Alexandre
Magno Fernandes Moreira Aguiar
> Imaginação e realidade - Réplica
ao artigo “Direito fundamental ao aborto”, de Maria Berenice
Dias
Imaginação e realidade
Réplica ao artigo “Direito fundamental ao aborto”,
de Maria Berenice Dias
Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10828
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Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar
procurador do Banco Central do Brasil em Brasília (DF), especialista
em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio
de Sá, professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade
Paulista (Unip) e nos cursos preparatórios Objetivo e Pró-Cursos
Recentemente, foi divulgado em vários
sites da internet um artigo em que a desembargadora gaúcha
e vice-presidente do Ibdfam (Instituto Brasileiro de Direito de
Família), Maria Berenice Dias, defende ardorosamente o aborto, chegando
a chamá-lo de "direito fundamental". Veremos que o texto
tem muito mais de imaginação do que de realidade.
- link do artigo citado: href="http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10810
Já no primeiro parágrafo, a autora
usa de uma frase de efeito e de um lugar-comum: "Aborto é crime?
Diz o Código Penal que sim, mas a sociedade esta (sic) reclamando
sua descriminalização".
A primeira frase é uma obviedade
em um Estado de Direito: sim, crime é aquilo que está previsto como
tal no Código Penal, assim como em qualquer outra lei. Porém, um
fato tipificado em lei pode não ser crime se ocorrerem as excludentes
de tipicidade, ilicitude ou mesmo de culpabilidade – e xcludentes,
essas, previstas, em regra, na própria lei. Portanto, não é o desejo
de alguém que torna determinado fato lícito ou ilícito, criminoso
ou não, mas a própria lei, que não se deve curvar à ideologia de
quem pretende esticar a hermenêutica além dos limites aceitáveis.
Exemplos disso são o adultério e a sedução, crimes cuja existência
era duramente criticada pela doutrina, mas que só deixaram de existir
em 2005, devido a uma lei revogadora.
A segunda assertiva chega a ser
surreal. A autora diz que a sociedade "reclama" a descriminalização
do aborto. É difícil saber de que sociedade ela fala. Decerto, não
é a brasileira. Se considerarmos "sociedade" como sinônimo de opinião
pública, é interessante observarmos a recente pesquisa do Ibope
sobre aborto. A pergunta foi a seguinte: "Atualmente, no Brasil,
o aborto só é permitido em dois casos: gravidez resultante de estupro
e para salvar a vida da mulher. Na sua opinião, a lei deveria ampliar
a permissão para o aborto? Deveria continuar como está ou deveria
proibir o aborto em qualquer caso?" As respostas não poderiam ser
mais contundentes: 53% do entrevistados consideram que a legislação
deve ser mantida; 34% consideram que o aborto deve ser proibido
em qualquer situação; e apenas 10% consideram que as hipóteses
de aborto legal devem ser ampliadas. A não ser que a autora
considere que "sociedade" é simplesmente o conjunto dos movimentos
de esquerda, que apóiam maciçamente o aborto, estamos diante de
um erro crasso, quando não de pura e simples má-fé.
É interessante a "força jurídica"
que a autora concede à religião: "Mas não se pode esquecer que
o Código Penal data do ano de 1940, época em que a sociedade estava
de tal modo condicionada a preceitos conservadores de origem religiosa,
que outra não poderia ter sido a escolha do legislador". É bom
lembrar que o Catecismo da Igreja Católica, que congregava a quase
totalidade dos brasileiros à época, é incisivo ao repudiar qualquer
espécie de aborto, inclusive aquele cometido quando a gravidez é
resultante de estupro. A proibição é absoluta e peremptória. Vejamos:
"A
vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta
a partir do momento da concepção. Desde o primeiro momento de sua
existência, o ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos
de pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo ser inocente
à vida" (§ 2.270).
A autora continua afirmando, sem
comprovação nenhuma, que o aborto sentimental foi permitido no Código
Penal de 1940 apenas para preservar o patrimônio familiar: "Tal
exceção visa a permitir que não integre a família um ‘bastardo’,
pois a lei civil presume que o marido de uma mulher casada é o pai
de seu filho. Assim, a gravidez, mesmo decorrente de violência sexual,
faz com que o filho do estuprador seja reconhecido como filho do
marido da vítima e herdeiro do patrimônio familiar. Essa é a justificativa
para a possibilidade do chamado aborto sentimental, apesar de não
haver nenhuma preocupação com o sentimento da vítima".
O que é impressionante nesse ponto
é o poder da autora de "ler a mente" do legislador de 1940. Esse
argumento utilizado não se encontra na Exposição de Motivos do Código
Penal, nem ao menos em nenhum livro conhecido de Direito Penal.
Pelo contrário, os penalistas têm um ponto de vista marcadante a
favor da mulher estuprada. Por todos, cito o mais clássico, Nelson
Hungria (apud Greco, 2007, p. 253):
"Nada justifica que se obrigue
a mulher estuprada a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida
a um ser que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da
violência sofrida. Segundo Binding, seria profundamente iníqua a
terrível exigência do direito de que a mulher suporte o fruto de
sua involuntária desonra".
Podemos recuar mais ainda no tempo
e verificar que Galdino Siqueira (1921, p. 594), ao comentar o Código
de 1890, não faz nenhuma referência à herança familiar, mas refere-se
ao bem-estar da mulher:
"o
sujeito passivo do crime é também a mulher, cuja vida é posta em
perigo, senão mesmo em muitos casos também destruída, e, assim,
o crime assumindo o caráter de periclitação da vida".
Mesmo em termos civilistas,
a argumentação é falha. A presunção de paternidade durante o casamento
nunca foi absoluta, mas relativa, ou seja, sempre se admitiu prova
em contrário. Se a gravidez é resultante de estupro, essa prova
costuma ser bem evidente. Ninguém nunca foi obrigado a acolher em
seu lar um filho que comprovadamente não é seu. Se a questão fosse
de cunho patrimonial, seria suficiente que o "bastardo" fosse
dado à adoção.
Nem sempre a gravidez resultante
de estupro foi motivo para a impunidade do aborto. Pelo contrário.
Ao tempo do primeiro Código Penal da República (1890), a única hipótese
de aborto impune é aquele praticado para salvar a vida da mãe (aborto
terapêutico). Somente em 1940, o aborto sentimental deixou de ser
considerado crime. Se nossa sociedade fosse, à época, tão conservadora
e religiosa quanto a autora acredita, essa hipótese de impunidade
do aborto nem teria sido cogitada.
Em seguida, a autora parece querer
um novo conceito para "vida":
"Sequer quando modernas
técnicas de ultra-sonografia possibilitam identificar que está sendo
gestado um ser sem vida, por ausência de cérebro (má formação que
recebe o nome de anencefalia), preocupa-se a lei em esclarecer
que a antecipação terapêutica da gestão não configura aborto em
face da inexistência de vida a ser preservada."
"Vida"
é um conceito pertencente à Biologia. Apesar de haver profundas
divergências, considera-se geralmente que a vida é um complexo formado
por certos atributos como crescimento, metabolismo, movimento, etc.
Em nenhuma hipótese, as ciências biológicas incluem a existência
de cérebro como requisito para a vida. Se fosse pelo critério defendido
pela autora, a totalidade das plantas e a maior parte dos animais
não seriam seres vivos. O feto anencéfalo é, biologicamente, um
ser vivo. Porém, a questão a ser discutida não é essa. O que tem-se
debatido é se essa vida, por ser inviável, merece proteção jurídica.
Nesse ponto, existem razoáveis argumentos a favor do aborto, que,
pela exigüidade deste trabalho, não cabe aqui discuti-los.
A
autora abusa de um recurso retórico: a ampliação indevida dos argumentos.
No ponto a seguir, ela utiliza idéias relacionadas apenas com o
aborto quando a gravidez é decorrente de estupro e tenta utilizá-las
para qualquer discussão referente ao aborto: "Porém, independente
do conteúdo punitivo de natureza penal a criminalização do aborto
não tem caráter repressivo, porque nem toda gravidez decorre de
uma opção livre. Basta ver os surpreendentes índices da violência
doméstica e da violência sexual".
Ora,
é correto dizer que nem toda gravidez decorre de uma opção livre
(aliás, haveria uma "opção não-livre"?). Esse é exatamente o caso
da gravidez resultante de estupro, na qual o aborto é impune. E,
mesmo que o aborto fosse proibido, nesse caso também, a função da
incriminação seria, obviamente, repressiva. Incrimina-se uma conduta
para reprimi-la, desestimulá-la. Esse é o objetivo básico do Direito
Penal: reprimir condutas que lesam ou ameaçam bens considerados
relevantes pela sociedade. E, como visto anteriormente, a sociedade
brasileira considera, sim, que a vida do feto é digna de ser protegida
penalmente.
É
interessante que a autora dá uma dimensão quase religiosa ao aborto
ao afirmar que "as mulheres conciliam fé, moral e ética com a
decisão de abortar". Considero um ato de bom senso deixar a
fé fora disso, pois todas as grandes religiões são contrárias ao
aborto e todos os argumentos favoráveis a ele advêm de fontes seculares
ou mesmo manifestamente atéias.
Palavras
vazias de significado permeiam todo o texto: "A situação de submissão
que o modelo patriarcal da família ainda impõe à mulher não lhe
permite negar-se ao contato sexual". Gostaria de saber o que
ela entende por "modelo patriarcal". Por um acaso o homem
de hoje, em regra, submete as mulheres a algum tipo de domínio ou
mesmo de escravidão? Ou ainda teríamos algo como o pater familias
dos romanos, em que o pai tinha o direito de vida e morte sobre
os outros membros da família? É plausível dizer que as mulheres
não têm o direito de negar-se ao ato sexual?
Recomendo
fortemente à autora que leia um livrinho escrito por Esther Vilar,
cuja tradução em português é "O homem dominado". Ela descreve um
mundo radicalmente diferente daquele que a autora acredita existir.
Um dos pontos altos do livro é a lista das desvantagens do homem
moderno frente à mulher:
- os homens são obrigatoriamente alistados nas Forças Armadas;
as mulheres são livres para escolher;
- os homens são mandados para a linha de frente nas guerras, enquanto
as mulheres são preservadas;
- os homens aposentam-se mais tarde do que as mulheres, apesar
de viverem menos (no Brasil, a aposentadoria da mulher antecede
à do homem em cinco anos e sua expectativa de vida é sete anos
maior);
- os homens, praticamente, não têm influência sobre a reprodução.
A decisão a respeito da gravidez e da sua continuidade é quase
exclusivamente feminina;
- é bastante comum que homens sustentem mulheres. Mesmo as mulheres
que têm melhor condição financeira comumente recebem recursos
de seus parceiros. As mulheres raramente sustentam seus parceiros
e, quando o fazem, é por um período bastante limitado de tempo;
- homens tendem a trabalhar a vida toda, enquanto as mulheres
ocupam empregos de meio expediente ou não trabalham. Essa é uma
das razões pelas quais há predominância feminina na maior parte
das instituições de ensino, pois os homens são constrangidos desde
cedo a trabalhar.
- em caso de separação, os filhos, automaticamente, ficam com
a mulher. A guarda do pai costuma ser deferida normalmente em
casos aberrantes, como alcoolismo ou vício em drogas por parte
da mulher. Na prática, os homens têm apenas o direito de "pegar
emprestados" seus filhos.
Mas a imaginação da autora vai longe,
pois assevera que "persiste ainda a infundada crença de que o
chamado débito conjugal faz parte dos deveres do casamento".
Gostaria sinceramente de ser apresentado a algum autor da atualidade
que defenda essa posição. Ou haveria alguma pesquisa com o público
masculino na qual foi extraída essa afirmativa?
Uma estratégia interessante é dar
uma força desproporcionalmente grande ao "inimigo", no caso,
a Igreja Católica. É bem sabida sua oposição ao uso de métodos anticoncepcionais
artificiais, mas não se pode dizer que "A vedação de origem religiosa
ao uso de métodos contraceptivos submete a mulher à prática sexual
sem que possa exigir o uso da popular camisinha"! Estaríamos
em um país teocrático em que toda população é obrigada a seguir
os ditames de determinada religião? Ora, o absurdo da proposição
é bem demonstrado em pesquisa recente na qual 96% dos jovens católicos
declararam-se favoráveis ao uso da camisinha! Esteja certo ou não,
esse preceito católico simplesmente não encontra eco em nossa sociedade
e seu efeito prático, para o bem ou para o mal, é pífio.
É impressionante verificar que,
na visão da autora, a mulher é um ser totalmente desprovido de vontade
própria, que só faz sexo forçada e que não tem controle nenhum sobre
sua reprodução. A conclusão implícita, bem à maneira das feministas
radicais, é bem simples: todo ato sexual é, em maior ou menor grau,
uma forma de estupro, pois a mulher é simplesmente submetida à vontade
masculina. A proposição é tão aberrante que torna desnecessário
qualquer argumento em contrário.
O artigo continua afirmando a total
prevalência da liberdade, da dignidade feminina e do planejamento
familiar. Lamentavelmente, ela nem se deu ao trabalho tentar contrapor
o direito à vida e à dignidade do nascituro ao princípio da auto-responsabilidade
individual. Se o sexo é um ato geralmente voluntário e as informações
sobre contraceptivos estão bem disseminadas na sociedade, o homem
e a mulher devem assumir os riscos de seu ato. É difícil conceber,
atualmente, uma gravidez totalmente involuntária. Utilizando um
termo penal, poderíamos dizer que há, comumente, um "dolo eventual",
no qual o agente previu que o resultado provavelmente aconteceria
e, mesmo assim, praticou-o. Assumiu, portanto, o risco de produzir
o resultado.
O magistério de Manoel Jorge e Silva
Neto (2006, p. 526) resume bem a questão:
"Da nossa parte, concluímos
que não há razão para admitir-se o aborto como apanágio da idéia
de que o feto é extensão do corpo da mulher, de vendo sobre ela,
exclusivamente, recair a decisão sobre manter ou não o estado gravídico,
porque, ponderando-se os bens em questão (aborto como reflexo da
autonomia feminina sobre o próprio corpo X direito à vida do nascituro),
tem-se que não se poderá prestigiar um bem de modo absoluto em detrimento
do outro (...) Logo, ponderados os direitos em questão, conclui-se
que a preservação do feto se impõe, não importando desprezo à autonomia
da mulher devido à variedade e elevado grau de eficácia dos métodos
contraceptivos".
O texto termina com uma frase
lapidar, na qual a autora conclama para que se reconheça o aborto
como um fato social existente. Ora, claro que é! O Direito não faz
suas regras visando a "fatos inexistentes". Seria um absoluto
contra-senso! Ora, homicídio, estupro e violência também são fatos
sociais existentes em quaisquer sociedades. Por um acaso, essa abrangência
universal torna-os corretos? Considero desnecessário responder.
Enfim, a questão do aborto é bem
mais complexa do que a autora quer fazer parecer. Apesar de ser
contrário ao aborto, considero que existem argumentos bastante razoáveis
por parte daqueles que são favoráveis. Todas essas idéias devem
ser debatidas. É exatamente no diálogo que se constrói a democracia.
Porém, defender idéias simplistas (como "o aborto é um fato social"),
falsas (como "a sociedade reclama a descriminalização")
e mesmo sectárias (no estilo "revolta das mulheres dominadas contra
os homens dominadores") rebaixa o nível do debate e serve apenas
para atiçar pessoas suscetíveis a belas e vazias palavras de ordem.
"Assim que é concebido,
um homem é um homem" (Prof. Jerôme Lejeune, Pai
da Genética Moderna).
"O aborto não é, como
dizem, simplesmente um assassinato. É um roubo.. Nem pode
haver roubo maior. Porque, ao malogrado nascituro, rouba-se-lhe
este mundo, o céu, as estrelas, o universo, tudo. O aborto
é o roubo infinito". (Mário Quintana)
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