994 ); in : Sankofa : Resgate da Cultura Afro- Brasileira. (SEAFRO),Governo do Estado Rio de Janeiro,1994 . p.122.

2- FIGUEIRA, Creuza Stephen .GriÔ, . Programa Negritude Brasileira - ISER ano II – 7 ; Outubro 1994.p.1.

3- D’OSAYN, Ângelo .GriÔ,: Oráculo, de Ifá . Programa Negritude Brasileira - ISER ano II – 7 Outubro 1994.p.3

4- MOURA, Roberto - Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2a ed. Rio de Janeiro. Secretária Municipal de Cultura. Dep. Geral de Doc e InF. Cultural, Divisão de Editoração, Col. Biblioteca Carioca , 1995. p.20- 21

5- Idem.p.21

6- Ibidem. 22.

7- Ibidem p.22

8- Ibidem p.23

9- Ibidem p.25

10- LODY, Raul. Kulomba: Os territórios da oração no Candomblé Nagô. Iser, Projeto de Negritude Brasileira: Projeto a Ética e a Ótica do Santo, 1993. P.11

11- MATOSO, Kátia. Ser Escravo no Brasil. SP, Brasiliense, 1982. p. 123

12- MOURA, Op.cit. p. 25 , nota 4

13- LOPES, Helena Theodoro et al .Negro e Cultura no Brasil: Pequena Enciclopédia da Cultura Brasileira . RJ Unibrade, 1987 p.63

14- MOURA. Op. Cit. P.54 nota 4

15- MOURA. Op Cit. p. 43 nota 4

16- MOURA. Op. cit, p. 98 nota 4

17- MOURA. Op Cit, p. 98 nota quatro

18- LODY. Op Cit p.04 nota 10

19- EDMUNDO, Luís. No Rio de Janeiro do Meu Tempo. RJ; Imprensa Nacional, 1938 v.dois. p. 233

20- RIO, João. As Religiões do Rio, Garnier, 1904.P. 105

21- RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. SP; Nacional, 1935.p 07

22- BENCHIMOL, Jaime Larry - Pereira Passos - Um Haussann Tropical; As Transformações Urbanas na Cidade do Rio de Janeiro no Início do Século XX. Coppe \ UFRJ, Rio de Janeiro, 1982. . p 284-285

23- Ibidem. P 284-285

24- SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República Ed Brasilense 3a ed. 1983.p 33

25- BRETAS, Marco Luiz, A Guerra das Ruas: O povo e a polícia na cidade do Rio de janeiro, RJ. Arquivo Nacional, 1997.P. 104

26- CARVALHO, José Murilo Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. SP Cia das Letras, 1987. P. 141

 

*
Este artigo é parte integrante do trabalho de pós-graduação do autor, Marco A. B. de Almeida, em Sociologia Urbana da UERJ, sob a orientação da professora Lená Medeiros de Menezes, do Departamento de História da UERJ.

 

MARCO A.B. DE ALMEIDA.
PROFESSOR E PESQUISADOR NA ÁREA DE HISTÓRIA SOCIAL

 


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