24/05/2007
Austregésilo Carrano Bueno é
escritor, ator e diretor de teatro. Escreveu o livro “Canto dos
Malditos”, que deu origem ao filme “Bicho de Sete Cabeças”
(dirigido por Laís Bodanzky) e conta a história da sua
época como paciente psiquiátrico – uma história
que a própria Rets
já mostrou. Desde o fim desse pesadelo, que lhe rendeu um processo
movido pelos médicos da clínica onde esteve internado,
Carrano se empenha na defesa da reforma psiquiátrica. Às
vésperas de mais um 18 de maio, quando se comemora o Dia Nacional
de Luta Antimanicomial, voltamos a procurá-lo para conversar
a respeito da situação do atendimento às pessoas
com transtornos mentais no país.
Sobre o programa De Volta para Casa, criado pela Lei
10.708, de 31 de julho de 2003, para dar “assistência, acompanhamento
e integração social, fora da unidade hospitalar, a pessoas
acometidas de transtornos mentais com história de longa internação
psiquiátrica”, Carrano não poupa críticas.
”Em 2005, o programa tinha como objetivo atingir mais de 2.500
pessoas. Conseguiram repassar esta verba para pouco mais de 800. Isto
porque é muito burocrático, exigente demais. Exige, por
exemplo, que o usuário tenha sido internado no mínimo
por dois anos ininterruptos. Isto é um absurdo!”, reage.
Integrante do Movimento de Luta Antimanicomial, o escritor
reconhece algumas conquistas, mas lamenta que batalhas como o combate
aos eletrochoques – a Terapia do Terror, como prefere chamar –
ainda não tenham sido vencidas. “Esta falsa psiquiatria
que chamam de moderna matou mais de 300 mil pessoas e inutilizou, destruindo
a saúde mental, número semelhante. São mais de
600 mil vítimas psiquiátricas somente no Brasil”,
indigna-se.
Para elas, Carrano defende uma análise de cada
caso por uma junta gratuita de advogados e o pagamento de indenizações.
“Isto é fazer justiça social, ao contrário
das esmolas sociais”, afirma.
Rets - O programa De Volta para Casa,
lançado em 2003 pelo governo federal, foi bastante comemorado
como uma iniciativa de reinserção das pessoas com transtornos
mentais nas suas famílias. Você tem acompanhado a execução
do programa? Como avalia?
Austregésilo Carrano
- Em 2005, o programa tinha como objetivo atingir mais de 2.500 pessoas.
Conseguiram repassar esta verba para pouco mais de 800. Isto porque
é muito burocrático, exigente demais. Exige, por exemplo,
que o usuário (paciente) tenha sido internado no mínimo
por dois anos ininterruptos. Isto é um absurdo!
No meu caso, foram três anos e cinco meses de
entra-e-sai em chiqueiros psiquiátricos. Eu, como milhares de
outros, não teria o direito ao auxílio mínimo do
programa De Volta para Casa. Nós, usuários e não-usuários
que fomos violentados dentro dessas casas de extermínio, exigimos
os mesmos direitos constitucionais que receberam os presos políticos
na época da ditadura militar. Foram indenizados, e muito bem.
Agora, para nós, vítimas psiquiátricas, e muitas
em conluio com a ditadura militar, jogam um salarinho de fome e acham
que a "dívida social" para conosco está saldada.
Uma ova! Costumo citar o meu caso como exemplo de como esta experiência
como cobaia psiquiátrica interferiu em minha vida.
Minha formação profissional foi anulada
de forma estúpida por um erro médico-psiquiátrico.
Três anos e meio de minha adolescência e de meu preparo
profissional prejudicados. As seqüelas físicas e emocionais
que abalam toda uma formação de comportamento, temperamento
e efeitos em ações tomadas. Os preconceitos sociais enfrentados
dia a dia, quando tomam conhecimento de seu histórico psiquiátrico,
o que muitas vezes gera medo nas pessoas. Tudo somado leva ao preconceito
agressivo, tanto físico como moral. Existem, assim, grandes chances
de esses sobreviventes psiquiátricos serem levados ao isolamento
social, ou seja, a uma destruição total do seu processo
de reinserção, caso não tenha ajuda profissional
como a que nós damos na Rede de Trabalhos Substitutivos aos Hospitais
Psiquiátricos Brasileiros. É por esses e outros danos
que exigimos que nossos casos sejam analisados gratuitamente por uma
junta de advogados. Os que forem julgados merecedores de indenizações,
que tenham integralmente respeitados seus direitos constitucionais e
sejam indenizados. Isto é fazer justiça social, ao contrário
das esmolas sociais.
Rets - A integração da
pessoa com transtorno mental à vida familiar e social é
um dos pontos da luta antimanicomial, certo? Quais outros pontos você
considera importantes e que deveriam ser prioridade?
Austregésilo Carrano
- Perdemos algumas batalhas, como nossa luta pela proibição
do eletrochoque, da eletroconvulsoterapia - ou ECT, como chamam esta
Terapia do Terror. Na Europa, foi proibida. Nos estados norte-americanos
que utilizam ainda esta arcaica e criminosa terapia, existem leis rigorosas
de indenizações e até prisão do profissional
pelos danos causados. Associações internacionais de sobreviventes
da eletroconvulsoterapia lutam há anos pela proibição
mundial dessa famigerada terapia. E aqui se faz campanha pela utilização
do eletrochoque, alegam que os medicamentos não atingiram o esperado
e retornam simplesmente a métodos antiquados e proibidos em muitos
outros países mais evoluídos nesta coisa chamada de Psiquiatria.
Omitem em seus artigos quais os medicamentos que foram utilizados, os
que o governo doa gratuitamente ou as medicações consideradas
de última geração, que custam uma pequena fortuna.
Se for culpa dos medicamentos, isto é crime contra a sociedade,
que está sendo enganada e roubada na compra desses medicamentos.
Quanto ao perigo do suicídio, existem técnicas,
métodos, jeitinhos da sensibilidade humana, menos agressivos
e cruéis, para tirar um usuário desse sintoma. Além
disso, querem receber do Sistema Único de Saúde (SUS)
R$ 400 por aplicação de eletroconvulsoterapia. Dez chifres
queimados em uma hora são R$ 4 mil reais na conta, e mais uma
teta enorme para se mamar do Ministério da Saúde. Como
gostam de mamar esses meninos e meninas mestres do inconsciente, inconfundível,
inalienável, do imaginável! É a terceira maior
despesa dos SUS. Até os anos 90, era a primeira, com mais de
U$ 1 bilhão por ano. Mama, neném, a fonte continua aberta,
é só ter jeitinho!
Rets - Como tem avançado a questão
das indenizações aos pacientes tratados com eletrochoques?
Austregésilo Carrano
- Indenizações são para todos que foram torturados,
aviltados e currados em seus direitos constitucionais de cidadãos,
e não somente por quem já foi violentado por esta Terapia
da Morte. Esta falsa psiquiatria que chamam de moderna há mais
de 60 anos matou, somente no Brasil, mais de 300 mil pessoas e inutilizou,
destruindo a saúde mental, número semelhante. São
mais de 600 mil vítimas psiquiátricas somente no Brasil.
Segundo dados da Comissão Internacional dos Cidadãos para
os Direitos Humanos, as mortes causadas no mundo são em torno
de 17 mil vítimas psiquiátricas em toda a sua história
de terror.
Rets - Com relação ao
processo jurídico contra você, em que pé está
a questão agora? Você já está podendo falar
o nome do médico que cuidou do seu caso?
Austregésilo Carrano
- Estou com penhora de bens pelas condenações por supostas
injúrias e calúnias contra os “médicos-mengeles”
da psiquiatria. A corda da nossa Justiça ainda continua beneficiando
o lado mais ditador e corrupto dos que têm poder econômico
no Brasil. Dentro do histórico forense brasileiro, com mais de
600 mil vítimas entre mortos e sobreviventes, não existe
nenhuma condenação ou indenização por erros,
abusos, torturas e crimes psiquiátricos. Isto só pode
significar que existe conivência e conluio judicial neste assunto.
Imaginem se meu caso tivesse sido indenizado, o precedente jurídico
que abriria para outros vitimados da psiquiatria também exigissem
seus direitos constitucionais, o que lhes daria o direito de serem indenizados...
Quantas fortunas psiquiátricas passadas de pai para filhos ruiriam...
Lembrando uma frase de Mel Brooks: "Se fatura muito, mas muito
mais, na psiquiatria que no rock and roll”.
Maria Eduarda Mattar. Colaborou Fausto Rêgo.
Uma publicação da Rede de Informações
para o Terceiro Setor (Rits)
www.rits.org.br
Texto anterior citado acima de maio de 2003
Denúncias do "maldito"
Sua história já foi contada em papel e
película, mas nunca as palavras ou as cenas replicadas apagaram
de Austregésilo Carrano Bueno as lembranças
dos três anos e meio em que ficou internado em instituições
psiquiátricas do Paraná. Neste período, foi submetido
a 21 eletrochoques e a medicamentos pesados, que, como ele descreve,
o deixaram em uma "prisão química". A revolta
com o fato de ter sido torturado e aviltado e com a perda de anos da
juventude foi canalizada para a elaboração do livro "Canto
dos Malditos", que deu origem ao premiado filme "Bicho de
Sete Cabeças", de Laís Bodanzky. Apesar das denúncias
e do sucesso da obra cinematográfica – ou por causa disso
–, Carrano passou a ser alvo de ações judiciais
que não só cassaram seu livro, mas querem impedi-lo de
continuar fazendo as denúncias que ele vem verbalizando.
A primeira ação havia sido iniciada por
ele próprio – "entramos com a primeira ação
indenizatória por erro psiquiátrico na história
forense brasileira", como gosta de lembrar – em 1998 e acabou
tendo um desfecho contrário a Carrano: ele foi condenado a pagar
R$ 60 mil. A segunda veio logo depois – iniciada por aqueles que
chama de "lobby psiquiátrico" e pelos familiares dos
psiquiatras que trataram dele – e conseguiu que o "Canto
dos Malditos" fosse calado. A terceira terá julgamento no
próximo dia 23 de maio, em Curitiba. Se derrotado, Austregésilo
Carrano Bueno não poderá mencionar publicamente os nomes
dos hospitais psiquiátricos e dos médicos contra os quais
faz denúncias, sob pena de pagar R$ 5 mil por dia, ou ir preso.
Membro do Movimento da Luta Antimanicomial,
Carrano, tanto quanto seus companheiros, teme que a possível
condenação não seja só um ato de injustiça
contra o autor, ou um cerceamento à sua liberdade de expressão.
O receio é que a decisão represente, também, um
retrocesso na batalha pela reforma psiquiátrica que exigem, como
prevê a lei 10.216, de 2001. "É contra essa falsa
psiquiatria financista e aviltante que nós do Movimento da Luta
Antimanicomial lutamos", diz Carrano, em entrevista exclusiva à
Rets onde fala abertamente sobre os interesses econômicos que
estão por trás de suas condenações e da
permanência do modelo, segundo ele, arcaico dos hospitais psiquiátricos
brasileiros. O autor fala ainda das seqüelas físicas e psicológicas
que os anos de internação lhe deixaram, sobre como se
voltou para a área da cultura, a necessidade de punir devidamente
os erros de psiquiatras (o que a legislação não
prevê atualmente), as condições subumanas de dentro
dos hospícios e sobre como foi reviver a sua história
depois do lançamento do filme. "Não assisto mais.
É muita emoção", diz ele.
[No final da entrevista, há informações
sobre como se mobilizar para ajudar Austregésilo Carrano Bueno,
no julgamento do dia 23.]
Rets - Você vai ser julgado no
próximo dia 23 de maio. Qual é a acusação?
Quem move a ação contra você?
Austregésilo Carrano Bueno
- Essa é a terceira ação contra mim. A primeira
foi quando eu entrei com a primeira ação indenizatória
por erro psiquiátrico na história forense brasileira.
Isso foi em 13 de maio de 1998, ou seja, há cinco anos. Acabei
sendo condenado a pagar R$ 60 mil aos meus torturadores, aos donos das
instituições psiquiátricas onde fiquei confinado,
sendo cobaia. Em 1999, por pressão do lobby psiquiátrico,
prescreveram minha ação – o que foi inconstitucional:
eu era menor e crime de tortura contra menor não prescreve. Por
exemplo, se você tem 18 ou 19 anos, atropela alguém, quem
responde é o seu pai, sua mãe. Ou seja, abaixo de certa
idade, você é tratado de modo diferente. Comigo não
foi assim. Por quê?
Agora, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh – que
também é deputado federal – pegou a primeira ação
e levou para Brasília, para o Superior Tribunal Federal. Levou
também a segunda ação que foi movida contra mim
– a cassação do meu livro, que foi julgada em abril
de 2001. Na verdade, a primeira ação puxou a outra: eles
se sentiram vitoriosos tendo uma decisão favorável na
primeira ação e se acharam no direito de me processar
por injúria e difamação. Ainda mais depois do sucesso
estrondoso do filme "Bicho de Sete Cabeças", que recebeu
43 prêmios nacionais e oito internacionais. Meu livro acabou sendo
cassado em 2001. Foi a primeira vez que uma obra literária foi
cassada desde a ditadura.
Agora, no próximo dia 23, vou ser julgado pela
terceira vez, também por acusações desse lobby
psiquiátrico. Eles querem que eu fique calado e não mencione
em público ou na imprensa o nome do Hospital Espírita
de Psiquiatria Bom Retiro – primeiro onde fui internado –,
da Federação Espírita do Paraná –
que é dona do Bom Retiro –, ou os nomes dos médicos-psiquiatras
que me torturaram (como o nome do doutor Alexandre Ceshi, que hoje em
dia é o diretor do Hospital Psiquiátrico Bom Retiro. Eu
já havia sido paciente dele em outro hospital psiquiátrico
em que fui internado, o Hospital Neuropsiquiátrico do Paraná,
conhecido como San Julian). Caso contrário, toda vez que eu mencionar,
exigem R$ 5 mil por dia de indenização ou que eu seja
preso.
Serei julgado na 5º Vara Cível do Fórum
de Curitiba, capital do Paraná, pelo Juiz de Direito Dr. Sigurd
Roberto Bengtsson. E, como já fui condenado nos outros dois processos
e todos esses processos estão interligados, as minhas chances
são muito pequenas, a não ser que eu consiga um apoio
popular nacional muito grande.
Rets - Que interesses estão
por trás da exigência de seu silêncio nestes processos
judiciais?
Austregésilo Carrano Bueno
- Os hospitais psiquiátricos são especializados em loucura,
e não na cura. É uma questão que envolve interesses
econômicos altíssimos. Trata-se da terceira maior despesa
do SUS, uma verdadeira mina de ouro que ultrapassa meio bilhão
de reais por ano. Consomem mais de R$ 700 milhões para drogar,
torturar e matar pessoas. É pura exploração financeira
dos nossos impostos, é roubalheira, falcatrua da mais grosseira
e aviltante a nós, contribuintes. Esta hotelaria em hospitais
psiquiátricos é arcaica. Por contrato, o SUS paga automaticamente
o mínimo de 35 dias. A internação é prorrogada,
também automaticamente, pelo contrato.
A revisão desse contrato dos hospitais psiquiátricos
com o SUS é de extrema urgência. É falcatrua esse
contrato onde o benefício econômico vai direto para os
empresários da loucura, os donos e sócios de hospitais
psiquiátricos. Toda a Rede de Trabalhos Substitutivos aos Hospitais
Psiquiátricos (que nós defendemos no Movimento Antimanicomial)
– montada no mais simples município do Brasil, com qualidade,
respeito, humanização, reintegração e muito
convívio social e o resgate dos direitos totais de cidadão
– irá consumir apenas 50% do custo que é pago em
hotelaria em hospitais psiquiátricos.
Rets - Você recebe ameaças?
Austregésilo Carrano Bueno
- Já recebi, sim. Coisas como "você está estimulando
as pessoas a processarem os hospitais e psiquiatras". E eu: "Quem
está falando?". Não respondiam. Ou coisas como "quando
você sair à rua, olhe para trás". Mas eu não
vou parar.
Rets - Uma vez você declarou
que o livro não foi escrito para prejudicar nenhum médico
em especial, mas para denunciar aquilo que chamou de “tortura
da falsa psiquiatria”, ajudar na luta pela reforma psiquiátrica
e exigir indenização justa para as vítimas. Que
resultados já foram obtidos na Justiça?
Austregésilo Carrano Bueno
- O meu livro não foi feito para prejudicar nenhum psiquiatra.
Foi para mostrar o que se passa dentro dos hospitais psiquiátricos.
É um livro com pele, real, onde boto o nome da minha família.
Assim, acaba mencionando nomes das pessoas que estiveram envolvidas
com o que eu passei. A partir daí, usaram os diálogos
dos pacientes no livro para argumentar que eu estava denegrindo a imagem
dos psiquiatras citados. Mas não é.
A minha intenção é dizer: "Olhem,
tá acontecendo isto aqui". É um grito de socorro.
O livro pede que as pessoas olhem para a situação em que
indivíduos ficam à mercê de receitas de psiquiatras.
Aliás, psiquiatras cometas. Chamava de cometas os médicos
que nos atendiam, pois passavam poucos minutos por dia nos hospitais.
O resto do tempo ficávamos com enfermeiros, técnicos em
enfermagem e, às vezes, com pessoas que nem isso eram. Eram simplesmente
pessoas do bairro ou da região contratadas para trabalharem ali,
sem nenhum preparo para isso. Não sou contra a psiquiatria, a
saúde mental. Sou contra esse modelo arcaico, cruel e criminoso
que vem se aplicando no Brasil, que é você confinar pessoas
em hospitais psiquiátricos.
Quanto aos resultados práticos, dentro do histórico
forense brasileiro, não existe ação como a que
eu iniciei. Alguém tem que levantar esta bandeira. Essa perseguição
indecente – como classifico o que estão fazendo comigo
– só faz chamar mais atenção para a questão.
Quanto mais me perseguem, mais chama atenção para o que
tem que mudar.
Rets - Fica claro que você atribui
a erros de psiquiatras o fato de ter sido internado. Mas você
guarda algum tipo de ressentimento de seu pai? [Foi o pai de Carrano
quem decidiu interná-lo. Depois de descobrir que o filho fumava
maconha, ele pediu conselho a um amigo, que recomendou a internação.
No hospital psiquiátrico, o diagnóstico médico
foi de esquizofrenia]
Austregésilo Carrano Bueno
- No meu caso, tinha 17 anos, ia prestar vestibular para comunicação.
Toda aquela fantasia, aquela esperança. Hoje poderia estar aí,
ser seu colega de trabalho. Mas não. De repente você cai
dentro de um chiqueirão onde é tratado em condições
subumanas. Tudo aquilo me foi tirado, cortado. Me deixaram urinando
e defecando em mim mesmo. E tudo por causa de um baseadinho, que é
normal um jovem experimentar.
Na legislação sequer se toca na questão
do erro médico-psiquiátrico. Isso faz com que não
tenhamos juízes aptos para julgar esses casos, nem advogados
especializados. A decisão do psiquiatra não é questionada,
ele fica como o todo poderoso enquanto o judiciário fica de braços
cruzados. As pessoas não vêem o que acontece dentro desses
hospitais psiquiátricos: tem estupros, assassinatos, pessoas
se escondem para enganar a Justiça... E essa é minha luta,
é mostrar o que acontece lá dentro. Por que crime psiquiátrico,
no Brasil, não é punível?
É ignorância do nosso Judiciário
com as questões referentes aos métodos usados e abusados
dentro das nossas instituições psiquiátricas
Rets - Falando dos aspectos de saúde,
você foi vítima de eletroconvulsoterapia. Que conseqüências
e seqüelas pode deixar nas pessoas? Isso é usado ainda hoje
nos hospitais psiquiátricos?
Austregésilo Carrano Bueno
- É, sim. Agora, em 10 de julho de 2002, teve sua aprovação
pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) para uso irrestrito, dependendo
apenas da opinião do psiquiatra para a sua aplicação.
Um atraso nas questões da reforma psiquiátrica que defendemos.
Esta é a explicação técnica da voltagem
do eletrochoque: “Eletroconvulsoterapia (ECT) é aplicada
nas têmporas na freqüência de ondas quadradas que varia
de 25 mil Coulombs até 500 mil Coulombs, de cada pulso elétrico
de 0,5, 1,0 ou 2,0 millissegundos, duração que varia de
0,2 a 0,8 segundos”. Na prática, é a fritura do
cérebro. E agora, aqui no Brasil, incentivamos uso irrestrito
nos nossos pacientes. No papel há algumas exigências que
sabemos que não serão cumpridas.
A volta da eletroconvulsoterapia irá torturar,
traumatizar, inutilizar e até matar. E o real interesse da volta
da aplicação do eletrochoque em nossas instituições
psiquiátricas é apenas um: engordar as contas bancárias.
O SUS vai pagar ao profissional psiquiatra as aplicações
de eletroconvulsoterapia, mais uma fonte de renda fácil. Isto
é um absurdo e um crime. É risco de vida a qualquer paciente
que hoje estiver internado em algum hospital psiquiátrico no
Brasil. Isto é muito sério. Na época em que estive
internado, faziam-se muitas experiências com seres humanos com
o uso do eletrochoque. Era época da ditadura militar, onde muitos
presos políticos e indesejáveis ao sistema ditador desapareceram
dentro das instituições psiquiátricas, morreram
ou ficaram abobados, irrecuperáveis pela queima de neurônios
pelo uso do eletrochoque.
O tratamento pode fraturar o fêmur, a coluna,
o maxilar; provocar lesões cerebrais irrecuperáveis, em
grande parte pela queima e fritura de neurônios; parada cardíaca
nas aplicações; e levar a morte. São dados provados
cientificamente. Este tratamento, somado à prisão dupla
a que somos submetidos – a física e a química –,
nos tira a razão, e muitos de nós somos transformados
em verdadeiras bestas humanas, não sabemos mais quem e o que
somos. Outro risco constante é a perda total da sua razão.
O mais grave é que a aplicação desse terrível
meio de tortura depende apenas da vontade do psiquiatra.
Foram 21 eletrochoques aplicados em mim, a seco, numa
voltagem de 180 watts, podendo chegar a 460 watts.
Rets - Dentre choques, maus tratos,
desprezo, tortura e demais situações que passou enquanto
esteve internado, o que mais te aviltou – se é que é
possível apontar alguma coisa em particular? Ou seja, o que mais
te causa revolta, que lhe foi roubado e você não poderá
recuperar de maneira nenhuma?
Austregésilo Carrano Bueno
- Tem uma frase do Rodolfo Konder [que foi exilado duas vezes durante
a ditadura, tornando-se depois jornalista, cronista, chegando a ser
Secretário de Cultura de São Paulo], quando entrevistado
pelo Amaury Jr., este tinha perguntado ao Rodolfo se, depois de ter
feito tanta coisa, de ter sido tanta coisa, se ele não se cansava.
Ele respondeu: "Amaury, quando se é torturado, você
não esquece". Tem vezes em que eu fecho os olhos e me vejo
trancado no quarto, amarrado, com o enfermeiro vindo tirar esparadrapo
da minha perna, eu cuspindo nele e ele me dando tapa na cara. São
coisas que você não esquece. Eu perdi minha juventude,
a fantasia que tinha na época, aqueles momentos da minha vida.
Durante anos, uns cinco anos, as pessoas chegavam na minha casa e eu
me escondia, tinha medo. Fora isso, tem as seqüelas físicas.
Tenho só 12 dentes na boca, uma fissura na base craniana, perdi
parte da visão. São coisas que a gente não esquece
nunca.
Rets - Mas, só falando com você,
não parece que você tenha seqüela nenhuma.
Austregésilo Carrano Bueno
- Graças a Deus eu tenho bom humor. Sou artista, formado em Artes
Cênicas pelo curso do Teatro Guaíra de Curitiba. Dirigi
minha revolta para outras coisas, para a luta antimanicomial, para escrever.
Rets - Falando nisso, você canalizou
sua revolta com o que passou para a luta antimanicomial e para a literatura,
a cultura, já tendo publicado dois livros. Está preparando
mais algum? Todos eles abordam a temática dos hospitais psiquiátricos
e da reforma psiquiátrica?
Austregésilo Carrano Bueno
- Depois de "O Canto dos Malditos", publiquei um segundo livro,
chamado "Textos - Teatro", de 1994, que são seis peças
para teatro. Não é vendido em livrarias por falta de editoras
que se interessem por livros de peças de teatro. Deste livro,
três peças já foram montadas e um texto foi premiado
na ECO 92, onde competi com o texto “Vamos Acabar com a Natureza”.
Estou escrevendo o terceiro livro, "Filhos da noite",
que é uma ficção baseada em fatos reais. Trata-se
de uma prostituta que se envolve com um garoto de programa. A partir
daí, o livro conta o que se passa na noite de uma grande cidade,
como São Paulo, Curitiba, Brasília etc. O livro aborda
questões como prostituição infantil e tráfico
de drogas. E depois fala também da vida dentro de uma delegacia
(não dentro de um presídio, como fez "Carandiru").
A vida lá é horrível, eu sei, pois cheguei a ser
preso em brigas de juventude. São 30, 40 pessoas presas dentro
de uma cela de delegacia e acabam passando três, quatro anos lá
dentro, em lugares que não são desenhados para isso. Devo
lançar no final desse ano.
Rets - Você gostou do filme “Bicho
de Sete Cabeças”?
Austregésilo Carrano Bueno
- Gostei muito do filme, é maravilhoso. É um trabalho
de sensibilidade muito grande da Laís Bodanzky. Meu livro é
um lago, e ela conseguiu pescar os aspectos mais importantes. É
um trabalho difícil de expor uma realidade pouco familiar às
pessoas. E ela fez muito bem, as pessoas acabam o filme tendo vivenciado,
acreditando na história. A Laís teve muita sensibilidade.
Rets - Como foi a sensação
de reviver todo esse sofrimento ao assistir ao filme?
Austregésilo Carrano Bueno
- Eu me emociono muito. Normalmente, dou palestras pelo país,
em universidades etc. E costuma-se passar o filme primeiro e só
depois acontece a minha palestra. Eu saio, não assisto mais.
É muita emoção.
Rets - Quais são os principais
pontos da Reforma Psiquiátrica e da lei federal 10.216, de 2001
(que prevê a extinção progressiva dos manicômios)
– duas das principais bases do Movimento da Luta Antimanicomial?
Austregésilo Carrano Bueno
- Somos a favor da Rede de Trabalhos Substitutivos, montada há
mais de 14 anos e apoiada pela Organização Mundial da
Saúde. As pessoas não seriam internadas, a não
ser quando estivessem em crise ou surto. A internação
seria em leitos de hospital geral, por no máximo sete dias. Somos
a favor dos hospitais-dia, aonde as pessoas que precisam de tratamentos
de saúde mental vão durante o dia e voltam para suas casas
à noite. Defendemos ainda a criação e utilização
dos Naps e Caps (Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial),
que não são hospitais psiquiátricos, são
casas alugadas longe, fora do espaço físico dos hospitais
psiquiátricos, nada que lembre um hospício. O paciente,
chamado de usuário, é levado a passar o dia. Acompanhado
por equipes de interprofissionais, à noite retorna ao convívio
familiar e social. As pessoas que não estão em crise poderiam
ficar, socializar-se, almoçar, namorar, politizar-se, receber
a atenção adequada de psicólogos, assistentes sociais
etc. Ou seja, poderiam receber um tratamento digno. Queremos ainda a
criação de Centros de Convivência e Cooperativas,
que funcionam em parques, praças e centros culturais, onde a
produção artística e cultural dos pacientes pode
ser vendida e o lucro é dividido entre eles, os usuários.
Queremos ainda o atendimento de psiquiatria e psicologia em postos de
saúde. Esses são os pontos principais.
Só se deve internar quando a pessoa está
em crise, e existe uma definição para isso: é quando
a pessoa está colocando em risco a vida dela ou a de terceiros.
Agora, se a pessoa está falando da lua, ou diz que acabou de
falar com o [Ayrton] Senna, ela não está prejudicando
ninguém, nem a ela mesma. Então, por que internar, prender?
Precisamos aprender a conviver com as diferenças. Só que,
como sempre, esbarra-se nos donos de hospitais psiquiátricos,
que são a terceira maior receita do SUS, aquela história.
Toda a Rede de Trabalhos Substitutivos aos hospitais psiquiátricos,
montada no mais simples município do Brasil, com qualidade, respeito,
humanização, reintegração e muito convívio
social, e o resgate de seus direitos totais de cidadão irão
consumir apenas 50% do custo que é pago em hotelaria em hospitais
psiquiátricos. Por isso os donos de hospícios são
contra essa rede, pois iremos tirar a galinha dos ovos de ouro, que
é a hotelaria em hospitais psiquiátricos por longos meses.
Nas nossas internações no caso de crise/surto, são
apenas sete dias e não o mínimo de 35 dias acordado com
o SUS.
É contra essa falsa psiquiatria financista e
aviltante que nós do Movimento da Luta Antimanicomial lutamos.
Não contra a verdadeira psiquiatria, que se preocupa em tratar,
respeitar, valorizar e lutar para sociabilizar o paciente. Segundo dados
do Ministério da Saúde, 80% dos pacientes internos em
hospitais psiquiátricos morrem lá dentro ou viram moradores
condenados, como numa prisão perpétua. Em 1998, junto
com representantes da Assembléia Legislativa de São Paulo,
nós do Movimento da Luta Antimanicomial denunciamos 30 mil covas
clandestinas na Colônia Psiquiátrica do Juqueri em São
Paulo. Covas com quatro, cinco tipos de esqueletos, ossos de pernas,
cabeça e outros membros ósseos de outros corpos.
Rets - O que está sendo feito
e como as pessoas podem contribuir para que você não seja
condenado no dia 23?
Austregésilo Carrano Bueno
- É evidente que, se eu for o vencedor desta ação,
abriremos um precedente para as centenas ou milhares de vítimas
desses empresários da loucura. Os interesses superam a minha
indenização, eles são também muitos outros.
O que se pode fazer para reverter esta perseguição indecente
que o lobby da psiquiatria e familiares dos mesmos vêm fazendo
em cima da minha pessoa e de minha obra? Pode divulgar ao máximo
esse absurdo. Enviar e-mail, cartas, telegramas, telefonemas, abaixo-assinados
repudiando essas ações e condenações impostas
a mim à 5ª Vara Cível do Fórum de Curitiba,
ao presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, ao Supremo
Tribunal Federal, em Brasília, para ONGs nacionais e internacionais,
associações de direitos humanos. Como serei julgado na
5º Vara Cível do Fórum de Curitiba, seria muito interessante
enviar e-mail para a Presidência do Tribunal de Justiça
do Paraná. O endereço é prestj@tj.pr.gov.br.
Quem quiser fazer abaixo-assinados deve encaminhá-los
para o seguinte endereço: Rua José Culpi, nº 437,
Santa Felicidade, Curitiba, PR, CEP 82400-370. O ideal é que
se faça isso antes da data do julgamento. Fico aberto a sugestões
que possam nos ajudar nessas ações e também para
acharmos alguma maneira de sensibilizar o jurídico nacional e
abrirmos precedentes na questão forense brasileira, cobrando
responsabilidades aos crimes psiquiátricos. Para quem quiser
consultar os meus processos, os números são: 1º ação,
em que fui condenado a pagar sessenta mil reais: Ação
nº 154970-0/02, segunda instância, Tribunal de Justiça
do Paraná (estamos tentando levar o processo para o Supremo Tribunal
Federal, em Brasília). A 2º ação, onde cassaram
minha única fonte de renda, o livro “Canto dos Malditos”,
é de nº 154/2001 e está na 8ª Vara Cível,
Fórum de Curitiba, Paraná. A 3ª ação,
proibindo meu direito à liberdade de expressão oral e
escrita em qualquer meio de comunicação, tem o nº
839/2001 e será julgada na 5º Vara Cível, às
14 horas do dia 23. O juiz responsável pelo julgamento será
o Dr. Sigurd Roberto Bengtsson.
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