Preâmbulo
Há muito tempo atrás os cristãos acreditavam
na reencarnação. Essa é a conclusão
da escritora americana Elizabeth Clare Prophet, em seu livro "Reencarnação:
o elo perdido do cristianismo". A obra é
uma análise histórica da reencarnação,
especialmente, a partir do cristianismo até os concílios
da Igreja e a perseguição aos hereges.
A autora,
embora utilizando uma fonte bibliográfica extremamente
rica e usando uma terminologia eminentemente espírita (reencarnação,
mundo espiritual...) não faz nenhuma referência ao
Espiritismo.
De qualquer
forma, iremos refletir, dentro dessa breve historiografia de idéias
sobre a reencarnação, a proposta espírita,
oportunizando, na atualidade, a continuação dos
ensinos de Jesus sobre as vidas sucessivas.
O Novo Testamento
O principal alvo de debates sobre a reencarnação
no Novo Testamento está centralizado nas passagens que
se referem a João Batista como sendo a reencarnação
do profeta Elias. O tema é abordado três vezes nos
Evangelhos. Vejamos.
A primeira, quando João está pregando no deserto
e os sacerdotes e levitas chegam para interrogá-lo. Ele
então nega ser Elias. Mas identifica-se como ' a voz do
que clama no deserto...'" (E.S.E. cap. XV). No entanto, para
os judeus essa "voz" havia sido prevista pelo profeta
Malaquias como sendo a "voz" do precursor do Messias,
identificado como Elias.
Segundo Elizabeth, João, por certo, teve um bom motivo
para responder dessa forma. Negou ser Elias para evitar reações
das autoridades políticas e religiosas, que mais tarde
o decapitaram, mas, ao mesmo tempo, confirmou "veladamente"
a sua reencarnação para tranqüilizar seus seguidores.
Jesus afirmou que João Batista era a Reencarnação
de Elias.
Observemos que, nas outras duas vezes em que a questão
sobre Elias aparece, é o próprio Jesus a declara
que João era Elias que "retornara". A primeira
vez é quando João está na prisão e
Jesus publicamente faz essa referência: "Porque todos
os profetas e a lei profetizaram até João. E, se
quereis dar crédito, é este o Elias que havia de
vir". (E.S.E. cap. XV, 8 a 10)
Após a morte de João Batista, vamos encontrar a
cena da transfiguração de Jesus no monte Tabor.
Quando Jesus se transfigura, então Elias e Moisés
aparecem e falam com Jesus. Quando descem do monte, os discípulos
perguntam-lhe: "Porque dizem os escribas que é
necessário que Elias venha primeiro?". em outras
palavras: Se Elias deveria vir primeiro, como profeta, para preparar
o caminho para a sua vinda, então por que ele aparece em
seu corpo espiritual?
"O que está fazendo no 'céu' se ainda não
o vimos na Terra?" Segundo a narrativa de Marcos, Jesus
responde: "(...) Digo-vos, porém, que Elias já
veio, e fizeram-lhe tudo o que quiseram, como dele está
escrito". Mateus apresenta a mesma história,
acrescentando a seguinte frase: "Então entenderam
os discípulos que lhes falara de João Batista."
De acordo com Elizabeth, "os discípulos provavelmente
entenderam que a declaração de Jesus ' fizeram-lhe
tudo o que quiseram' referia-se à decapitação
de João, por ordem do rei Herodes Antipas.
Observando-se apenas esses três relatos, é razoável
concluir-se que o princípio da reencarnação
fazia parte dos ensinos de Jesus, como um mecanismo natural da
lei do progresso e da evolução.
Muitos estudiosos, contrários à idéias da
pluralidade das existências, acreditam que a questão
da reencarnação de Elias em João, e sua referência
por Jesus, na verdade, teria sido acrescentada pelos autores dos
Evangelho, ou mesmo, pelos tradutores. Se analisarmos essa questão
do ponto de vista meramente histórico, realmente tornar-se-ia
difícil chegar a uma conclusão absoluta e irretoquível.
Primeiro, porque as fontes primárias não foram conservadas,
e segundo, porque os autores dos Evangelhos não eram historiadores,
mas pessoas com limitações naturais de conhecimento
e que puderam conservar pela memória, e/ou pelas tradições
orais, os ensinamentos que Jesus lhes havia ministrado. As palavras
do Cristo, disseminadas ao longo do tempo, foram transmitidas
de boca em boca, e, posteriormente, transcritas em diferentes
épocas, muito tempo depois de sua morte.
Não obstante a contribuição da Doutrina Espírita,
nessa e em outras tantas questões, é realmente notável.
Allan Kardec, em "O Evangelho Segundo o Espiritismo",
no cap. IV, após analisar as informações
dos espíritos superiores encarregados de orientar a codificação
do Espiritismo, reafirma:
"A idéia de que João Batista era Elias
e de que os profetas podiam reviver na Terra se nos depara em
muitas passagens dos Evangelhos(...). Se fosse errônea essa
crença, Jesus não houvera deixado de a combater,
como combateu tantas outras e a põe por princípio
e como condição necessária, quando diz: "Ninguém
pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.'
E insiste, acrescentando: Não te admires de que eu te haja
dito ser preciso nasças de novo".
Em "O Livro dos Espíritos",
questão 222, novamente afirmou: "Muitos repelem
a idéia da reencarnação pelo só motivo
de ela não lhes convir.(...) De alguns sabemos que saltam
em fúria só com o pensarem que tenham de voltar
à Terra.".
Os Alexandrinos
Retornando a nossa análise história, encontraremos
Filon de Alexandria (20 a.C. - 50d.C.), filósofo judeu
e contemporâneo de Jesus, cujas idéias a respeito
do objetivo da vida situava-se na própria integração
com Deus através de sucessivas existências; teve
um papel muito importante na combinação dos pensamentos
grego e judaico. Filon e sua escola de pensamento davam uma interpretação
alegórica do Antigo Testamento, conferindo-lhe um significado
simbólico. A reencarnação fazia parte de
sua visão filosófica sobre a vida: "As
(almas) que se deixam influenciar pelo desejo de uma vida mortal(...)
retornam a ela" - escreveu ele. Filon viveu na cidade
de Alexandria, próximo do delta do Nilo, famosa por sua
biblioteca e por ser um grande centro intelectual da época.
Suas idéias influenciaram profundamente alguns patriarcas
da igreja romana: Clemente de Alexandria, Orígenes e Ambrório.
Filon era um erudito que acreditava e ensinava que o ser humano
pode chegar a Deus pela sabedoria e pela transcendência.
Segundo Elizabeth, Orígenes (185 a 254 d.C.), que viveu
em Alexandria, ao estudar os textos de Filon, em conjunto com
os clássicos gregos de Platão e Pitágoras,
passou a associar a idéia da justiça divina com
a idéia das vidas sucessivas, fazendo a seguinte indagação:
"se as almas não existiam previamente, por que
encontramos cegos de nascença que nunca pecaram, enquanto
outros nascem sãos?". Logicamente, chegava a
conclusão de que a situação atual da criatura
humana é oriunda, também, de suas ações
pretéritas de outras vidas:
"Se o nosso destino atual não fosse determinado pelas
obras de nossas passadas existências, como poderia Deus
ser justo, permitindo que o primogênito servisse o mais
moço e fosse odiado, antes de haver praticado atos que
merecessem a servidão e o ódio? Só as vidas
anteriores podem explicar a luta de Esáu e Jacó,
(...) e outros tantos fatos que seriam o opróbrio da justiça
divina, se não fosse justificados pelas ações
boas ou más praticadas em anteriores existências".
A partir do século IV, no entanto, a idéia das vidas
sucessivas, que era naturalmente difundida, mexeria profundamente
com as estruturas de interesse da igreja romana. Um padre chamado
Ário, que viveu de 250 d.C. - 336 d.C., nascido no Líbano,
ensinava que Jesus era filho de Deus; logo, Jesus teve um princípio.
A proposta de Jesus seria nos ensinar como chegar a Ele. Ário
defendia que isso seria possível através de sucessivas
existências físicas. As idéias arianistas
ensejaram o concílio de Nicéia, uma cidade a beira
de um lago a sudeste de Constantinopla, em junho de 325. O ponto
central dos debates era se Jesus havia sido criado ou não.
Se houvera sido criado, conforme entendiam os arianistas, então
o progresso poderia ser alcançado por nós se seguíssemos
simples e tão somente, os seus ensinamentos. Mas se ele
não houvesse sido criado, sendo portanto igual a Deus,
como desejavam os ortodoxos, seria totalmente distinto da criação.
Nesse caso, a criatura humana para atingir a "salvação"
dependeria exclusivamente da subserviência aos princípios
da igreja romana. É claro que o concílio rejeitou
a primeira idéia e aprovou a segunda. Com isso as idéias
de Ário tornaram-se heréticas e suas obras proibidas.
Anatematizando a Reencarnação
Orígenes, que havia concordado com Ário que o objetivo
de Jesus era ensinar os seres humanos como atingir a divindade,
discrepando dos ortodoxos literaristas, seria sistematicamente
condenado em suas idéias entre os séculos V e VI.
Justiniano (527-565 d.C.), imperador romano, por volta da primeira
metade do século VI, tomou o partido dos antiorigenistas,
promulgando um édito onde condenou dez princípios
ensinados por Orígenes, inclusive a pluralidade das existências.
No entanto, somente no ano 553, ao convocar o Quinto Concílio
Geral da Igreja, o princípio da reencarnação
seria definitivamente abolido. Esse concílio incluía
efetivamente o origenismo na lista dos movimentos heréticos:
"se alguém afirmar a fictícia preexistência
das almas, afirmará a monstruosa restauração
que dela decorre que seja anatematizado" (Restauração"
significa o retorno da alma à união com Deus).
A princípio, Agostinho lutou contra a permanência
do conceito de reencarnação na doutrina da Igreja.
Naturalmente a visão reencarnacionista ensejava, desde
os seus primórdios, a concepção do ser humano
ser autor de seu próprio destino e, portanto, dependeria
somente do indivíduo e seu livre-arbítrio, lograr
o progresso ou a "salvação", e de mais
ninguém. Evidentemente essa proposta desarticulava os interesses
de supremacia político-religiosos da época. Tanto
é verdade que Agostinho (354-430 d.C.) chegou a escrever
uma carta ao Papa Inocêncio I, advertindo-o sobre a necessidade
de condenar-se as idéias sobre as vidas sucessivas, sob
pena de a Igreja perder a sua própria autoridade. Logo,
o princípio do esforço pessoal e não simplesmente
a aceitação de regras impostas colidia diretamente
com o "fora da igreja não há salvação".
Com a rejeição da reencarnação, a
igreja teve que encontrar uma outra explicação para
a ocorrência de fatos negativos a pessoas boas. Sem as ações
passadas para explicar as diferenças entre os destinos,
restou à igreja aceitar a doutrina do pecado original elaborada
por Agostinho, que se tornou o mais influente teólogo da
igreja. Assim se expressa Elizabeth: "O pecado original também
era um conceito atraente para os governantes seculares. Como a
doutrina firmava que o homem era naturalmente mau, ele seria,
obviamente, incapaz de governar a si próprio. Assim, deveria
obedecer os seus governantes(...) Certamente foi uma ideologia
que servia às necessidades das classes dominantes da sociedade
romana".
Agostinho, o retorno à reencarnação
Agostinho passou nove anos adepto do maniqueísmo, que combinava
idéias cristãs, gnósticas e budistas, antes
de voltar-se para o cristianismo. Certamente, nesse período,
manteve contato com as idéias reencarnacionistas, uma vez
que esse princípio fazia parte dos ensinamentos do profeta
Mani. Todavia, com a elaboração de sua teologia
a posteriori, deixou-se envolver pelos conflitos pessoais e negativistas
que somente a obra do tempo poderia retificar. Foi assim que,
com o passar dos séculos, Agostinho aprimorando seus paradigmas
sobre os mecanismos pelos quais a justiça divina se manifesta,
retornaria ao cenário do mundo, na segunda metade do século
XIX, na tarefa de "reascender" na Terra o elo, não
"perdido", mas "esquecido" do cristianismo:
a reencarnação. Ao compor a plêiade de espíritos
superiores que orientaram o trabalho de Allan Kardec na codificação
do Espiritismo, Agostinho tem oportunidade de afirmar: "Como
é bela essa missão! Assim, com que alegria vimos
a vós para vos dar a conhecer os desígnios divinos!
Para vos revelar as maravilhas do além-túmulo! Mas
vós, que já sois iniciados nessas sublimes verdades,
espalhai a semente em vosso derredor e a recompensa será
bela".
A Reencarnação dignifica a Vida
Consubstanciando a Lei do Progresso, a reencarnação
propicia sentido à existência humana. O seu princípio
está na natureza, e, como tal, não pode ser excluído
pelo ser humano. Variando-se as culturas e o tempo, a idéia
reencarnacionista sempre acompanhou e acompanhará o pensamento
humano ao longo de sua historiografia. Cabe ressaltar que a Doutrina
Espírita, representando a síntese do conhecimento
humano, em suas expressões científica, filosófica
e religiosa, oportuniza uma cosmovisão da vida e, pelo
apelo que faz à razão e ao bom-senso, estimula o
ser humano à ação do bem: "Fora
da Caridade não há salvação",
isto é, o Espiritismo não diz que fora dele não
há salvação, mas apresenta-nos a caridade,
como normativa natural de libertação dos ciclos
reencarnatórios em desajustes, convidando-nos à
plenitude e, portanto, ao aproveitamento máximo de nossa
atual existência.
Autor: Jerri Roberto S. de Almeida
- Professor de História e dirigente Espírita) (Revista
"A Reencarnação", nº 421)