12/12/2020
Cristãos querem igrejas abertas, dividem-se
sobre máscara e abandonam 'feijão mágico'
Recrudescimento da pandemia acende alerta para aglomerações
de evangélicos e católicos
por Anna Virginia Balloussier
Preto Zezé presenciou "um negócio meio louco demais",
isso lá pelo meio da pandemia, "no olho do furacão":
um bate-boca entre evangélicos sobre o uso da máscara
para conter um vírus em escalada letal no Brasil.
Presidente da Cufa (Central Única das Favelas) Global, ele entregava
cestas básicas numa favela de Fortaleza. Deu de cara com uma
igreja onde 300 pessoas se aglutinavam sem qualquer cobertura facial.
Reclamou e foi apoiado por fiéis de outro templo, que lhe deram
razão.
"Um grupo falava que na sua igreja quem entra é ungido,
não precisava", relembra. "Já outro dizia que
Deus deu o livre-arbítrio e que precisávamos fazer a nossa
parte. [Uma mulher] dizia a outra: 'Irmã, que isso, tem vários
irmãos que estão com Covid na UPA, morrendo. A gente foi
orar por um irmão intubado'."
Diante do novo galope de casos da Covid-19, persevera o debate sobre
como oferecer serviços religiosos a cristãos, que são
oito de cada dez brasileiros.
Cultos evangélicos e missas católicas continuam acontecendo
e reunindo dezenas, centenas e até milhares de pessoas em espaços
quase sempre fechados. Igrejas como a Batista Atitude, frequentada pela
primeira-dama Michelle Bolsonaro no Rio, mantêm as pregações
presenciais e outras atividades.
Na sexta (04/12/2020), a Atitude divulgava nas redes sociais treinamento
funcional gratuito. A orientação dada por telefone: não
haveria limite de alunos, mas a atividade física seria ao ar
livre, cada um deveria levar seu álcool em gel e "uma luvinha"
se quisesse.
A Universal do Reino de Deus avisa que, nos lugares que liberam encontros
religiosos, abre com 60% da capacidade. No domingo (6), o bispo Jadson
Santos pregava na Catedral Mundial da Fé, um megatemplo da igreja
no Rio. A certa altura, orientava o público a se aproximar do
altar.
Entre testemunhos como a da mulher que teve a tíbia esfarelada
num acidente de moto e disse ter se recuperado com ajuda da água
ungida pela Universal, Santos pedia que as pessoas se esforçassem
para estar presencialmente na igreja naquela semana.
Edição de novembro da Folha Universal, o jornal da congregação,
mostra uma reunião conduzida em 15 de novembro pelo próprio
em São Paulo. Estava cheia, com todos de máscara, à
exceção do bispo, isolado no púlpito.
Outra reportagem, "Autoridades do meio jurídico brasileiro
participaram de tour no Templo de Salomão", traz uma foto
de dois bispos da Universal com uma desembargadora. O trio com rosto
descoberto.
Na página seguinte, uma matéria segue o embalo do Placar
da Vida, criado em abril pelo governo Bolsonaro, que tem Edir Macedo
como aliado. A ideia é destacar dados positivos relacionados
à Covid-19, como o número de curados.
A publicação da Universal faz o mesmo ao sublinhar que
o país tem quase 5 milhões de recuperados. "Os números
são otimistas, mas isso não significa que a pandemia acabou.
Não é aconselhável afrouxar as medidas de proteção",
afirma o texto.
Na semana passada, o Culto de Gratidão liderado na zona norte
carioca pela pastora Elizete Malafaia, esposa de Silas Malafaia, tinha
assentos intercalados e álcool em gel para os fiéis, todos
mascarados.
Nos primeiros meses, "os prefeitos queriam fechar totalmente as
igrejas, e o lugar do culto é inviolável", diz o
pastor Silas Malafaia. Agora não tem mais jeito, segundo o líder
da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. "Não adianta
querer fechar nada, primeiro porque a economia não aguenta. Segundo,
num país com transportes públicos lotados, é piada."
Os templos são os mais zelosos pela saúde pública,
ao contrário "desta turma de bar, boate, show, que é
uma aglomeração, uma bagunça", continua Malafaia.
"Isso não é igreja. Não leva a mal, não.
Se tem um grupo que tem feito um trabalho de cuidado, somos nós."
Não é o que acontece em parte das denominações,
porém. "As igrejas estão fazendo cultos e vigílias
lotados. Raro ver alguém de máscara", diz o pastor
Daniel Elias, de uma Assembleia de Deus de Duque de Caxias (Baixada
Fluminense).
A cruzada negacionista ainda preserva seus paladinos. "Na primeira
onda te impediram de ir à igreja. Na segunda, vão proibir
que sua família celebre o Natal. Existem mil maneiras de se combater
o cristianismo", tuitou na quinta (3) o influencer bolsonarista
Luiz Galeazzo, post curtido por 6.500 seguidores. "O vírus
é a mais recente delas."
Mas perdeu espaço a ideia, popularizada no início da
crise sanitária, de que o coronavírus não era esse
bicho-papão todo, e que as medidas recomendadas pela ciência
para debelá-lo poderiam ser substituídas pela fé.
Esse princípio foi solo fértil para sugestões
enganosas, como a venda de sementes de feijão, por até
R$ 1.000 cada, pelo apóstolo Valdemiro Santiago em sua igreja,
a Mundial do Poder de Deus. Ele afirmava que cultivá-las levaria
à cura da Covid-19. Virou alvo do Ministério Público.
"Mas isso é enganar? Não, você que tá
enganado", afirmou no púlpito o pastor, que dizia ter laudo
médico de "gente em estado terminal curada" porque
"Deus operou e fez maravilha".
Em março, Edir Macedo protagonizou um vídeo em que pedia
para fiéis de sua Universal não superestimarem a doença.
"Satanás trabalha com o medo, o pavor. Trabalha com a dúvida.
E, quando as pessoas ficam apavoradas, com medo, em dúvida, as
pessoas ficam fracas, débeis e suscetíveis. Qualquer ventinho
que tiver é uma pneumonia para elas."
Em junho, Macedo se internou com Covid-19. “Tomei todos os medicamentos
indicados pelos médicos, entre eles a hidroxicloroquina, e estou
bem”, afirmou o bispo, citando o remédio favorito de Jair
Bolsonaro.
Se permanece o gosto pelo tratamento de eficácia questionada,
aos poucos mirra a descrença inicial com o perigo da moléstia.
A morte do senador Arolde de Oliveira (PSC-RJ), fundador do Grupo MK
de Comunicação, um dos maiores do segmento evangélico,
ajudou a diluir o corolário negacionista.
Em 19 de abril, o octogenário tuitou seu inconformismo com "a
inutilidade do isolamento social" adotado por "autoridades,
alarmistas por conveniência, [que] destruíram o setor produtivo".
Certo estava o presidente ao se opor desde sempre à quarentena,
disse Arolde. Em outubro, virou uma das 16 mil vítimas de Covid
computadas pelas secretarias de Saúde naquele mês.
Para Felipe Augusto Carvalho, diretor-executivo da Associação
Nacional de Juristas Evangélicos, é condenável
que decretos fechem igrejas e não outros setores da sociedade,
e é importante evitar "que a liberdade religiosa seja esvaziada".
"Temos conclamado que as igrejas mantenham uma posição
colaborativa e de obediência às medidas sanitárias:
distanciamento, disponibilização de álcool em gel
e aferição de temperatura", diz.
Também os católicos se dividem sobre a melhor forma de
reagir à pandemia. "As igrejas particulares seguem os protocolos
conforme sua realidade local", afirma a CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil) em nota à Folha. "O bispo
diocesano tem autonomia para decidir sobre a abertura ou não."
A assembleia-geral dos bispos, quase todos no grupo de risco, seria
em abril, mas foi adiada para 2021.
Mais atrativa para jovens fiéis, a Canção Nova,
do movimento carismático da Igreja Católica, também
freou eventos in loco.
Por ora não receberá em janeiro, em sua sede no interior
paulista, peregrinos para o acampamento Revolução Jesus.
Será online. O Pai tá on.