06/09/2014
por José Tadeu Arantes
Agência FAPESP
A despeito de vários estudos realizados
nas últimas décadas, a transição da escravidão
para o trabalho assalariado no Brasil é um tema que ainda precisa
ser esmiuçado. Que destinos tiveram os ex-escravos? Que novas
relações de trabalho lhes foi possível estabelecer?
Que profissões exerceram? Como conviveram com a chegada maciça
de imigrantes europeus? Onde habitavam e em que condições?
Um novo livro, recém-publicado com apoio da FAPESP,
ajuda a responder a perguntas como essas. Trata-se de Libertas
entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São
Paulo (1880-1920), de Lorena Féres da Silva Telles.

Livro investiga o trabalho doméstico no
período entre 1880 e 1920, na cidade de São Paulo. A atividade
preservou vestígios da escravidão que se mantiveram até
os dias atuais
Graduada em História pela Universidade
de São Paulo (USP) e pela Université Paris IV-Sorbonne,
Lorena é atualmente doutoranda, com bolsa da FAPESP. Seu livro
resultou de dissertação de mestrado orientada pela historiadora
Maria Odila Leite da Silva Dias, professora titular aposentada da USP.
“O sujeito desse estudo foi constituído
por mulheres, trabalhadoras domésticas na cidade de São
Paulo, algumas escravas, outras libertas, outras já nascidas
livres”, disse Lorena à Agência FAPESP.
“Fiz o trabalho com base em documentos policiais: um livro de
inscrições e um livro de contratos de trabalho. Esses
livros foram produzidos em função de uma lei, posta
em prática em 1886 em São Paulo, que obrigava os trabalhadores
domésticos a se inscreverem na polícia”, disse.
Nessa época, dois anos antes do fim da escravidão, quase
não havia mais escravos na cidade de São Paulo. A maioria
deles estava nas fazendas de café do Sudeste do país.
Essa lei, obrigando os registros, tinha o propósito de controlar
os trabalhadores livres.
“As inscrições eram fichas de
polícia, com nome, filiação, sinais característicos,
profissão, nome do patrão, estado civil etc. Enfim,
uma documentação de controle, estritamente policialesca”,
explicou a historiadora.
Com base em dados tão ralos, Lorena procurou
entender quem eram essas trabalhadoras domésticas.
“Eu dispunha de uma amostragem com cerca de
mil inscritos e 1,3 mil contratos. Dos inscritos, pouco mais de 600
eram mulheres e 490 eram mulheres negras”, contou.
O estudo exigiu uma boa dose de imaginação.
Foi preciso ler nas entrelinhas e fazer várias suposições
a partir das poucas informações disponíveis.
“Por exemplo, quando a filiação
era desconhecida, eu podia supor que provavelmente se tratava de uma
escrava.
Se o pai tinha um nome como ‘José Congo’, eu podia
supor que ela era filha de um africano. Dessa forma, fui juntando
os fios para tecer histórias de vidas.
E, com base nesse levantamento, busquei as origens escravistas do
trabalho doméstico”, disse.
Um dos recursos utilizados foi cruzar dados do livro
de inscrições com dados do livro de contratos.
“Desse modo, pude rastrear, a partir de contratos
sucessivos, as trajetórias de algumas daquelas mulheres”,
disse.
Ao preencher os contratos, muitos patrões simplesmente seguiam
a fórmula estabelecida pela Câmara Municipal. Outros, porém,
acrescentavam informações, o que ajudou muito o trabalho
da pesquisadora.
“Encontrei, por exemplo, o caso de uma cozinheira denominada
pelo patrão de ‘Preta Felicidade’. O simples fato
de ele chamá-la de ‘Preta’ já indicava que,
provavelmente, se tratava de uma ex-escrava.
Outro caso foi de uma africana, de 60 anos, que escandalizou sua
patroa ao dizer: ‘Não sou sua escrava’. Isso foi
anotado no livro. E me trouxe a imagem de uma altiva africana, destemida
e zelosa por sua liberdade”, disse.
Em 1872, por ocasião do primeiro censo realizado no Brasil,
havia no país pouco mais de 10,1 milhões de habitantes.
Destes, cerca de 1,5 milhão eram escravos. O recenseamento de
1890 revelou que a população havia crescido para aproximadamente
14,3 milhões.
Três anos antes, em 1887, a apenas alguns meses do dia 13 de maio
de 1888, quando a princesa Isabel sancionou a Lei Áurea, extinguindo
a escravidão no Brasil, o contingente escravo somava 723.419
pessoas, menos da metade daquele do início da década anterior.
Essa curva descendente da população escrava, que não
mudou de inflexão desde o fechamento dos portos africanos, em
1850, estimulou o tráfico interno, direcionando a mão
de obra cativa para as regiões de maior dinamismo econômico,
como o oeste paulista, fronteira da expansão da cafeicultura.
Como consequência, na última década do período
escravista, a cidade de São Paulo tornou-se notavelmente desprovida
de escravos.
“O censo de 1886 computou na cidade aproximadamente 48 mil
habitantes, dos quais pouco mais de 10 mil foram classificados como
negros ou mulatos.
Desse segmento de ascendência africana, mais de 95% eram constituídos
por homens e mulheres livres. O recenseamento apontou 268 escravas
e 225 escravos”, disse Lorena.
A forma predominante de moradia desses “negros” e “mulatos”
livres eram as habitações coletivas de aluguel. Com cômodos
subdivididos, de forma a abrigar um número cada vez maior de
pessoas, essas habitações se multiplicavam nos bairros
do Bixiga e do Brás, bem como naquele bairro que, à época,
constituía ainda uma área periférica, com características
rurais: a Penha.
“Havia escravas que negociavam com suas donas e donos moradia
em pequenos cômodos, fora da casa senhorial.
Por outro lado, no caso de muitas mulheres livres ou libertas, empregadas
domésticas, a moradia, a roupa e a alimentação
eram a única forma de pagamento. Ou, então, seus salários
eram tão baixos que frequentemente inviabilizavam o pagamento
de um cômodo de aluguel, razão pela qual os cômodos
e seus custos eram compartilhados”, disse a historiadora.
O salário de uma trabalhadora doméstica responsável
por todo o serviço da casa variava de 12 mil réis a 20
mil réis. E o aluguel de um cômodo custava, às vezes,
15 mil réis. Assim, era praticamente impossível, para
essas empregadas, morarem sozinhas.
“Se não moravam com os patrões, era muito provável
que morassem com parentes, companheiros, filhas e filhos”, conjecturou
Lorena.
Um capítulo especialmente interessante do livro é aquele
que a autora dedicou às trabalhadoras que já possuíam
uma certa especialização: cozinheiras, quitandeiras, lavadeiras,
engomadeiras, amas de leite. Sua atividade profissional e sua vida cotidiana
são descritas de forma muito vívida, como neste parágrafo
dedicado às lavadeiras:
“Enfrentando a lida diária de longas caminhadas, expostas
ao frio, à chuva e ao sol a pino, equilibristas de trouxas
pesadas e prazos de entrega, as lavadeiras foram fundamentais à
sociedade da higiene, com seus lençóis e roupas brancas.
Circulando nas imediações urbanas, em direção
às beiras de rios e chafarizes, à procura de emprego,
eram impelidas às ruas pela necessidade do ofício, dependentes
de si mesmas e dos parcos ganhos auferidos do exercício desse
trabalho desqualificado”, disse Lorena.
Para compor sua narrativa, uma das fontes documentais utilizadas pela
pesquisadora foram processos criminais de mulheres presas por vadiagem.
“Muitas dessas mulheres eram lavadeiras, que tinham uma mobilidade
maior pela cidade, pois iam às casas para buscar ou entregar
roupas. E foram presas por estarem desempregadas ou bêbadas.
Percebemos, assim, como havia um forte controle social e policial
sobre os negros, pobres e mendigos nas ruas”, comentou.
A introdução das redes de abastecimento de água
e dos tanques domésticos, iniciada na década de 1880,
enclausurou esse trabalho, antes exercido extramuros. Posteriormente,
os próprios rios seriam enclausurados, em dutos subterrâneos,
invisíveis aos olhos dos habitantes, cada vez mais ignorantes
acerca da topografia e dos recursos naturais de sua cidade.
Amas de leite
Outra mudança fundamental, constituída pela entrada maciça
de imigrantes europeus, foi destacada pela historiadora no subcapítulo
dedicado às amas de leite, agora tema central de seu doutorado.
Desde 1870, com a Lei do Ventre Livre e a perspectiva de que não
nasceriam mais escravos no Brasil, a solução da imigração
começou a ser levada a sério pelas elites econômicas
e políticas. E as consequências práticas logo se
fizeram notar.
“As brasileiras negras continuaram a ser maioria entre as amas
de leite, mas surgiu uma competição entre elas e as
imigrantes – portuguesas, italianas e alemãs. Isso aparece
de forma bem clara no livro de inscrições”, afirmou.
Como uma das conclusões de sua pesquisa, a historiadora enfatizou
o quanto o trabalho doméstico ficou marcado, no país,
pela herança escravista.
“A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada
em 1943, ignorou a categoria, sob a alegação de que
as trabalhadoras domésticas desempenhavam atividades de caráter
não econômico. E a Constituição Federal
de 1988 limitou o acesso delas a somente 9 dos 34 direitos garantidos
aos demais trabalhadores”, afirmou.
“Apenas em 26 de março de 2013, quase 125 anos depois
do fim da escravidão, a aprovação do projeto
de emenda constitucional conhecido como ‘PEC das Domésticas’
estendeu à categoria direitos básicos, como jornada
de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais, pagamento
de horas extras e adicional noturno, fundo de garantia por tempo de
serviço e seguro-desemprego. Benefícios como auxílio-creche,
seguro para acidentes de trabalho e salário-família
carecem ainda de regulamentação”, disse.
Libertas entre Sobrados: mulheres negras e trabalho
doméstico em São Paulo (1880-1920)
Autora: Lorena Féres da Silva Telles
Lançamento: 11 de setembro de 2014
Preço: R$ 45,00
Páginas: 342
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Nota da Alameda Editorial:
Libertas entre Sobrados
Mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920)
Eis uma fotografia instantânea de uma população
numerosa: centenas de vultos de mulheres pobres, negras, desfilam ante
os olhos do leitor, mostrando a passagem maciça da escravidão
para outra condição servil, a de doméstica nos
fins do século XIX. Quadro que ainda nos é parcialmente
familiar. Dizia um brasilianista europeu: “Não dá
para entender o Brasil sem considerar uma figura que lhe é peculiar:
a empregada doméstica”.
O período escolhido por Lorena Féres da Silva Telles
presta-se como nenhum outro a uma leitura ideológica, uma leitura
que leva em conta a manifestação da mentalidade da classe
dominante e da classe subalterna.
Lidando com contratos de trabalho e com a crônica policial, a
historiadora faz vir à tona vários aspectos relevantes
do cotidiano popular de São Paulo daquele fim de século
XIX e começo do século XX. Conforme os registros policiais,
a extrema miséria nas mulheres sempre se confundiu com vagabundagem
e prostituição. Isso agravado pelo preconceito de cor.
O processo de retificação faz da doméstica um
corpo a ser explorado, alienado. As investidas dos patrões não
são seguidas, a não ser aleatoriamente, por garantias
jurídicas que instituam uma igualdade entre manceba e esposa,
ou entre os filhos naturais e os legais.
Casos exemplares levantados pela pesquisadora são numerosos,
atestando uma rara capacidade de observação. Fica para
o leitor a percepção de um trabalho intelectual intenso,
que conserva sensível homologia com o trabalho manual exaustivo
das mulheres que evocou.
A interação da história social com as trajetórias
individuais marca esse trabalho.
Sobre o autor:
Lorena Féres da Silva Telles graduou-se
em História pela Universidade de São Paulo e pela Paris-IV,
Sorbonne. É mestre em História Social pela Universidade
de São Paulo.
Fonte:
http://agencia.fapesp.br/19716
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