06/04/2012
Guilherme Freitas
- Prosa Online
A antropóloga francesa Michèle
Petit fala de experiências desenvolvidas por mediadores
de leitura em "espaços em crise" -
locais afetados por confrontos armados, catástrofes naturais,
pobreza - sobretudo na América Latina.
Nestas situações, sugere:
"Mais importante que a interpretação
do texto é o encontro ao redor do livro: a leitura funciona
como um catalisador para discussões em grupo sobre questões
(pessoais ou coletivas) despertadas pelas obras".
Entrevista originalmente publicada em 20/02/2010
Numa das muitas histórias sobre grupos de leitura em regiões
em conflito reunidas em "A arte de ler" (editora
34, tradução de Arthur Bueno e Camila Boldrini, R$ 42),
a antropóloga francesa Michèle Petit conta o caso dos
bibliotecários da Comuna 13, um conjunto de bairros pobres na
periferia de Medellín.
No fogo cruzado entre guerrilheiros das FARC e paramilitares colombianos,
a biblioteca se transformou em ponto de encontro (e, muitas vezes, em
abrigo) para jovens da vizinhança, que encontravam nas atividades
promovidas pelos funcionários e nos livros disponíveis
nas estantes um refúgio momentâneo para a brutalidade da
rotina.
A história pode sugerir uma visão um tanto romântica
da cultura como antídoto para a barbárie (impressão
reforçada pelo subtítulo do livro, "Como resistir
à adversidade"), mas Michèle Petit argumenta, em
entrevista ao GLOBO, que o trabalho de pessoas como os bibliotecários
de Medellín nada tem de ingênuo:
"eles sabem que a literatura não vai reparar as violências
ou as desigualdades do mundo, mas observam que ela oferece um apoio
notável para colocar o pensamento em ação, para
provocar o autoquestionamento, suscitar um desejo, uma busca por outra
coisa", diz.
"A arte de ler" relata experiências desenvolvidas por
mediadores de leitura em "espaços em crise" —
locais afetados por confrontos armados, catástrofes naturais,
pobreza e migrações forçadas — em diversas
regiões, mas sobretudo na América Latina (inclusive no
Brasil). Nestas situações, sugere a autora, mais importante
que a interpretação do texto é o encontro ao redor
do livro: a leitura funciona como um catalisador para discussões
em grupo sobre questões (pessoais ou coletivas) despertadas pelas
obras.
Autora de "Os jovens e a leitura" (publicado
também pela editora 34), no qual reflete sobre os desafios da
tão debatida "formação de leitores",
Michèle critica nesta entrevista a forma como o tema costuma
ser abordado ("Certos discursos de glorificação da
leitura dão vontade de jogar videogame!", brinca) e defende
que as situações extremas relatadas em "A arte de
ler" podem inspirar novas abordagens para a difusão da leitura.
"A arte de ler" fala de experiências de leitura
em locais que a senhora chama de “espaços em crise”,
sobretudo na América Latina. Por que escolheu esses lugares e
que tipo de atividade encontrou neles?
MICHÈLE PETIT: Há muito
tempo observa-se que a leitura ajuda a resistir às adversidades,
mesmo nos contextos mais terríveis. Mas a maior parte daqueles
que deram testemunho disso estavam imersos desde a infância na
cultura escrita. As experiências que me interessaram na América
Latina reúnem crianças, adolescentes ou adultos com pouca
escolaridade, vindos de famílias pobres, que cresceram longe
dos livros. Por exemplo: na Colômbia, jovens saídos da
guerrilha ou de grupos paramilitares, toxicômanos, soldados feridos,
populações desalojadas; na Argentina, mães de crianças
pequenas em situação de extrema pobreza, jovens que sofreram
abusos ou vítimas de catástrofes naturais. Essas experiências
literárias compartilhadas se desenrolam em espaços de
liberdade, sem registros escritos nem controle de presença, sem
preocupação com rendimento escolar imediato nem resultados
em termos quantitativos. O dispositivo é aparentemente muito
simples: um mediador propõe suportes escritos a pessoas que não
estão acostumadas a eles, lê alguns em voz alta, e então
um relato ou um debate surgem entre os participantes. Os textos lidos
despertam seus pensamentos e palavras. Não porque esses textos
evoquem situações próximas das que eles viveram.
Aqueles que têm um efeito "reparador" são em
geral até muito surpreendentes. Através de um conto ou
poema qualquer escrito do outro lado do mundo, eles leem páginas
dolorosas de sua vida de forma indireta, falam de sua própria
história de outra maneira, e conseguem compartilhá-la.
Quais são as principais diferenças entre a leitura
individual e a experiência coletiva que é a leitura mediada?
MICHÈLE: Há séculos
a leitura é associada à imagem de um leitor — e
mais ainda, talvez, de uma leitora — solitário e silencioso,
numa intimidade autossuficiente. Isso pode contribuir para afastar da
leitura pessoas que vivem em meios onde se dá preferência
a atividades coletivas e onde o ato de se colocar à parte do
grupo é visto como rude. As experiências de leitura compartilhada,
ao contrário, podem facilitar a apropriação dos
textos, desde que eles não sejam percebidos como algo imposto.
O interessante nos casos que estudei é que eles se desenrolam
num quadro coletivo, mas onde cada pessoa é objeto de atenção
singular. Cada um é ouvido com atenção, disponibilidade
e confiança em sua capacidade e criatividade. Os ritmos ou as
culturas próprias a uns e a outros são respeitados, suas
palavras recebidas e valorizadas. Esses jovens são frequentemente
solicitados, e formados, para tornarem-se também mediadores de
leitura para outros, como faz, por exemplo, o grupo A Cor da Letra,
no Brasil. É uma forma coletiva, mas que dá lugar a vozes
plurais, a uma escuta mútua, a singularidades. A leitura solitária
não se opõe a esses pequenos grupos livremente constituídos
onde o tempo de leitura e discussão é repartido e onde
cada um se retira em seguida para sua casa, levando consigo fragmentos
de páginas lidas e palavras compartilhadas. Tanto uma quanto
a outra desenham espaços de liberdade e, às vezes, de
resistência.
Segundo o livro, os mediadores veem seu trabalho como uma atividade
"cultural, educativa e, em certos casos, política".
Qual seria a dimensão política da difusão da leitura?
MICHÈLE: Aqueles cujo trabalho
acompanhei acreditam trabalhar por algo muito maior, que é de
ordem cultural, poética, educativa e, em alguns aspectos, política.
Eles não são ingênuos, sabem que a literatura não
vai reparar as violências ou as desigualdades do $, mas observam
que ela oferece um apoio notável para colocar o pensamento em
ação, para provocar o autoquestionamento, suscitar um
desejo, uma busca por outra coisa. E numa época em que os partidos
políticos não conseguem fazer isso, a leitura compartilhada
aparece como um meio de mobilizar as pessoas, de driblar a repressão
à palavra e produzir experiências estéticas transformadoras
(além de favorecer a aproximação da cultura escrita).
Estes professores, bibliotecários, escritores, psicólogos,
ou simples cidadãos, se engajam numa ampla partilha do texto,
mas também na construção de uma sociedade mais
democrática e solidária.
Alguns argumentos a favor da leitura de obras literárias
fazem com que ela pareça mais uma obrigação ou
uma necessidade do que um prazer. Como fazer esse trabalho de difusão
e, ao mesmo tempo, preservar a dimensão lúdica da leitura?
MICHÈLE: Certos discursos de glorificação
da leitura dão vontade de jogar videogame! E os discursos jamais
fizeram alguém ler, tampouco as campanhas de massificação
para "criar" ou "formar" leitores. Seja pai ou professor,
quem diz que uma criança tem que ler (ou pior: que tem que gostar
de ler!) faz da leitura um fardo ao qual ela precisa se submeter para
satisfazer os adultos. O impasse está garantido se quem diz que
"ler é um prazer" não tem nenhum gosto pela
leitura: a criança vai sentir que a pessoa não está
sendo sincera. O belo discurso transmite o contrário do que pretendia.
Afinal, no fim das contas, por que alguém se torna leitor? Na
maior parte do tempo, porque viu a mãe ou o pai mergulhado nos
livros quando era pequeno e se perguntou que segredos eles podiam desvendar
ali. Ou porque eles leram histórias em voz alta, dando à
criança liberdade de ir e vir, sem conferir constantemente se
ela tinha entendido bem. Ou ainda porque as obras que havia em casa
eram assunto de conversas intrigantes ou divertidas. Em certas famílias,
as chances de ter essas experiências vêm de nascença
ou quase. Em outras, os livros evocam para os pais nada além
de lembranças de humilhação e tédio. Junte-se
a isso as dificuldades econômicas e a distância dos locais
onde se pode encontrar suportes escritos. Nessas famílias, se
as crianças ou adultos acabam lendo, e até vivendo a leitura
com alegria, é graças a um encontro, ao acompanhamento
caloroso de um mediador (professor, bibliotecário, amigo, assistente
social...) que tem gosto por livros e sabe tornar esses objetos desejáveis,
o que é uma arte. Essa arte passa por um trabalho sobre si mesmo,
sobre sua própria relação com os livros, para que
a criança e o adolescente não digam: "Mas o que ele
quer, esse aí, por que ele quer me fazer ler?" É
esta arte que está no coração das experiências
que estudei e no coração do meu livro. Ela tem que ser
apoiada, encorajada, e as iniciativas desses mediadores devem ser difundidas
e multiplicadas, por uma vontade política, para que seja dada
a todos, onde quer que vivam, uma chance de encontrar ecos de sua experiência
humana, de descobrir outros mundos e de se apropriar realmente dos textos
— o que é completamente diferente de aprender a ler.
Fonte: http://www.blogdogaleno.com.br/texto_ler.php?id=7442&secao=22
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