25/07/2014
Educação é única saída para
discriminados, diz primeira travesti doutora de uma Universidade Federal
Filha de agricultores analfabetos do interior do Ceará,
Luma de Andrade conta como, após décadas sendo vítima
de violência e discriminação, encontrou seu lugar
na primeira cidade do Brasil a abolir a escravidão.
por Carlos Albuquerque
Edição Rafael Plaisant
DW Brasil

Luma Nogueira de Andrade ao lado da reitora da
Unilab, Nilma Lino Gomes
____________
No ano passado, Luma Nogueira de Andrade se tornou a primeira
travesti doutora do Brasil, ao defender tese sobre o tema na Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Ceará.
Aos 36 anos, a filha de agricultores analfabetos do interior do Ceará
se tornou também a primeira professora travesti de uma universidade
federal ao entrar, na semana passada, para o Instituto de Humanidades
e Letras da Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção, a 55
quilômetros de Fortaleza.
Redenção ganhou esse nome por ter sido, em 1883, a primeira
cidade do Brasil a abolir a escravidão. Hoje, ela abriga a Unilab,
uma universidade destinada a brasileiros e a estudantes vindos de países
de Língua Portuguesa, especialmente os africanos.
Em entrevista à DW Brasil, Luma falou sobre
a luta das travestis no Brasil e sua batalha para superar o preconceito
e a discriminação: "A educação
é a única saída para muitas das pessoas que são
historicamente discriminadas."
DW Brasil: O que você conseguiu pode servir de exemplo
para outras pessoas no Brasil?
Luma de Andrade: A trajetória de vida das travestis
no Brasil é evidente desde a década de 1970/80, quando
elas buscavam a margem da sociedade para sobreviver. Por serem diferentes,
elas não eram aceitas na família. Nas escolas, existiam
mecanismos legais que impediam a presença das travestis e homossexuais,
como também na sociedade em geral, onde elas não tinham
acesso ao emprego.
E aí elas criavam linhas de fuga e resistência, e a única
alternativa de sobrevivência era a venda do corpo. Principalmente
durante a ditadura militar. Ao serem pegas nas ruas, elas eram acusadas
de atentado ao pudor, o que era um crime. Então eram presas,
colocadas em celas lotadas de homens, eram estupradas, violentadas física
e psicologicamente, muitas vezes assassinadas.
Não podemos negar esse contexto histórico e dizer que,
se hoje eu cheguei aonde eu cheguei, é porque eu sou fruto dessas
guerreiras, dessas batalhadoras, que lá no começo histórico
elas estavam resistindo E elas continuaram sua resistência.
Campus da Liberdade: o nome reporta à libertação
dos escravos na cidade cearense
Você é agora professora de uma universidade
que é praticamente única no Brasil. É também
é a universidade federal com a primeira reitora negra no país.
Essa diferença levou a uma maior aceitação também
a você?
Certamente. Eu teria que buscar uma universidade que estivesse alinhada
à minha forma de pensar. Eu sempre batalhei na minha vida, buscando
o meu espaço no centro da sociedade e não se conformando
com a margem dada como algo gratuito. Através da educação,
eu busquei me posicionar no centro da sociedade. E a educação
funciona como esse dispositivo de poder. Ao superar todos os preconceitos
pelos quais passei, eu tinha que buscar um local onde eu pudesse ter
a liberdade de realizar um trabalho pela liberdade. A Unilab é
esse espaço.
E a Unilab é uma universidade destinada especialmente
a africanos...
Ela funciona numa cidade que foi a primeira cidade do Brasil a libertar
as pessoas escravizadas. Trata-se de uma mudança de postura radical:
em vez de trazer as pessoas negras vindas da África para escravizá-las
no Brasil, a Unilab faz o inverso, ela traz pessoas vindas da África
para alcançar sua libertação. É como diz
Paulo Freire, a educação é liberdade. E algo mais
ainda simbólico: o nome do campus em que eu trabalho é
o Campus da liberdade e o meu trabalho é pela liberdade. E isso
faz parte do meu contexto histórico: a busca da convivência
pacífica e harmônica com as diferenças.
Você já havia lidado com esse tema em seu
doutorado?
O tema de meu doutorado é exatamente as travestis na escola,
o que elas passam para poder resistir no ambiente escolar e o que faz
com que elas sejam evadidas. Na verdade não é uma evasão
comum, é uma evasão involuntária, forçada.
Elas são forçadas a sair da escola, porque se cria um
aparato tecnológico, social, para que elas não sejam bem
aceitas.
A travesti não é respeitada pelo seu nome social. Ela
não pode frequentar o banheiro feminino. Ela não pode
ir ao banheiro masculino, porque é violentada sexualmente. Ela
não pode frequentar o banheiro feminino porque a gestão
escolar muitas vezes não aceita. Lógico que isso não
acontece em todas as escolas, mas nas escolas onde há gestores,
professores, educadores que não tenham compreensão sobre
a questão da diversidade e continuam utilizando termos fundamentalistas,
através da Bíblia, para poder justificar a questão
da negação e da exclusão.
Qual a importância de uma travesti como professora
da Unilab?
Porque nós temos vários países, principalmente
países africanos, que têm leis que criminalizam a questão
das homossexualidades. Existem países de onde recebemos estudantes
como, por exemplo, Cabo Verde, onde somente há pouco tempo os
jovens conseguiram derrubar a lei que previa a pena de morte para a
homossexualidade.
Mesmo a lei caindo, essas pessoas têm um histórico cultural
de uma negação muito forte. E é preciso ter um
trabalho muito intenso, para que essas pessoas possam compreender que
assim como elas foram vítimas do preconceito e da discriminação
no passado, hoje, elas são as protagonistas desta mesma história.
Eles podem retornar a seus países com outra mentalidade e podem
influenciar outros companheiros que lá estão, para uma
mudança de postura no respeito à diferença.
A homofobia no Brasil até hoje não é
crime. Comparando com os negros, como você vê o país
no que tange os direitos dos homossexuais?
É um processo histórico. O caminho percorrido pela população
negra para conquistar os seus direitos é bem anterior à
questão do movimento LGBT. Mas não significa dizer que
não existe a possibilidade de mudança radical. Nós
estamos num processo recente, que se iniciou, por assim dizer, na década
de 1960 com o movimento feminista. Então comparado ao movimento
negro, o movimento LGBT é recente. Embora as conquistas ainda
sejam poucas, a gente percebe que há melhoras a cada ano.

Unilab foi criada em julho de 2010
O que nos barra mais é a questão do movimento fundamentalista
dentro do Congresso Nacional. O movimento fundamentalista por parte
de alguns deputados e senadores emperra muito o processo da democratização,
do laicismo e das garantias dos direitos humanos. Eu diria até
que a democracia e o laicismo do Brasil estão ameaçados
por esses fundamentalistas.
Você enfrentou discriminação dentro
da família?
Sim, quando minha mãe morreu, meu pai me colocou para fora de
casa. Mesmo assim eu persisti nos meus estudos. Na escola, quando eu
era jovem eu era espancada na hora do intervalo porque os meus colegas
não aceitavam que eu brincasse com as meninas e quando eu chegava
na sala de aula, a professora apenas dizia: "Bem feito, quem
manda você ser assim". Mas eu não sabia o que
ela estava querendo dizer, porque eu era apenas uma criança.
Com o passar dos anos, eu fui compreendendo. Eu era vítima desse
processo, que na verdade era uma punição para poder se
adequar à norma.
Ou eu me adequava à norma ou eu era punida. Eu utilizava um artifício
que era o meu conhecimento e a minha capacidade de aprender com facilidade,
principalmente matemática, para poder ensinar meus colegas quando
se chegava próximo às avaliações. Então
eles precisavam da minha ajuda. Eu ganhava o respeito e a proteção
deles, porque eles não deixavam que os outros me batessem, por
conta dessa troca de favores.
De onde você tirou toda essa força para
seguir adiante?
Eu sou filha de agricultores analfabetos, eu venho de uma família
muito humilde de Morada Nova, uma cidade do interior do Ceará.
E nada foi fácil, tudo foi uma luta. Para a educação
foi uma luta, mas eu sempre buscava na educação essa saída.
Ela serviu para a minha vida como uma linha de fuga para a superação
do preconceito, da discriminação e da vida que eu tinha
na minha família, que era muito humilde.
Então a única saída é a educação.
Como é a única saída para muitas das pessoas que
são historicamente discriminadas, como os negros, homossexuais,
travestis. A educação é o único elemento,
a única linha de fuga, como diria o Foucault, para a libertação.
Fonte:
http://www.dw.de/educação-é-única-saída-para-discriminados-diz-primeira-professora-travesti/a-17308603?maca=bra-newsletter_br_Destaques-2362-html-newsletter
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