Uma das coisas mais complexas no cotidiano de uma
Casa Espírita é administrar as diferenças comportamentais
entre os trabalhadores. Aqui e ali, por um motivo ou por outro, pipocam
os atritos e melindres, muitas vezes encobertos pelo silêncio
em nome da “caridade”, mas evidentes nos olhares atravessados,
nos recadinhos indiretos e não raras vezes no afastamento inexplicável
daquele companheiro que parecia tão entusiasmado... Quando
chega a este ponto é que a guerra de persona, idéias
e vibrações já atingiu o seu ponto máximo.
Não desanimemos. Onde há gente há
problemas. Graças a Deus!... Porque onde há gente há
também muito trabalho a ser feito e muita oportunidade de crescimento
espiritual em contato com o outro. A grande questão é
como trabalhar as tais diferenças de forma que, apesar delas,
haja uma convivência realmente fraterna e saudável sem
prejuízo do trabalho.
Todos somos diferentes e isso obedece a um propósito Divino.
A natureza é assim. Se os iguais se atraem, os diferentes se
complementam. Aquilo que para mim é prazeroso e fácil
de realizar, já não é para o outro e vice-versa.
É preciso apenas saber identificar, respeitar e integrar essas
diferenças, abandonando aquele equivocado conceito de uniformidade
que robotiza, que exige consenso em nome de uma harmonia questionável
e disponibilidade integral em nome da dedicação; Que
deixa implícita a exigência de todos rezarmos na mesma
cartilha e de estarmos aptos e disponíveis todo o tempo a todo
o tipo de tarefa na Casa Espírita se quisermos figurar no rol
dos “trabalhadores da última hora”, dos “escolhidos”.
Pronto. Já temos aí o esteriótipo criado e “sacramentado”.
Quem não se enquadrar está fora.
Este é o ponto. Os problemas nos Grupos Espíritas acontecem
não por causa das diferenças, mas pela nossa inabilidade
em trabalhar com elas enquanto trabalhadores e lideranças.
Lembremos que a diversidade das flores e ramagens é que confere
a beleza e harmonia que nos encanta num jardim, mas por trás
de tudo está o trabalho do paisagista, que traçou canteiros
e reuniu espécies, combinando cores, formas e, sobretudo, considerando
os níveis de resistência e fragilidade para dispor a
localização de cada planta. O mesmo se dá na
Instituição Espírita. Companheiros com características
diversas de personalidade, amadurecimento e aptidão podem estabelecer
uma perfeita harmonia em sua diversidade. Mas o “paisagismo”
cabe aos dirigentes.
Quem não conhece no seu grupo, por exemplo, alguém que
se encaixe no perfil trabalhador “Faz-tudo”? Isso mesmo.
Ele parece ter mil e uma utilidades. Dinâmico, disponível,
ágil, este companheiro pode ser extremamente útil na
execução de atividades práticas. Mas não
o chame para reuniões de planejamento porque ou não
vai comparecer ou vai cochilar. Para ele é um martírio
ficar parado.
Já tem aquele que é o “viajante de plantão”;
é aquele companheiro idealista, que sonha, faz projetos para
o futuro e de vez em quando chega com uma idéia fantástica
que ele jura que foi uma inspiração do mundo espiritual
(e não importa de onde venha se for viável e positiva).
Excelente para atuar no planejamento, estruturação e
reestruturação das atividades, com ele em cena não
há acomodação que resista. Está sempre
propondo, ousando, criando, buscando alternativas inovadoras para
a solução de velhos problemas de uma forma que “ninguém
tinha pensado nisso antes...”Mas na hora de desmontar uma mesa...
é parafuso pra todo lado e martelada no dedo.
Ah, e que grupo não tem o “certinho”? Extremamente
racional e organizado, tudo ele anota, quantifica, formaliza. Para
ele tudo tem que estar “preto no branco”. Quem melhor
para atuar na área administrativa? Afinal, registrar, fazer
contas, controlar e distribuir recursos na medida certa é com
ele mesmo.
Por outro lado temos o “artista”, aquele que não
abre mão do lúdico e está sempre a inserir música,
teatro e outras manifestações de arte em todas as atividades.
Graças ao seu espírito sensível e talentoso as
reuniões comemorativas vão estar salpicadas daquela
chama de emoção e entusiasmo tão necessária
para reabastecer os ânimos e impulsionar pra frente. Ideal para
desenvolver trabalhos que envolvam crianças e jovens, este
companheiro sacode a mesmice, dá aquele toque de motivação
e estimula como ninguém a integração fraterna.
Não poderíamos esquecer ainda do “paizão”
ou “mãezona” do grupo. Afetivos, sensíveis,
conciliadores, os companheiros com este perfil tem o poder de unir,
reunir, apaziguar, conferir um sentido real de família à
equipe. Sua habilidade em promover o diálogo e quebrar resistências
quando há conflitos é imensa porque falam diretamente
ao coração dos demais. Queridos e respeitados pelo amor
e equilíbrio que irradiam, esses irmãos são fundamentais
para a manutenção da paz na Instituição.
São elementos que, entre outros, podem dar uma contribuição
importantíssima nas reuniões de Atendimento Fraterno,
pois possuem um elevado grau de afetividade que os dispõe naturalmente
a acolher e abraçar os que sofrem.
Temos ainda o introspectivo, o extrovertido, o estudioso, o afoito,
o ponderado, o questionador, o acomodado, o “modernoso”,
o conservador e por aí vai. E quem de nós se aventuraria
a discorrer sobre a maior ou menor importância deste ou daquele
trabalhador, conforme os perfis aqui relacionados?
Na verdade todos se completam. Todos são insubstituíveis
e indispensáveis em suas peculiaridades porque - enquanto não
conseguimos ser perfeitos - este é um excelente exercício
de aperfeiçoamento, já que é imprescindível
aparar as arestas para nos encaixar nesse desafiador quebra cabeças
que é formar uma equipe onde somos chamados a trabalhar para
nada mais nada menos do que Jesus.
Quando interiorizamos isto buscamos o entendimento. E quando buscamos
o entendimento - olhem só que coisa maravilhosa! – as
peças se encaixam. Enquanto uns sonham outros ponderam, enquanto
uns planejam outros concretizam, enquanto uns organizam outros adornam,
enquanto uns são música outros são livro, enquanto
uns são silêncio outros são sonoridade. E assim
vamos nós. Trabalhando com as diferenças e assegurando
a continuidade da obra. Enquanto isso estamos crescendo, amadurecendo,
aprendendo a fazer concessões, a ser voto vencido, a discordar
sem “rosnar” e tantos outros exercícios de reforma
íntima.
O grande e real problema é este radicalismo autoritário
ainda tão impregnado nas lideranças, que inadvertidamente
impõem o enquadramento de seres diferentes em um padrão
de comportamento rígido e único. Todo mundo tem que
pensar igual, tem que ter a mesma disponibilidade, senão é
sinal de que não se esforçou o suficiente. Alguém
aí tem um “esforçômetro”?
Sim, porque para medir o quanto cada companheiro está se esforçando
para dar a sua contribuição, mesmo que aparentemente
pequena, precisaríamos de um.
O segredo é nos valer das diferenças para potencializar
o trabalho. Ninguém espere mar de rosas. Impossível
não haver conflito onde existe diversidade, imperfeição
e forças espirituais contrárias prontas para acionar
o estopim do orgulho e da vaidade tão presentes ainda em todos
nós. Aqui é aquele companheiro veterano que rejeita
as novas idéias dos recém-chegados porque só
ele é o detentor absoluto da experiência; ali é
outro que chega querendo mudar tudo, desconsiderando aqueles que ali
já estavam muito antes da sua chegada construindo o que ele
encontrou; Acolá é aquele que quer colocar o mundo dentro
da casa espírita; mais além é aquele outro que
quer tirar a casa espírita do mundo... e um sem fim de situações
corriqueiras no cotidiano espírita.
Cabe às lideranças estabelecer um processo de observação
e pacificação. Há que se administrar os conflitos
para que as relações não sejam abaladas, pois
o relacionamento interpessoal é a coluna vertebral da Casa
Espírita; se ele está abalado, não se caminha
ou se caminha para o caos. E não adianta julgar. Não
adianta vir com aquele discurso que o fulano é espírita
e deveria agir assim ou assado, porque todos nós sentimos na
pele a dificuldade de sermos na prática tudo o que, teoricamente,
sabemos que precisamos ser. Como já dizia o meu velho e sábio
avô “muitas pessoas entraram para o Espiritismo, mas o
Espiritismo ainda não entrou nelas”... e por falar nisso...
Será que o Espiritismo, de verdade, já “entrou”
em nós de forma tal que nos confira autoridade para avaliar
os demais companheiros como bons ou maus espíritas? Há
que se ter a humildade de admitir que todos estamos engatinhando em
relação à transformação moral que
nos fará o verdadeiro espírita que ainda não
somos. Só assim trocaremos o dedo em riste por mãos
unidas no mesmo esforço.
Um eficaz antídoto contra os atritos é promover a avaliação
periódica das atividades do grupo. Mas avaliar não é
colocar os companheiros no paredão. Avaliar é reunir
todos os trabalhadores sistemáticamente, num clima familiar,
onde todos são ouvidos de forma democrática e imparcial;
é levar a equipe a se debruçar sobre o que está
sendo feito, discutir sobre as dificuldades e possibilidades, mantendo,
aperfeiçoando ou corrigindo a rota onde for necessário.
Mas é também urgente repensar as decisões de
cima pra baixo. Não raro, a diretoria decide e os demais trabalhadores
executam, sem que de alguma forma tenham sido ouvidos enquanto elementos
fundamentais para a execução das tarefas. Questionar
nem pensar, sob pena de serem incluídos imediatamente no tratamento
de desobsessão diante da afirmativa paternalista que ”o
nosso irmão está precisando muito de preces...”
esta é a pena impiedosa de descredibilização
“caridosamente” imputada àqueles que ousam “subverter”
a ordem vigente.
E diante disto a gente se pergunta: Quando é que nós
espíritas vamos conseguir estabelecer a diferença entre
hierarquia e autoritarismo? Quando é que vamos parar de medir
o valor dos companheiros pelos cargos que ocupam ou pelos títulos
que ostentam? Quando é que vamos parar, enquanto dirigentes,
de usar os trabalhadores enquanto mão de obra passiva para
projetos que não são de todos, mas de alguns? Quando
é que vamos parar de tomar questionamentos legítimos
como ofensas pessoais e influência de obsessores? Já
passou da hora de abandonar tais heranças reacionárias
de existências passadas e avançar para a postura simples,
respeitosa e justa que minimamente se espera de uma liderança
espírita.
A saída é um diálogo constante, fraterno e o
mais transparente possível, recorrendo a uma conversa amorosa,
não só nas reuniões regulares de avaliação,
que é o momento certo de refletir sobre o que não anda
bem, mas buscando este diálogo no cotidiano da Instituição
- em nível individual ou coletivo - sempre que os problemas
surgirem. Omissão por medo de provocar ruptura é um
equívoco. Se não criamos coragem de pegar o boi pelos
chifres, intervindo junto aos conflitos e divergências quando
necessário, estaremos perigosamente contribuindo para que se
avolumem. Esconder os problemas não nos liberta deles, pelo
contrário, faz com que ganhem força. E de repente lá
estão eles, nas conversas de corredor, nos afastamentos repentinos
ou nos debates acalorados em momentos impróprios, determinando
de forma totalmente negativa a dinâmica das relações
e, consequentemente, da Instituição.
Poeira acumulada debaixo do tapete leva a uma alergia tal que aos
poucos vai tornando impossível a permanência no ambiente,
ou seja, se fecharmos os olhos às dificuldades, quando os abrirmos
poderemos tristemente constatar o esvaziamento da Casa, de forma literal
ou pior: O desencanto, a ausência da fraternidade legítima,
a presença pela “obrigatoriedade”de cumprir o compromisso
e não pela alegria de estar junto, que é a base de tudo.
A responsabilidade é grande. Se não quisermos ser “cegos
a guiar cegos”, precisamos compreender que conhecimento doutrinário,
por si só, não habilita ninguém a estar à
frente de Instituições Espíritas. É preciso
também muita autocrítica e um mínimo de humildade.
Quando convidados a assumir a liderança de nossos grupos, antes
devemos nos perguntar se temos perfil para tal, se temos equilíbrio
suficiente para atuar como mediadores, aglutinadores, pacificadores,
como líderes e não chefes ou donos de coisa alguma,
porque senão, ao menor estranhamento vamos ser os primeiros
a pegar a nossa malinha e sair por aí atrás do utópico
grupo ideal, deixando para trás companheiros divididos e desnorteados.
As chances de êxito são infinitamente maiores quando
nos dispomos a exercitar esse tal amor, que não é algo
tão longínquo quanto podemos supor; que começa
se expressando simplesmente pela valorização dos pontos
positivos dos companheiros, em detrimento dos negativos que possam
ter; que se faz presente no exercício da tolerância,
não porque somos bonzinhos e amamos todos os companheiros de
forma igual - porque isto não acontece nesse estágio
em que nos encontramos - mas porque temos consciência de que
todos estamos no mesmo barco em termos de deficiências espirituais
e que cada um precisa da tolerância do outro.
Se não buscarmos nutrir pelos companheiros esse amor possível,
vamos continuar brincando de espírita bonzinho e, no fundo,
só nos aturando, assim como qualquer profissional no seu ambiente
de trabalho. Mas se existir afeto, a gente cede aqui, cede ali ou
não cede, porque existem coisas que não dá para
transigir, mas diz o que tem que dizer de uma forma sincera, porém
amorosa, fraterna e, lembrando Jesus, vamos conversando com o nosso
irmão em reservado “e se ele vos entender”, diz
o mestre,”então tereis ganho o vosso irmão”.
Difícil?... Mas quem foi que disse que é fácil
evoluir... e que se evolui sem conviver?!?
Pensemos nisto.
Joana Abranches - Assistente Social e Presidente da Sociedade Espírita
Amor Fraterno – Vitória/ES
Fonte:
http://www.redeamigoespirita.com.br/group/artigosespiritas/forum/topics/trabalhando-os-trabalhadores