09/05/2014
Mariluce Moura | Edição 218 - Abril
de 2014
Revista Pesquisa Fapesp
Ecléa Bosi, professora emérita
de psicologia social da Universidade de São Paulo (USP), lida
com temas de pesquisa que não figuram entre os mais explorados
dentro dos estudos acadêmicos brasileiros: as leituras de operárias
e as memórias de velhos, por exemplo, para ficar em apenas dois
de peso decisivo em seu trabalho. Com frequência, Ecléa
dirige seu olhar para grupos sociais fragilizados: pobres, mulheres
trabalhadoras de baixa renda, idosos que, imersos na transformação
contínua da metrópole, vão perdendo a contragosto
as referências de seus percursos familiares, cotidianos, e penetrando
num tempo de certo esmaecimento da consciência de sua identidade.
Dos objetos escolhidos mais as personagens encontradas no processo de
pesquisa, ambos aludindo ao precário e ao vulnerável e
trabalhados sobre sólido chão teórico, ela construiu
uma vigorosa, singular e reconhecida obra em seu campo.

Léo Ramos
Faz parte dessa singularidade expressar o vigor dos achados e das reflexões
em tom suave, delicado, que ajuda a dotar as narrativas de Ecléa
Bosi de uma particular dimensão literária. Relatos de
pesquisa empírica e ensaios teóricos ganham muitas vezes
corpo de bela prosa poética. Mas, simultaneamente, parecem fazer
parte do vigor, da força vital do trabalho de pesquisa de Ecléa,
seu desbordamento para o campo da militância institucional, política.
É assim que se torna fácil compreender seu esforço
pela criação e desenvolvimento da Universidade da Terceira
Idade da USP, que, aos 21 anos completos, já levou para o campus
da maior instituição universitária pública
brasileira mais de 100 mil idosos, a maior parte detentora de precária
educação formal. Ou ainda sua militância ecológica,
que inclui de forma privilegiada em sua visada as operárias grávidas
que, sem saber, podem estar sendo submetidas a agentes tóxicos
nas fábricas em que trabalham.
_________
Idade: 77
anos
Especialidade:
- Psicologia social; Memória e sociedade
Formação: Universidade de São Paulo (USP):
- Graduação (1966), Mestrado (1970), Doutorado (1971)
e Livre-docência (1982)
Instituição:
- Instituto de Psicologia – USP
_________
Casada com o professor Alfredo Bosi, respeitado crítico e historiador
de literatura brasileira, mãe de Viviana Bosi, professora de
teoria literária, e de José Alfredo Bosi, professor de
economia, e avó de dois netos, Ecléa Bosi, que se mantém
em contínua atividade apesar de formalmente aposentada, concedeu
a Pesquisa FAPESP, numa manhã de tempo incerto cortada
por palavras luminosas, no Instituto de Psicologia da USP, a entrevista
cujos principais trechos publicamos a seguir. Livros e alguns antigos
recortes postos na mesa à sua frente, logo observou que sempre
foi bem tratada em sua vida profissional, mas algo que a tocara como
poucas outras coisas foi ver incluído, numa lista do Ministério
da Educação de 100 obras que seguem para milhares de bibliotecas
escolares do país, seu livro que escrevera com mais empenho,
o "Memória e sociedade – Lembrança
de velhos".
___________________________
Vejo nesses retalhos impressos de sua memória notícias
de seus trabalhos, lutas e prêmios.
Sim, acho que me empenhei muito na vida. Aqui estão coisas da
militante de ecologia.
Uma vida militante além de acadêmica.
Participei na implantação do Parque Ecológico Chico
Mendes. Temos aqui memória dos dois anos sucessivos da Semana
da Ecologia que organizei na USP, antes da fundação do
curso de Ciências Ambientais, em 1974. Apelei tanto para deputados,
senadores, gente importante, para que ajudassem na luta contra a usina
nuclear e, como as respostas não chegavam, decidi escrever a
alguém que eu admirava mesmo: Carlos Drummond de Andrade. Ele
estudou a questão e escreveu um artigo lindo intitulado “Se
eu fosse deputado”, publicado no Jornal do Brasil. Mais recente
é a luta contra Angra 3.
E este livro em destaque?
É uma coisa que fiz com grande prazer, o último livro
que escrevi, Velhos amigos, histórias verdadeiras para crianças
e adolescentes. Esse outro documento é um artigo que fiz sobre
um velho professor já falecido, da USP [José Severo de
Camargo Pereira]. Era professor temido. Um dia, vi que estava uma confusão
na Maria Antônia, fila na porta, gente para cá e para lá,
a Maria Antônia era uma caixa de ressonância da política
nacional. Cuba tinha sido invadida e as pessoas estavam ali para se
inscrever para lutar e defender a ilha. Aquela gente nunca tinha pegado
em armas e ia enfrentar o Exército norte-americano, imagine!
Era a invasão da Baía dos Porcos, em 1961?
Exatamente. Foi então que ouvi uma voz atrás de mim dizendo
que se sabia idoso, mas perguntava se aceitavam sua inscrição.
Era o professor Severo. Mas quero lhe mostrar os documentos de um projeto
que tem 21 anos [a Universidade Aberta da Terceira Idade]. Quase sempre
os programas trazem na capa pessoas que tiveram vidas sofridas, que
vieram do quase nada e estão aqui brilhando na USP.
E na capa dessa outra memória, um velho remando…
A minha obra começa com Leituras de operárias. Por que
leituras e por que operárias? Depois vem Memória e sociedade,
– Lembrança de velhos; Tempo vivo da memória; Simone
Weil: a condição operária; e Velhos amigos.
Procuraremos fazer esse percurso, mas antes preciso lhe perguntar:
de onde a senhora é?
De São Paulo, a infância vivida em Pinheiros. Nasci na
Maternidade São Paulo, na rua Frei Caneca.
Seus pais tinham que formação?
Eram muito simples, mas lembro que ambos escreviam poesia. Meu pai era
funcionário público, minha mãe, dona de casa. Estudaram
pouco. E eu tinha dois irmãos, mais novos.
Como era sua vida de criança?
Eu era uma leitora voraz. Os livros não me foram dados, não
vivi rodeada de livros, foram conquistados. Como? Andando a pé.
Um livro custava 12 passagens de ônibus. Eu estudava num casarão
lá nos Campos Elísios, aí atravessava toda a São
João, na volta, atravessava toda a Consolação,
toda a Rebouças e chegava lá na rua Mello Alves, onde
morávamos. E 12 passagens de ônibus economizadas equivaliam
a um livro. Então fui conquistando minhas leituras.
Quem eram seus autores preferidos?
Com 13 ou 14 anos já estava mergulhada em Dostoievski, Tolstoi,
Tchecov, mas também em Romain Rolland, Emily Brontë. Depois
li Hemingway, Sinclair Lewis, muita poesia. Traduzi mais tarde Ungaretti,
Leopardi, Montale, Rosalía de Castro (para jornais e livros).
Sua escola era pública?
Não. Era um colégio que não existe mais, chamado
Stafford, rodeado por um parque. Era um casarão enorme na alameda
Nothman. Nas caminhadas entre a casa e a escola eu fui me instruindo
sobre as desigualdades sociais. Via mansões, casas humildes e
meditava, sem que ninguém me dissesse nada, sobre a desigualdade
social. Também aprendi a conviver intimamente com a cidade. Depois,
quando fui estudar na Maria Antônia, nós, alunos, vivíamos
nas livrarias, bibliotecas, nos bares. A cidade era muito próxima
de nós.
A Maria Antônia surge em sua vida em tempos fervilhantes.
Como foi viver aqueles anos justamente ali?
Em primeiro lugar, havia os grandes mestres. Adorávamos nossos
mestres: [João]Cruz Costa, em filosofia, Ruy Coelho, professor
notável de sociologia,Gioconda Mussolini, da antropologia, Dante
Moreira Leite, que foi meu orientador, uma pessoa extraordinária,
na psicologia social, dona Anita Castilho Cabral, que fundou o curso
de psicologia.
Como a senhora se encaminhou para o curso de psicologia?
Quem sabe foi por causa da literatura! Quem lia o que eu lia…
Dostoievski procura olhar dentro do ser humano, e tudo levava a me interessar
a olhar dentro do ser humano. E esses grandes professores que eu tive
foram grande inspiração. É importante perceber
que a USP se entende não através das instituições,
mas dos mestres. Ela tem famílias espirituais. A presença
do mestre amado está em nossa obra, dirige o nosso olhar. Estamos
falando de uma época áurea da USP. Ali estavam Mário
Schönberg, Florestan Fernandes, Antonio Candido…
Os 10 mandamentos da ecologia formulados por uma
Ecléa Bosi militante
Como dentro da Psicologia se
definiu o rumo de seus estudos?
Fui para a psicologia social porque era uma época muito politizada,
de uma densidade política enorme. Minha classe era pequena, umas
12 pessoas, e foi quase toda dizimada pela ditadura. Fui colega de classe
de Iara Iavelberg, o que me marcou muito. Lembro-me da colega como uma
moça muito bonita, muito inteligente e que cantava muito bem.
Gostava de Ponteio, de Edu Lobo, também de Disparada [de Geraldo
Vandré]. Era muito boa em estatística, disciplina do professor
Severo, e íamos à casa dela para estudar. A Iara histórica
todos lembram, mas foi a perda da colega que acompanhei e vi o quanto
nossa turma sofreu com isso. Também lembro de Aurora Maria do
Nascimento Furtado, a Lola, aluna inesquecível. Quando o general
Fiúza de Castro escreveu suas memórias, perguntaram se
ele se lembrava dos subversivos que tinha capturado, e ele disse que
sim. Lembrava de uma mocinha muito valente chamada Aurora. Morreu com
a “coroa de Cristo” [instrumento de tortura], com o crânio
apertado, esmagado, uma morte muito heroica, porque não abriu
a boca. Foi presa em Parada de Lucas, no Rio de Janeiro, em 1972. Nunca
me esqueci dela, nem posso – fundei na Psicologia uma “sala
Aurora”, com fotografias dela e com esse depoimento do general
sobre sua valentia. Sobre Iara, gostaria de dizer ainda que dona Anita
a convidou para ser professora de psicologia social e ela chegou a ser
docente, mas logo partiu para a clandestinidade. Lembro-me dela fazendo
análise de conteúdo dos discursos do Fidel Castro. Nunca
terminou esse trabalho, porque desapareceu em seguida. Mas nos deixou
um belo artigo sobre linguagem e comunicação que saiu
numa revista da SBPC e eu tive o prazer de dá-lo a meus alunos
para que o lessem.
Então, sua proximidade com a luta política teve
alguma influência em seu direcionamento para a psicologia social?
Sim, me marcou. O que escolhi para a minha tese de doutorado? As operárias.
Por que leitura? Porque é uma área problemática.
As operárias, aliás, todos nós somos colhidos pelos
fluxos da televisão e dos outros meios de massa. Mas a leitura
exige uma vontade, uma opção de escolha. É um ato
mínimo de vontade, mas esse passo precisa ser dado. E, no caso
das operárias, envolve um grande empenho pessoal, porque não
há livrarias nos bairros populares. O que impede a leitura da
operária? A jornada longa e extensa, a dupla jornada de trabalhadora
e de mãe de família, com todos os trabalhos caseiros.
A moradia distante, a falta de centros culturais, o salário gasto
na sobrevivência.
Embora as operárias entrevistadas em sua tese sejam
mais jovens e entre elas se encontrem várias solteiras e sonhadoras.
Você toca em algo que acho notável. A operária solteira
tem um tipo de mentalidade, a operária casada, mãe de
família, outra: é militante. Ela não falta quando
precisa reclamar ou ter uma ação política, sempre
está na frente.
Pelo compromisso dela com os filhos, provavelmente.
Isso, o salário dela é muito importante para a família.
Colhi depoimentos dessas operárias. Otto Maria Carpeaux fez o
prefácio do livro e ele diz, “mas que pesquisa desoladora,
que mentes seduzidas e exploradas”. Mas eu quis dar um passo à
frente: constatei o que a operária lia e procurei saber o que
ela gostaria de ler. Entrei no universo do possível.
E a diferença entre o que ela lia e o que gostaria de
ler abarca um abismo?
Não, mas é diferente. A comunicação de massa
é dupla: no terreno da propaganda, procura mostrar o que há
de mais avançado na técnica; no terreno do imaginário,
explora uma mentalidade pré-industrial que sobrevive na cultura
do homem pobre e que seria a literatura de folhetim. Como é a
literatura de folhetim que a operária tanto amava? Em geral,
traz a situação da mulher e da criança que sofrem
violência social. A mulher vive o desequilíbrio, a situação
de vitimismo. Esse é o romance que a operária lê.
E se reequilibra, quando a história termina bem, através
do matrimônio, intervenção do destino.
No folhetim-livro ou nos enredos das revistas?
Na revista e no folhetim, no enredo romântico a mulher e a criança
são vítimas não da sociedade, mas do destino. E
essas histórias não são datáveis, são
eternas: carregam o sentimento de exclusão do mundo, de evasão,
a fantasia compensatória com que tanto Freud se preocupou…
Umberto Eco tem uma expressão bonita para isso: estruturas da
consolação. E Gramsci as nomeia complexo de inferioridade
social ou devaneios de compensação. Gramsci lamenta muito
que os intelectuais não se preocupem com as leituras populares.
Assim, não criaram um humanismo moderno capaz de alcançar
os mais humildes.
Entre a visão de Carpeaux, a visão de Gramsci
e a sua própria, parece-me que uma diferença sensível,
entre outras, é a verdadeira proximidade com que a senhora trata
o grupo que estuda.
Antes, deixe-me lhe dizer, esses romances românticos, de que tratam?
A meu ver, a operária se impressiona com questões essenciais
ligadas à justiça, à culpa, ao castigo, à
transgressão, à revolta, ao suplício imerecido.
Mas não é disso mesmo que trata a grande literatura? Os
temas são os mesmos. Os olhos do leitor alcançam e tocam
esse drama humano. Os clássicos tratam disso e o leitor trabalhador
manual, se tivesse oportunidade de ler os clássicos, provavelmente
se sentiria em casa.
Nesse sentido, entre o que eles poderiam ler e o que leem,
senão um abismo, há uma distância.
Veja bem, há livrarias nos bairros operários? Vi que as
operárias compravam livros de kombis que rondavam as fábricas.
Fui entrevistar os livreiros – aí é que Carpeaux
choraria se os ouvisse – e eles me contaram que vão às
livrarias e editoras, compram os refugos e os encadernam (ou encadernavam,
na época de minha pesquisa) lindamente. A operária que
dedicou horas e horas, às vezes dias, para comprar um livro assim
bonito vai pôr esse volume na sala e guardar para os filhos. São
caros, muito caros os livros. Veja como é decisivo o passo em
direção à leitura.
Quanto tempo foi gasto em todo o seu trabalho de pesquisa da
tese?
Levei dois anos nessas conversas com 52 mulheres. Só uma estudava,
mas, exausta, estava em via de abandonar os estudos. Devo lembrar aqui
alguns antecedentes dessa história de investigar leituras operárias:
a escritora francesa George Sand [1804-1876] entrevistou trabalhadores
para saber o que liam e concluiu que a história oficial, a cultura,
não seria completa se não se incluíssem as fantasias
e desejos daqueles leitores. A escritora e filósofa Simone Weil
[1909-1943] contou as tragédias de Sófocles para as operárias
de uma metalúrgica. Elas vibravam com a narrativa e Simone Weil
percebeu que a ficção pode ser uma fuga, uma evasão
– mas também uma revelação.
Em sua leitura, as leituras das operárias tinham mais
de fuga ou de estratégia para sobreviver mantendo certa sanidade?
Isso é um triunfo da cultura de massa sobre a cultura operária
– que faz parte da cultura popular e também da cultura
de massa, mas são diferentes. Quando o operário se evade,
lendo, e procura a fantasia, ele não está criando uma
cultura operária, porque essa tem que ter um elemento de militância.
A cultura operária pergunta: quem somos nós, o que são
as pessoas como nós? Qual é o significado do nosso trabalho,
qual o valor do nosso trabalho para a sociedade? Por isso Gramsci quis
criar em Turim as universidades operárias, onde dava aula. Por
isso Simone Weil, que foi operária metalúrgica, dava aula
para os ferroviários, para os mineiros. Penso que Simone, Gramsci
e outros pertencem a uma vanguarda enraizada, expressão de Alfredo
Bosi que eu aceito e admiro.
E qual o sentido aqui da palavra “enraizada”?
O enraizamento é viver intensamente a cultura popular. Mariátegui,
Simone Weil e Gramsci viviam intensamente a cultura popular e fizeram
com que seus estudos se alimentassem dela. Não há melhor
alegria no mundo do que fazer um estudo para uma universidade e ver
que ele tem repercussão numa política pública.
No caso de Leituras de operárias, tive
a alegria de trabalhar na prefeitura na gestão de Luiza Erundina
[1989-1993], na Secretaria de Obras, com Lucio Gregori, na Secretaria
da Cultura, com Marilena Chauí, na criação de bibliotecas
populares – ela estava muito interessada em formar comunidades
de leitores – e também fui convidada por Paulo Freire para
trabalhar na Secretaria da Educação. Foi uma época
de militância que resultou de Leituras de operárias.
Mas o que mais apreciei ter feito na vida, nesse âmbito de políticas
públicas, foi ter ido à Organização Internacional
do Trabalho [OIT], na ONU, em Genebra, e ter feito a denúncia
do trabalho operário feminino no seguinte aspecto: todo ano aparecem
agentes químicos novos, nocivos, e não estudados de maneira
alguma quanto à repercussão no organismo feminino. No
caso das fábricas que trabalham com radiação, esta
afeta o tecido embrionário nos três primeiros meses de
gravidez, fase em que em geral a operária não sabe que
está grávida. A criança vai sofrer os efeitos dessa
radiação em sua saúde anos mais tarde. E os culpados
ficam impunes. O que seria preciso fazer? Estudar os agentes nocivos
nas fábricas em que a mulher trabalha.
A denúncia teve alguma consequência prática
em termos de políticas gerais?
Naquela época houve a denúncia do amianto e muitas nações
ali presentes o proibiram. O Brasil não quis assinar.
Antes da memória, dado que fiquei muito interessada
na expressão “vanguarda enraizada”, pergunto-lhe
se não há por parte de muitos intelectuais um tratamento
excessivamente condescendente – a ponto de soar irritante e até
ofensivo – ao examinar hábitos, comportamentos, modos de
vida de representantes das classes mais pobres etc., quando não
têm qualquer vínculo efetivo com essas comunidades.
Quando um intelectual vai à periferia colher informações,
ele está recebendo. Ali, o doador é o pobre. Ele vai colher
informações para fazer tese, subir na carreira acadêmica,
e quem lhe deu tudo fica vivendo sua vida precária, sem esperança.
E o intelectual sobe à custa desses doadores, sem formar com
eles – numa expressão que me é caríssima
– uma comunidade de destino. São destinos divergentes e
ele tem que ter consciência disso. Aliás, na pesquisa é
fundamental a pessoa perceber que uma coisa é registrar informações
e outra coisa é escutar. Se o pesquisador tem o dom da escuta,
a palavra “dom” já inclui a amizade. Não existe
amizade temporária. Não existe simpatia fácil pelo
sujeito da pesquisa, pela classe desfavorecida. Existe engajamento responsável
da vida inteira. Isso é amizade.
Podemos voltar então ao trânsito das leituras
para a memória.
Todo ano dou curso sobre memória e oriento as pesquisas dos alunos
que também vão estudar memória. No estudo Memória
e sociedade colhi a memória biográfica,
mas também veio junto a memória do tempo, do espaço,
a memória política, a memória do trabalho e a memória
cultural. Quais eram as características desses velhos entrevistados?
Eram sensíveis às transformações urbanas.
Eles foram percebendo como a cidade foi mudando e como isso se refletia
em cada passo da biografia. Os urbanistas têm que escutar essas
memórias, saber o que essa cidade significa e o que as transformações
da cidade significaram na vida de seus cidadãos. O que os velhos
me contaram das suas cidades? Contaram histórias que ouvimos
de nossos avós, a passagem do cometa Halley, em 1910. Todos descreveram
o cometa Halley, descreveram os mata-mosquitos de Oswaldo Cruz nos bairros
varzeanos, descreveram a gripe espanhola, as peripécias do ladrão
Meneghetti, que era um ladrão muito simpático, que tirava
dos ricos para dar aos pobres. Aliás, as histórias do
Meneghetti são extraordinárias. Ele comprava discos de
ópera, porque aqueles bairros operários, como o Bixiga,
eram bairros italianos, e como era o único que tinha vitrola,
colocava bem alto, para todos ouvirem. Eram todos loucos por ópera.
Mas a memória dos velhos rema contra a maré, porque a
cidade não permite a visitação de um velho a outro.
Eles perdem o grupo recordador das mesmas lembranças. Esse grupo
recordador é testemunha e intérprete dessas lembranças.
Quando isso se perde, as memórias se dispersam e precisa muito
esforço para colhê-las. O anarquismo do início do
século XX, a revolução do Isidoro, aliás
quanta criança se batizou com nome de Isidoro depois… A
Coluna Prestes, a revolução de 1932, as duas grandes guerras,
Getúlio e o trabalhismo, lembrados de maneira comovente. Na morte
de Getúlio, me contou um velho, foi lançado gás
lacrimogênio para que os operários não se reunissem,
mas eles se reuniram mesmo assim e choraram por causa do gás,
só depois souberam por quê. Eu entrevistei uma professora
comunista que subia nos andaimes e jogava pedras quando havia passeata
de integralistas e entrevistei um velho integralista que recebia as
pedradas quando se construía a Catedral. Os pontos de vista são
diferentes, mas as suposições constituem a história
igualmente, seja qual for nosso ponto de vista. Outra lembrança
interessante são as de jovens e adultos que lembram de noites,
no tempo da ditadura, em que escutavam cochichos, camas arrastadas,
lugares improvisados. E essas confusões domésticas eram
para esconder militantes que se refugiavam nessas casas. Entendemos
que centenas de famílias esconderam revolucionários, simpatizando
ou não com suas ideias. Acho impressionante. Quantas donas de
casa não esconderam jovens perseguidos pela polícia? Salvaram
a vida deles, sem conhecer a ideologia desses jovens? As lembranças
do espaço e dos acontecimentos políticos e históricos
começam, em primeiro lugar, na casa materna, que é o centro
geométrico do mundo. A cidade parte da casa materna em todas
as direções. Dali partem as ruas, as calçadas onde
a vida se desenrolou. Eu colhi os pregões dos vendedores, as
cantilenas que atravessavam os bairros. Gravei pauta musical dos bairros
e aprendi que a cidade não é só um mapa visual,
é um mapa sonoro e ele faz parte da nossa identidade, da nossa
integridade. Se você pensar, a rua tem uma trilha sonora. Se você
começar a gravar, desde uma porta que se abre, a vassoura na
calçada, as lojas que se abrem… É muito bonito o
paulistano descrevendo a cidade, porque ele fala “ali na Penha”
e aponta a palma da mão.
Velhos: revelando-se nas memórias e na Universidade
da Terceira Idade da USP
Ele tem a cidade na palma da mão.
É um mapa afetivo da cidade. Quais são os lugares da memória
paulistana? O viaduto do Chá, a Catedral, a Penha, porque as
crianças que eram batizadas eram levadas na Penha e os noivos
iam peregrinar na Penha depois do casamento. O Museu do Ipiranga, o
Jardim da Luz, a Cantareira e o Teatro Municipal. Os velhos memorialistas
diziam “desci os 84 degraus…”, como se todos soubessem
que tem 84 degraus. Esse pessoal do Brás e da Mooca botava as
melhores roupas e vinha para a porta do Municipal. Desfilava a elite
paulistana, seguia para seus lugares. Depois o bilheteiro escolhia daquele
pessoal os que estavam mais bem-vestidos e dizia para entrar. Então
o que eles faziam? Ficavam nas galerias e batiam palmas na hora certa,
porque conheciam a ópera. Quando começavam a bater palmas
na galeria, a elite sabia que era um momento importante. Se um tenor
desafinava, por exemplo, a galeria ficava em silêncio, diziam
“stonato il tenore”, e não batiam palma. E tinha
uma figura extraordinária em São Paulo, que era um preto
que tinha uma risada inesquecível. Então ele era sempre
convidado a entrar de graça, claro. Quando ele ria, a risada
dele contagiava todo o auditório. Eu tinha um tio que era claque
e ele me ensinou a bater palma, como a claque devia bater palma, fazendo
um eco. E as várzeas: da Barra Funda, do Glicério, do
Limão, da Casa Verde, quantos campos de futebol ali existiam?
Só conhecemos o futebol de estádio quando as indústrias
tomaram as várzeas para usar o rio como canal de seus dejetos.
Essas memórias são todas da primeira metade do
século XX?
Sim, mas isso não quer dizer que eles não continuaram
lutando até o fim. Já lhe conto da dona Jovina Pessoa,
uma grande militante que entrevistei. Os bairros de São Paulo,
quando descritos pelos velhos, têm uma biografia, assim como nós.
Têm infância, juventude, maturidade e velhice. E a velhice
é a quadra mais bela dos bairros, porque ali se constituiu já
a sua memória. A fisionomia do bairro amadurece, acompanha a
respiração dos moradores. As nossas histórias se
misturam com a história do bairro e vamos enxergar na rua aquilo
que nunca vimos, mas que nos contaram. Quando a fisionomia do bairro
se humanizou e amadureceu, ela pode continuar vivendo, mas pode ser
golpeada de morte. Golpeada pelas imobiliárias e urbanistas que
não têm nenhum interesse na memória, na sobrevida
dos moradores. O caminho familiar entre a casa e os lugares que se costuma
ir não é um privilégio do ser humano, mas do ser
vivo. O bairro é uma totalidade estruturada, comum a todos, que
vamos percebendo pouco a pouco e traz um sentido de identidade ao morador.
É terrível perder o caminho de volta, é o retorno
do caminho familiar se ele ainda existe. Os velhos ficam acuados quando
as quadras do bairro são arrasadas. Para onde vão? Tentam
resistir, mas em geral perdem a parada. A mudança e a morte se
equivalem para as pessoas. Os urbanistas devem escutar os velhos moradores
que têm a memória de cada rua e de cada bairro. Os conselhos
de bairros têm direito de veto? Teoricamente sim, mas será
que são escutados?
Seu trabalho sobre a memória seguiu-se às Leituras
de operárias, portanto, as entrevistas com os velhos ocorrem
nos anos 1980?
Isso mesmo. E depois dessa tese floresceram os estudos sobre memória
no Brasil, muitos. Há uma causa profunda para eles e acredito
que seja decorrência da necessidade de enraizamento.
Afinal, vivíamos num país que estava tentando
extirpar um pedaço da memória por razões políticas,
não é?
Os trabalhos de memória e sociedade têm um selo de nostalgia,
um sabor agridoce. Porque a pessoa, enquanto conta a vida e a cidade,
faz uma das operações mais difíceis para a mente
humana, que é aceitar o irreversível, o que se perdeu.
Quando conta, dá seu consentimento a essa perda, com graça
e com liberdade. Instruída por esses bravos recordadores, pensei
neles e na velhice na sociedade industrial. Como esta sociedade é
maléfica para a velhice! Por causa das mudanças históricas
que se aceleram, o sentimento de continuidade da pessoa é rompido.
E foi aí que veio seu projeto da Universidade da Terceira
Idade?
Sim, abrimos a universidade. Afinal, não são os impostos
dos velhos trabalhadores que nos sustentam? Então é natural
que venham. E quem vem? Pessoas que nunca conseguiram estudar. E sentam-se
na classe junto com os alunos de graduação. É a
primeira vez que nosso aluno estuda ao lado de um trabalhador manual,
um pedreiro ou uma doméstica que não estão a serviço
dele. Essas pessoas estão participando da paixão pelo
conhecimento e alguns tomam três conduções para
ir à USP. Às vezes uma delas lava toda a roupa do cortiço
onde mora para comprar uma revista especializada que o professor pediu.
Falei trabalhadores manuais porque eles são a glória do
projeto, mas podem vir também alunos que têm mais cultura
que o professor, como a dona Neuza Guerreiro, bióloga, uma pessoa
de grande cultura. Mas em geral são pessoas que não puderam
estudar e elevam o nível das aulas, porque foram testemunhas
da história. O aluno não sabe o que sofreu uma pessoa
exilada e perseguida pela ditadura e o aluno de terceira idade a seu
lado pode ter sido essa pessoa. Nem sempre o mais jovem tem a visão
mais avançada. Quer um exemplo? Uma aluna que nunca teve estudo
universitário é mãe de dois arquitetos que estão
desenhando a planta da nova casa. Ela vira-se para os filhos e diz que
não concorda com a planta, embora esteja muito bonita, porque
o tamanho do quarto de empregada é minúsculo e, ela explica,
no curso de psicologia social aprendeu que o espaço do trabalhador
tem que ser mais respeitado. E os arquitetos refazem a planta de novo.
A Universidade da Terceira Idade vai muito além de um projeto
acadêmico porque reaproxima o idoso da comunidade.
Mas eles não podem ser vítimas de um certo preconceito
por parte dos alunos?
Logo o preconceito se desfaz. Um velho operário, ante a classe
reclamando do excesso de bibliografia para a prova, levanta-se e diz
que foi operário a vida inteira, mas que agora, por causa da
idade, só consegue trabalho quando os operários saem e
ele vai lavar as máquinas e o chão. Comenta, “que
trabalho pesado”, pede um livro a um colega, segura, mostra para
a classe e diz: “Como o livro é leve!”. Isso comove
a classe toda. Como o livro é leve perto do trabalho de um metalúrgico
discriminado porque está velho! Coisas inesquecíveis.
A cada ano, quantos estudantes da terceira idade entram na
USP?
Varia, mas nos anos recentes em geral têm entrado 10 mil. Já
tivemos mais de 100 mil matrículas em 21 anos. Eles vêm
de toda parte e se espalham pelos diferentes cursos e departamentos.
À não especialização do velho, corresponde
também a não especialização do professor.
Assim, o professor de mineralogia dá aula de dança folclórica,
de roda. O professor de engenharia química dá aula de
cinema. Porque o professor tem aí uma responsabilidade enorme,
dá aula para um aluno que já estava interrogando as estrelas
antes de ele ter nascido. O professor é consciente do passado
desse aluno e por isso se prepara muito mais para dar essa aula.
Como chegaram os primeiros alunos à Universidade da
Terceira Idade?
Muito tímidos. Eu queria lembrar dona Santinês, vendedora
ambulante, cozinheira, que teve uma vida muito sofrida. Eu estava dando
uma aula dizendo que o tempo é vivido diferentemente conforme
a classe social. A classe estava com dificuldade para apreender isso
e ela, semialfabetizada – só tinha lido mesmo a Bíblia
– se levantou e começou a citar versículos bíblicos
que sabia de cor. Ela dizia assim: “Todas as coisas têm
seu tempo debaixo do sol. Há tempo de nascer e de morrer, tempo
de plantar e tempo de colher, tempo de chorar e de sorrir, tempo de
rasgar e de costurar, tempo de buscar e tempo de perder, tempo de abraçar
e de se separar; tempo de calar e tempo de falar”. Os alunos compreenderam
na hora e ficaram tocados, porque ela mesma tinha chegado ao tempo de
falar – falar em público, se expressar.
Ouvir sobre sua trajetória acadêmica me traz a
sensação de que ela é atravessada por um componente
mais íntimo muito poderoso. Permita-me perguntar, o que lhe move
à visão generosa de inclusão social?
Talvez o meio em que vivi meus primeiros anos. E a imensa simpatia que
tenho por essas pessoas humildes que me deram tudo me faz achar que
devo estar a serviço delas enquanto eu viver. Na verdade, estou
a serviço da Universidade da Terceira Idade, não fico
à vontade se você diz que eu a criei ou que a dirijo –
estou a serviço.
Pergunto por conta de seu longo trajeto marcado por esse sentido
de serviço ao outro. Aí vejo a expressão de um
exercício cristão ou de outro campo religioso similar,
a expressão de uma dimensão utópica na prática
da vida cotidiana, enfim… As pessoas generosas são muito
movidas por crenças profundas.
E você quer coisa mais bonita que o serviço? Qual foi o
primeiro milagre de Cristo? Transformou água em vinho numa festa
para tomar com os amigos. Foi um primeiro serviço muito humano
e daí foi em frente.
Quem são os seus mestres em psicologia social?
Falo dos que são próximos, muito presentes quando escrevi
meus trabalhos. Em teoria da Gestalt, Anita de Castilho Marcondes Cabral,
em teorias sobre o tempo, Henri Bergson. Também Maurice Halbwachs
[1877-1945], a quem dediquei meu livro, psicólogo social que
morreu no campo de concentração de Buchenwald. E na hora
da interpretação minhas ligações são
com Adorno, Marx, Hannah Arendt… Gosto especialmente do fundador
da ecologia política, Andre Gorz [1923-2007]. Figura linda. E
o último livro dele, Cartas a D., que são cartas de amor
que escreve para a mulher, foi traduzido a meu pedido. A edição
brasileira é mais bonita que a edição francesa.
Como é sua prática diária na universidade?
Eu oriento trabalhos de memória. Encontrei Simone Weil em meu
caminho, hoje coordeno o Laboratório Simone Weil, que já
tem 11 anos. É interdisciplinar e reúne pesquisadores
que só estudam a obra de Simone Weil. Daí nasceram pesquisas
admiráveis baseadas em seu conceito de enraizamento. Coordeno
a Universidade da Terceira Idade e dou aulas na graduação
e na pós. E plantei quatro pomares.
Vamos contar essa história dos pomares.
O paulistano é um migrante urbano. Entrevistei umas 140 pessoas
e só uma vivia na casa em que nasceu. Eu mesma mudei muito de
casa, e em cada casa que morei plantei um pomar, mas não cheguei
a colher frutos a não ser na casa de Cotia, onde vivi por 40
anos e da qual saí há alguns meses. Sinto muita falta
das minhas árvores. A vida é um pouco isso, plantar árvores
frutíferas, pedindo a Deus que alguém esteja lá
depois saboreando os frutos.
Fonte:
http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/04/24/eclea-bosi-narrativas-sensiveis-sobre-grupos-fragilizados/
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