
Expansão da igreja evangélica e sua
crescente influência na mídia, nas esferas políticas
e nas instituições governamentais é tema de
Projeto Temático conduzido por pesquisadores do Cebrap, USP
e de outras instituições (Paula Montero, em apresentação
no evento / foto: Heitor Shimizu / Agência FAPESP)
texto Heitor Shimizu, de Bruxelas (Bélgica)
- FAPESP
País tradicionalmente marcado pela formação
católica, no Brasil o secularismo – o princípio
da separação entre instituições governamentais
e religiosas – tem passado por uma reconfiguração.
O principal motivo é a expansão expressiva das igrejas
evangélicas e sua crescente influência na mídia,
nas esferas políticas e nas instituições governamentais.
A relação entre religião, direito
e secularismo e a reconfiguração do “repertório
cívico no Brasil contemporâneo” são tema
de um Projeto Temático apoiado pela FAPESP e conduzido por
Paula Montero, professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo
(USP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(Cebrap), que presidiu de 2008 a 2015.
Montero falou sobre o projeto, que reúne
24 pesquisadores da USP, Cebrap, Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
além de colaboradores da Ottawa University (Canadá)
e do Institut Marcel Mauss-CNRS (França), na FAPESP Week
Belgium, realizada nas cidades de Bruxelas, Liège e Leuven
de 8 a 10 de outubro de 2018.
“Investigamos as relações
contemporâneas das principais organizações
religiosas brasileiras com o campo político e o Estado.
Este assunto é importante em vista de algumas recentes
mudanças estruturais na sociedade brasileira que têm
afetado profundamente a configuração do secularismo
brasileiro, ou seja, a forma como as religiões se relacionam
com a vida pública”, disse Montero.
“Uma dessas mudanças importantes
tem a ver com o fim do regime militar e a transição
para um novo regime democrático consagrado na Constituição
de 1988. Outra mudança está relacionada com o declínio
da hegemonia política e cultural da Igreja Católica,
que até recentemente deu sentido à nossa ideia de
nação e justiça. Esse declínio está
associado, em parte, com a rápida expansão das igrejas
evangélicas”, disse.
Montero apresentou dados sobre as mudanças
ocorridas nas três últimas décadas nos cenários
religioso e político brasileiros, como o grande aumento no
número de evangélicos, que passou de 6,6% da população
em 1980 para 22,2% em 2007. Apesar de continuarem a maioria no país,
católicos caíram de 89,2% em 1980 para 64,6% em 2010.
“É claro que a diversificação
religiosa de não cristãos no Brasil ainda é
esmagadoramente menor quando comparada aos dois blocos cristãos”,
disse Montero. “Espíritas correspondem a 40% dessa
diversidade, enquanto as religiões africanas são
apenas 0,3% do total, apesar da sua enorme importância no
imaginário nacional brasileiro.”
Segundo a pesquisadora, a nova configuração
do secularismo brasileiro é conflitante.
“O novo direito pluralista de igualdade
religiosa muitas vezes entra em conflito com o princípio
republicano clássico de liberdade religiosa, colocando
sob pressão a neutralidade do Estado”, disse.
Essa pressão também se mostra importante
no Congresso brasileiro, com o crescimento da representação
política evangélica, que aumentou de 6,23% em 2006
(com 32 de 513 deputados) para 14,42% (74 deputados) em 2014.
“Os líderes religiosos evangélicos,
diferentemente dos católicos, usam cada vez mais suas posições
nas igrejas para promover suas candidaturas”, disse.
“Uma parte significativa das pesquisas contemporâneas
sobre secularismo assume que religião e política
são (ou deveriam ser) dois campos separados. Partindo do
pressuposto de que os fenômenos religiosos são privados,
que a fé religiosa é resultado de escolha individual,
a literatura sobre o secularismo tem-se preocupado em criar formas
de medir o grau de secularidade das organizações
estatais e de descrever diferentes instrumentos jurídicos
para evitar que as religiões estejam no espaço público”,
disse Montero, que é membro da coordenação
adjunta de Ciências Humanas e Sociais e das coordenações
dos programas de Melhoria do Ensino Público e de Pesquisa
em Políticas Públicas.
“No entanto, exemplos do Brasil e de outros
países não europeus têm contribuído
para o surgimento de um novo consenso analítico: o conceito
de secularização – que pressupõe a
privatização da religião e a diferenciação
entre a esfera pública e a privada – é um
conceito normativo político demasiadamente ocidental. Nesse
sentido, este conceito não é útil para descrever
a nova dinâmica das democracias pluralistas contemporâneas,
que precisam abordar a questão de acomodar as diferenças
étnicas e religiosas em uma esfera pública secular”,
disse.
Segundo Montero, no caso brasileiro a agenda pluralista
colocou os princípios da neutralidade do Estado e da separação
entre religião e política sob o foco da crítica
religiosa minoritária.
“Em nome do pluralismo, muitas instituições
religiosas apresentaram um ativismo extraordinário nos
espaços públicos, provocando as cortes, manifestando-se
nas ruas e ocupando diversos espaços nas agendas governamentais
e na esfera legislativa.”
Religiões públicas
“Em nosso Projeto Temático apoiado
pela FAPESP, estamos trabalhando com a hipótese de que
a recente competição pelo espaço cívico-político
por parte das religiões mudou a natureza do discurso religioso.
Evangélicos, católicos e afro-brasileiros, em resposta
ao ativismo secular ou antirreligioso, apropriaram a linguagem
legal para seu próprio propósito religioso. Os agentes
religiosos aprendem como desenvolver línguas públicas
que lhes permitam mostrar o seu interesse religioso na linguagem
legal-política de direitos, como a liberdade religiosa
e a tolerância”, disse Montero.
Segundo ela, esse movimento metodológico
faz refletir sobre os limites teóricos do uso da religião
como um fenômeno autoevidente.
“O conceito de religião está
intimamente associado com o modelo da Igreja Católica,
que enfatiza a dimensão doutrinária e sua forma
congregacional. Dessa forma, é muito impreciso descrever
o que os agentes religiosos fazem quando marcham nas ruas, quando
lutam no Congresso ou quando pregam na televisão”,
disse.
A professora da USP conta que, nesse sentido, uma
das principais contribuições do Projeto Temático
é o avanço de um novo conceito para enquadrar esses
fenômenos: o conceito de "religiões públicas".
“Esse conceito tem de ser trabalhado em
duas dimensões diferentes. Na primeira, as religiões
se tornam públicas quando fazem e dizem coisas em arenas
públicas endereçadas à opinião pública.
As religiões públicas implicam a relação
de agentes religiosos com estranhos. Nessa perspectiva, as religiões
não produzem crentes”, disse.
“Na segunda dimensão, as religiões
tornam-se públicas quando emergem como um problema público,
isto é, quando ações e discursos se transformam
em controvérsias públicas envolvendo uma vasta gama
de atores não religiosos.”
Usando esse conceito como uma ferramenta analítica,
os diferentes projetos de pesquisa no âmbito do Temático
estão recolhendo dados que permitam ajudar a responder como
as organizações religiosas atuam publicamente no cenário
brasileiro contemporâneo.
“Ou em que circunstâncias e de que
maneiras as ações religiosas emergem como um problema
público no cenário brasileiro? Ou, então,
como e em que sentido as diferentes organizações
religiosas aumentam sua autoridade moral para regular a vida coletiva
em suas diferentes dimensões?”, disse Montero.
Fonte: http://agencia.fapesp.br/secularismo-brasileiro-passa-por-reconfiguracao-/28948/