24/11/2014
por
Brian Mier | Vice Brasil | Rio de Janeiro
Estudo aponta existência de 847 terreiros
no estado, dos quais 430 sofreram atos de discriminação
e 132 foram atacados; "há pastores evangélicos convertendo
líderes do tráfico e os usando para expulsar os terreiros",
diz antropólogo

Matias Maxx / Vice
Recentemente, uma bomba foi jogada dentro de um terreiro
em Porto Alegre. Não foi um evento isolado. Ataques contra praticantes
das religiões de matriz africana estão aumentando em todo
o país. Uma das situações mais graves acontece
no Rio de Janeiro, onde, em muitas favelas, igrejas evangelizaram os
chefes do tráfico e os pressionam a acabar com terreiros e outras
manifestações da cultura afro-brasileira nessas comunidades.
Um estudo da PUC-Rio e do governo do estado aponta a existência
de 847 terreiros no Estado. Desse montante, 430 sofreram atos de discriminação
e 132 já foram atacados por evangélicos.
Certa noite, eu estava em um baile funk, dentro de uma comunidade controlada
pelo tráfico, cercado por pessoas bêbadas e chapadas. Em
determinado momento, a música parou para deixar um pastor evangélico
subir no palco e liderar milhares de pessoas em uma oração.
Eu pensei: se o candomblé é, como muitos evangélicos
acreditam, “coisa do capeta”, por que eles deixam o funk
rolar livremente nas comunidades controladas pelo tráfico evangelizado,
com seus fuzis norte-americanos com os adesivos de “soldado de
Cristo”? Por que o funk, com suas letras elogiando álcool
e violações dos 10 mandamentos, com seu tamborzão,
ritmo que traz elementos do candomblé, não só é
tolerado como, às vezes, parece ser encorajado por certas figuras
religiosas?
Procurando uma resposta para estas perguntas, parti para um terreiro
que existe há mais de 50 anos na Baixada Fluminense a fim de
falar com Adailton Moreira, antropólogo e um dos líderes
do movimento contra a intolerância religiosa. Sentamos debaixo
de uma árvore no quintal cercado de estátuas e imagens
históricas da cultura ioruba, e ele começou falar.
“A intolerância tem uma base forte de
racismo. Grande parte dos seguidores das religiões de matriz
africana é de negros, mulheres, pobres, gays, lésbicas
– ou seja, tudo que a sociedade eugênica burguesa elitista
neste país não gosta.
E existem, de fato, pastores evangélicos convertendo atuais
líderes do tráfico e os usando para expulsar os terreiros
das comunidades. Tem muitos lugares hoje, como Maré e Jacarezinho,
onde o pessoal nem pode usar um incensador. O Estado é completamente
omisso. Eu trabalhei na pesquisa da PUC, e a maioria dos praticantes
das religiões de matriz africana no estado nos contou que passou
por constrangimentos - a violência física, material e
imaterial contra eles está aumentando. E não é
só nos terreiros: o samba e o jongo também estão
desaparecendo nas comunidades. Pouquíssimas comunidades ainda
têm jongo. No interior do estado, os quilombolas estão
todos sendo evangelizados. Isso é tirar a alma deles, como
fizeram com os índios no passado. É um projeto de colonização
moderna.”

Matias Maxx / Vice
“E o funk,” perguntei, “por que
ele é tolerado? Será que, na cabeça dos pastores
evangélicos, é mais fácil lidar com ele porque
ele pertence ao diabo, enquanto o candomblé representa outra
forma de interpretar o mundo, fora do conceito cristão do universo?”
“Funk não é uma religião, tem outro apelo
cultural e político que as religiões de matriz africana
não podem ter com o tráfico. E tem um grande projeto
econômico atrás dessas ações de arrebanhar
fiéis e de promover salvação. Milagres acontecem,
mas tudo em uma organização econômica muito perversa.”

Matias Maxx / Vice
Parti para a Maré, conjunto de 16 comunidades com 130 mil habitantes,
onde ouvi dizer que só sobrara um terreiro. Procurei Carlos,
ex-traficante evangélico e líder comunitário, para
ouvir outra opinião sobre o assunto. Após encontrá-lo
na Favela Nova Holanda, ele me deu uma carona para a Praça do
Forró do Parque União, onde há vários bares
e restaurantes excelentes. Paramos ao lado de um córrego, e eu
perguntei por que não tem mais terreiros na Maré.
“Não acontece em todos os lugares, mas
eu sei que tem algumas comunidades onde o tráfico realmente
expulsou os terreiros”, ele falou, “como no Morro do Dendê.
Vinte anos atrás, você via muitos chefes de tráfico
usando guia, seguindo orixás - eles gostavam muito do Zé
Pelintra. Mas chegou um tempo em que parece que não estava
dando resultado. É tudo o mesmo Deus, certo? Oxalá é
o mesmo Deus dos cristãos, mas acho que ficou mais simples
para muita gente só rezar para um. Acho que, para os pobres
e negros nas favelas, seguir a religião evangélica tem
mais sentido hoje em dia, e o candomblé virou outra tradição
negra que se elitizou - hoje em dia, é mais a classe média
que curte.”
“E os bailes,” perguntei, “por que um evangélico
vai deixar um baile acontecer, com tantas músicas que falam
sobre temas como promiscuidade e violência?”
“O baile é uma tradição que vem de muitos
anos atrás, antes da chegada da religião. E ele traz
lucro para o tráfico, claro. Às vezes, durante o baile,
eles tocam louvores, ou vem uma fala de cinco minutos de um pastor.
Às vezes, o baile, o tráfico e a religião viram
uma coisa só. Ninguém tira o espaço do outro.”

Matias Maxx / Vice
Se ninguém tira o espaço do outro, entra a parceria econômica
de funk, drogas e religião. Não pode dizer a mesma coisa
para manifestações afro-brasileiras, como o candomblé,
que existem há bastante tempo neste país, quando comparadas
às igrejas evangélicas. Se o processo de conversão
é uma coisa natural, por que se precisa de violência? Por
que o Jardim Vale do Sol, terreiro em Duque de Caxias, foi atacado por
evangélicos oito vezes? Será que, por causa de algumas
pessoas, isso também faz parte de um projeto econômico?
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Atualmente preso por estupro, pastor evangélico
lidera uma oração durante um baile funk.
- vejam o vídeo no youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=0Vl1Kr_3WHs
Fonte:
http://www.vice.com/pt_br/read/despejos-e-violencia-por-dentro-da-guerra-evangelica-contra-as-religioes-de-matriz-africana-no-rj
http://operamundi.uol.com.br